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GODI SE IL VENTO

S. Paulo, 25.XI.92

De
Haroldo de Campos
Professor Emérito Comunicação e Semiótica /
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Brasil

Para Aurora Fornoni Bernardini

Aurora, aqui vai a 1ª amostra

Um abraço preliminar (prossigo assim que tenha mais tempo)

Haroldo

GODI SE IL VENTO

Goza se entrando no pomar o vário
vento balouça a vaga do existir:
onde agora afunda um morto
novelo de memórias
horto não fora, antes relicário.
Goza se o vento que entra no pomar
aí renova a vaga da existência:
aqui onde afunda um morto
nó de reminiscências,
horto não era, antes relicário.
Sentes como voando um passarinho?
é o comover-se do regaço eterno;
esta fímbria de terra, vê, no extremo,
se muda, solitária, num cadinho.
O adejar que tu ouves não é voo,
é o comover-se do eterno regaço;
repara: se transforma este pedaço
de terra solitária, num crisol.
A garra fica aquém do áspero muro
se avanças, vai de encontro
– pode ser – ao fantasma que te salva:
aqui se entramam atos e racontos
rasurados no jogo do futuro.
Uma fúria está aquém do íngreme muro.
Ao proceder te embates
tu talvez no fantasma que te salva:
configuram-se aqui a história, os atos
Apagados no jogo do futuro.
Nesta rede de malhas que constringem
busca aquela mais frouxa: foge, atreve-te,
salta – rezo por ti – será mais leve
minha sede, menos acre a ferrugem.
Procura um ponto solto pela rede
que nos cerca, quero que pules, fuja!
Anda! Por ti o roguei, – agora a sede
Ser-me-á leve, menos acre a ferrugem…
Trad. H. de C. Trad. A. F. B.

GODI SE IL VENTO

Godi se il vento ch’ entra nel pomario
vi rimena l ‘ondata della vita:
qui dove affonda um morto
viluppo di memorie,
orto non era, ma reliquiario.

Il frullo che tu senti non è un volo,
ma il commuoversi dell’ eterno grembo;
vedi che si trasforma questo lembo
di terra solitário in um crogiulo.

Un rovello è di qua dall’ erto muro.
Se procedi t’ imbatti
tu forse nel fantasma che ti salva:
si compongono qui le storie, gli atti
scancellati pel giuoco del futuro.

Cerca uma maglia rotta nella rete
che ci stringe, tu balza fuori, fuggi!
Va, per te l’ ho pregato, ora la sete
mi sarà lieve, meno acre la ruggine…

Eugenio Montale

Aqui está um exemplo do trabalho conjunto do Haroldo e meu, inaugurado com os poemas de Giuseppe Ungaretti (De uma estrela a outra – Ateliê, 2003). A ideia surgiu quando contei a ele que nosso amigo comum, Paolo Angeleri, ativíssimo adido cultural da Itália em São Paulo na década de 1980, teria estado interessado em publicar uma coletânea bilíngue dos poemas de Eugenio Montale (que eu havia começado), não tivesse ele sido transferido para Lisboa, onde passou a exercer o mesmo cargo, com igual sucesso. Com isso o projeto foi posto de lado. A ocasião de retomá-lo – dessa vez, a quatro mãos, e sempre com o hipotético patrocínio italiano – surgiu inesperadamente (e inesperadamente gorou) quando Haroldo, de entusiasmos muitas vezes imediatos, contou-me ter sido abordado, no final de uma sua palestra na PUC, por um intelectual italiano (parecido com Lacan jovem – segundo Haroldo) que o saudou com: “Maestro!” e sem mais, dizendo-se diretor de não sei qual comitê e íntimo de grandes nomes, propôs-lhe trabalharem em conjunto numa obra a ser publicada pelo dito comitê. – Ele poderia escrever o prefácio a nossas traduções de Montale!, imaginou Haroldo, que imediatamente esboçou a tradução anexa, seguida pela minha.

E assim teríamos continuado (ele com suas traduções, eu com as minhas – de poemas diferentes, preferivelmente, conforme fizemos com Ungaretti) se não tivesse descoberto
que a intenção do jovem Lacan (do qual omito o nome) era exatamente o contrário: ele escreveria uma obra e o preclaro Haroldo… o prefácio!


 Sobre Eugenio Montale

Eugenio Montale foi o sexto e último filho de uma família de prósperos comerciantes de produtos químicos em Gênova. Seus pais eram provedores, entre outros, da família de Italo Svevo. Montale teve problemas de saúde durante a infância, o que o obrigou a interromper seus estudos. Montale queria ser cantor e, ao retomar seus estudos formais, matriculou-se igualmente em uma escola de canto. Seu gosto pela música aparece em muitos de seus poemas e acaba por levá-lo, em sua maturidade, a exercer crítica musical. Ele obteve, na faculdade, o título de contador. Sem professores, aprendeu francês e inglês. Em 1917, ele foi incorporado ao exército e participou da Primeira Guerra Mundial, uma experiência que também teria ressonância em sua poesia. Em 1925, ele assinou um famoso manifesto de intelectuais contra o fascismo, um documento inspirado pelo filósofo Benedetto Croce. Ele se mudou para Florença para trabalhar na editora Bemporad. Em Florença, conhece sua companheira Drusilla Tanzi. Frequenta o hoje histórico café literário Giubbe Rosse. Em 1929, foi nomeado diretor do prestigiado gabinete Vieusseux, uma das bibliotecas mais importantes da Itália e atrai intelectuais do país e no exterior. O poeta T. S. Eliot traduz seus poemas para o inglês. Depois de dez anos como diretor do Gabinete de Vieusseux, o governo fascista o deixa desempregado. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele acolhe escritores perseguidos como Umberto Saba e Carlo Levi. Naqueles anos de guerra, dedica-se à tradução de autores como Miguel de Cervantes, Christopher Marlowe, Herman Melville, Mark Twain e William Faulkner. Depois da guerra, torna-se crítico de música no jornal “Corriere della Sera”, em Milão. Viaja pela Europa e pelos Estados Unidos. Ele é premiado com um doutorado honorário na Universidade de Milão. Receba o importante prêmio Feltrinelli. Em janeiro de 1949, conhece a jovem poetisa Maria Luisa Spaziani, em Turim, que o incentivará a publicar ainda mais seus trabalhos. Uma intensa amizade se desenvolveu entre os dois poetas. Spaziani tornou-se uma espécie de musa para Montale, particularmente na série de poemas intitulado "Madrigali privati” pertencente ao livro O bufera e altro (1956). Montale se casou com Drusilla Tanzi em 1962, que morreu no ano seguinte. Em 1966, foi nomeado senador vitalício pelo presidente Giuseppe Saragat. Ele ganhou o Prêmio Nobel em 1975.