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A modernidade de Dante via tradução

1.

Dadas as dificuldades inerentes à tradução poética, traduzir Dante talvez seja, surpreendentemente, menos difícil do que outros grandes poetas. A enormidade cultural e a grandiosidade da narrativa da Commedia, com seus diálogos religioso-mítico-existenciais e sua multidão de personagens parecem, de fato, criar uma “selva selvagem” de informações e referências que tornariam o poema ainda menos percorrível do que a mata “áspera e forte” referida em seu início. Além disso, há o rigor dúctil da terza rima, coluna estrutural de “peças de encaixar”, ou “corrente de transmissão” construída pela engrenagem das rimas alternadas e encadeadas, no famoso esquema ABA / BCB / CDC / DED…, erguido sobre decassílabos heroicos. Sem falar nas metáforas, nas referências multitudinárias, nas imagens… Mas ainda assim, subjaz ao poema uma base de simplicidade: sua própria linguagem, feita de frases simples, diretas e claras, ao menos em termos sintático-gramaticais. Ao contrário de boa parte de seus tradutores, Dante não costuma fazer uso de hipérbatos, anacolutos, interpolações etc., além de dar preferência à precisão adjetiva e à descrição substantiva.

Na transição da Idade Média para a Idade Moderna, a então incomum opção linguística de Dante, de escrever em vernáculo em vez de em latim, é, de certa forma, um dos motivos principais do poema – que pode ser lido como um périplo linguístico, além de mítico-narrativo. Porque é um Dante vivo que encontra um Virgílio morto. Se o poeta latino lhe servirá de guia pelos lugares literalmente sobrenaturais (ou metafísicos, em grego) do Inferno, do Purgatório e do Céu, é para fazer do próprio Dante uma espécie de imitação moderna, “civil”, de heróis da Antiguidade como Orfeu e Héracles, os únicos que puderam ou poderiam descer ao Hades e dele reemergir. Assim, enquanto Dante é o único personagem vivo de uma narrativa povoada por uma multidão de mortos, sua língua viva, o italiano, e não o latim ou o grego (línguas mortas dos antigos), também atravessa todo o poema, que na verdade constrói.

Mas não se trata, afinal, da língua italiana, construção histórica posterior, em grande parte como decorrência da própria obra dantesca. Trata-se, na verdade, do dialeto da Toscana, ou seja, o florentino. Menos do que uma “língua vulgar”, como então referida, no sentido de utilizada pelo “vulgo”, a plebe ignorante da nobreza do latim e, portanto, das grandes obras da Antiguidade (incluindo Virgílio, o guia de Dante), trata-se de um “dialeto vulgar”. Mas, acima de tudo, recente: os primeiros documentos históricos em “língua vulgar”, na forma de textos legais, datam de cerca do ano 1000. E as primeiras criações propriamente literárias em vernáculo, no dialeto siciliano (da chamada Scuola Siciliana, centrada na cidade de Palermo), datam do século anterior a Dante. Foi, portanto, no período entre os séculos XI e XIII que a língua italiana nasceu, depois de sua longa gestação medieval a partir do latim popular. Tudo isso, somado à consciência de Dante e outros pensadores e escritores contemporâneos sobre tais fatos, o que originaria tanto o Dolce Stil Nuovo (stil, ou “estilo”, em referência também à língua utilizada) quanto a obra de Dante sobre esse “stil nuovo”, De Vulgari Eloquentia, misto de libelo, gramática e dicionário, no qual defende e descreve os novos dialetos (ou “línguas naturais” das várias regiões italianas), igualmente explica, afinal, a simplicidade, a clareza e a diretividade verdadeiramente modernas da linguagem da Commedia. O que, por fim, esclarece a relativa facilidade de sua tradução, consideradas as dificuldades intrínsecas à tradução poética.

A primeira estrofe do poema, uma das mais famosas da literatura mundial, é uma obra-prima de sutileza, precisão e polissemia, e ainda assim não compromete certa simplicidade. Tudo nela tem sentido duplo: mas isso é diferente do mero duplo sentido, porque não se trata de ambiguidade, mas de multiplicidade de significados: “Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per uma selva oscura / ché la diritta via era smarrita”. O primeiro verso é raramente compreendido: “Nel mezzo del cammin di nostra vita” se refere ao tempo, mais precisamente, à idade. Trata-se de uma antiga metáfora para a meia-idade, isto é, a idade de 35 anos, considerando que o ser humano vivia, potencialmente, 70 anos (Dante fez 35 em 1300; o poema foi, na verdade, iniciado por volta de 1305, e concluído perto de sua morte, em 1321). O segundo verso usa o verbo ritrovare, de trovare, achar, encontrar, para dizer que Dante se “reencontrou no escuro”, além de se achar em “uma selva escura”: “mi ritrovai per una selva oscura”. Dada a ambiência cristã e medieval da narrativa, ao lado da referência existencial do primeiro verso, este segundo verso é poderosamente polissêmico. De um lado, refere a própria condição humana, caída ou decaída em pecado, em escuridão; de outro, indica que Dante “se reencontrou”, se “reachou”, se “compreendeu” nessa escuridão, ou seja, salvou-se, viu a luz, em referência à paixão platônica por Beatriz, que está na origem do poema, e ao próprio périplo pelo qual passará, levando-o afinal ao Céu. Naturalmente, este segundo verso também introduz a cena e a circunstância da narrativa, em que Dante se perde nos arredores de Florença e se vê em uma mata escura. Por fim, o terceiro verso, “ché la diritta via era smarrita”, reforça e complexiza tudo isso, pois a “via diritta”, a “via direita”, refere outra vez, ao mesmo tempo, a ideia de caminho, de passagem, a vida virtuosa e, por fim, a trilha da qual o poeta se perde. Em tradução literal: “No meio do caminho de nossa vida / me achei em uma selva escura / quando o caminho correto se perdera”.

Minha intenção aqui é demonstrar, pela análise da primeira cena do Canto I (estrofes 1-9), não ser Dante um poeta “difícil” (como, por exemplo, Hopkins), inclusive difícil de traduzir, ou seja, mais difícil do que outros grandes poetas. Na verdade, a proximidade entre o italiano da época (mais próximo ao latim) e a origem latina do português, somadas à linguagem do poema, facilitam relativamente as coisas. As muitas vezes surpreendentes soluções dos tradutores de Dante, portanto, não se devem tanto às características do original quanto às escolhas dos tradutores.

Sou incapaz, por exemplo, de compreender a tradução de Augusto de Campos dessa primeira estrofe: “No meio do caminho desta vida / me vi perdido numa selva escura, / solitário, sem sol e sem saída”. “Me vi perdido” contradiz frontalmente o claro sentido (ou os sentidos claros) do original, pois não se trata de se perder em tais circunstâncias, o que seria banal, mas sim de se achar (trovare, ritrovare). O terceiro verso da tradução, por sua vez, simplesmente não é Dante e não é a Commedia. “Solitário, sem sol e sem saída”?! Onde estão a via direita e perdida, a relação de “via” com o “cammin” do primeiro verso, a referência à vida virtuosa etc., ou seja, tudo o que faz a grandeza e a complexidade deste último verso e desta primeira estrofe? Em italiano, o terceiro verso da tradução seria (fazendo, assim, a operação inversa, de traduzir a tradução): “Solitario, senza sole e senza uscita”. Porém tal verso não existe, nem de perto, na Commedia. Ali está escrito: “Ché la diritta via era smarrita”. Não sei, de fato, o que Augusto de Campos aqui traduziu. Mas sei que qualquer possível justificativa não está em Dante. Muito menos na clareza moderna de sua linguagem. Ou nos pressupostos mais básicos, apesar de tudo, da esquiva arte da tradução.

 

2.

Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.

Ah quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!

Tant’è amara che poco è più morte;
ma per trattar del ben ch’i’ vi trovai,
dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte.

Io non so ben ridir com’i’ v’intrai,
tant’era pien di sonno a quel punto
che la verace via abbandonai.

Ma poi ch’i’ fui al piè d’un colle giunto,
là dove terminava quella valle
che m’avea di paura il cor compunto,

guardai in alto, e vidi le sue spalle
vestite già de’ raggi del pianeta
che mena dritto altrui per ogne calle.

Allor fu la paura un poco queta
che nel lago del cor m’era durata
la notte ch’i’ passai con tanta pieta.

E come quei che con lena affannata
uscito fuor del pelago a la riva
si volge a l’acqua perigliosa e guata,

così l’animo mio, ch’ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva.

Ah quanto a dir qual era è cosa dura / esta selva selvaggia e aspra e forte / che nel pensier rinova la paura!”. A segunda estrofe, em tradução literal, ao mesmo tempo respeitando a métrica e a rima, assim ficaria:“Ah, dizer como era, é uma coisa dura, / essa selva selvagem, rude e forte, / Que recordar renova minha paúra!”. Augusto de Campos: “Ah, como armar no ar uma figura / dessa selva selvagem, dura, forte, / que, só de eu a pensar, me desfigura?”. Quanto a dizer como era, é uma coisa dura, uma coisa difícil – mas que eu, sendo um grande poeta, farei. Este claro subtexto metalínguístico, tratando-se de um poeta, e de um poeta que diz que o fará enquanto faz uso de uma nova língua literária, é completamente eliminado por Augusto de Campos, ao trocar o verbo dizer por armar (!), para em seguida eliminar a explícita dificuldade de dizê-lo, a moderníssima e popular expressão “coisa dura”, “coisa difícil”, substituída por um substantivo abstratizante, “literário” e vazio de todo significado original:uma figura”. Em suma: “quanto a dizer como era, é uma coisa dura”, diz com força e clareza o grande poeta, enquanto seu tradutor divaga:como armar no ar uma figura…”. De modo equivalente, a frase simples, clara, do segundo verso, “che nel pensier rinova la paura”, “que recordar renova minha paúra”, ou seja, “que só de pensar dá medo”, cujo caráter verdadeiramente popular é fundamental tanto para a construção da linguagem quanto para a construção do personagem, marcado logo de início por um anti-heroísmo bastante moderno (para não falar da empatia com o leitor), é destruída na tradução de Augusto de Campos: “que, só de eu a pensar, me desfigura”. Para começar, o sujeito da frase original não é o narrador, mas sua lembrança, seu pensar. Pensar e rememorar que são, por sua vez, o próprio objeto do poema: a Commedia é a rememoração, a narrativa, do que aconteceu a Dante certo dia, quando, com a idade de 35 anos, se encontrou de repente em meio a uma “selva escura”, depois de perder a “senda certa”, a “via reta”, a trilha correta. O “lembrar que renova o medo”, portanto, refere-se tanto à circunstância narrada de início quanto à narrativa que assim se inicia, que não é outra coisa senão a rememoração de tudo o que lhe aconteceu a seguir. Daí ser incompreensível a eliminação desse medo fundamental para a economia linguística e narrativa do poema, substituído por uma “desfiguração” um tanto histérica: “só de pensar me desfigura!”. Até porque, neste caso, a tradução literal, do italiano paura para o português “paúra”, permitiria manter, além da precisão semântica, tanto a métrica quanto a rima com o adjetivo dura – também igual, na forma e no significado, nas duas línguas.

“Tant’è amara che poco è più morte; / ma per trattar del ben ch’i’ vi trovai, / dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte”.Em tradução literal:“É tão amarga, que pouco mais é a morte; / mas para tratar do bem que eu encontrei, / falarei de outras coisas que eu vi”. Augusto de Campos: “É quase tão amargo como a morte; / mas para expor o bem que encontrei, / outros dados darei da minha sorte”. O primeiro verso da terceira estrofe, dos mais famosos e belos do poema, infelizmente não sai incólume das mãos do tradutor. O adjetivo amargo, amaro, em italiano, escreve-se assim mesmo no masculino. O poema, porém, diz amara, amarga, no feminino. Pois Dante está agora, apesar de tudo, tentando descrever a “selva selvagem” cuja recordação renova seu medo: ela é tão amarga, que a morte o é pouco mais. Augusto de Campos, primeiro, explode a relação textual, pois não se sabe ao certo a que se refere o seu “amargo” no masculino: em todo caso, não pode ser nem à selva nem à morte. Além disso, achata a complexa e sutil relação de quantidades relativas de amargor: “É tão amarga, que pouco mais é a morte” é algo bem diferente de um banal (e masculino) “É quase tão amargo como a morte”. O terceiro verso não se sai melhor. Enquanto Dante, sempre substantivo e objetivo, afirma que “falarei de outras coisas que vi”, seu tradutor abstratiza “falar” em “dar dados”, e “coisas” em “sorte”:Outros dados darei da minha sorte”.

Io non so ben ridir com’i’ v’intrai, / tant’era pien di sonno a quel punto / che la verace via abbandonai”. Dante é, na quarta estrofe, quase coloquial: “Eu não sei bem dizer [repetir] como entrei, / tão cheio de sono estava naquele ponto / em que abandonei o caminho correto”. Augusto de Campos: “Não me recordo ao certo como entrei, / tomado de uma sonolência estranha, / quando a vera vereda abandonei”. Não entendo por que o claro e coloquial “não sei bem dizer” (“non so ben ridir”) há de se transformar em “não me recordo ao certo”, mas o resto é ainda pior: o narrador “cheio de sono” (“pien di sonno”) é estranhamente tomado por uma “sonolência estranha” – não só o adjetivo “estranho” inexiste no original como este fala em sono, não em uma abstratizante “sonolência”. Por fim, há essa “vera vereda” para traduzir “verace via”. Via, em italiano, pode, mas não deveria, ser traduzido por “vereda”, pelo fato linguístico incontornável de que via é um termo cotidiano em italiano (caminho, estrada, via), enquanto “vereda”, em português, além de um regionalismo, é um termo literário, que no limite sequer significa caminho, mas sim certo tipo de várzea do sertão, cuja vegetação rasteira facilita o deslocamento a pé. E para recuperar a aliteração do original, “verace via”, “caminho correto” seria pertinente e suficiente.

“Ma poi ch’i’ fui al piè d’un colle giunto, / là dove terminava quella valle / che m’avea di paura il cor compunto”. Literalmente:“Mas depois que cheguei ao pé de um monte contíguo, / lá onde terminava aquele vale / que havia de medo meu coração compungido”. Em alguns passos, a clareza e simplicidade sintática de Dante e a proximidade do florentino clássico com o português (pois aquele se formou quase à mesma época deste, e não possui todos os acréscimos posteriores que resultariam no italiano contemporâneo) fazem o original quase apontar por si mesmo a sua tradução: “là dove terminava quella valle…”. Nada, porém, é suficiente para fazer muitos tradutores, como Augusto de Campos, respeitarem minimamente a forma e o significado do original, em nome sabe-se lá de que “teoria” tradutória, quando a tradução, ao fim e ao cabo, não requer teorias, mas resultados estéticos: “Sei que cheguei ao pé de uma montanha, / lá onde aquele vale se extinguia, / que me deixara em solidão tamanha”. Mas que “solidão”?! Que “tamanha”?! Os substantivos deste verso são medo (“paura”) e coração (“cor”), e o adjetivo, compungido, contrito (“compunto”). “Che m’avea di paura il cor compunto”, “que havia de medo meu coração compungido”… O que, pelo amor do Deus de Beatriz, tem isso a ver com “que me deixara em solidão tamanha”?

“Guardai in alto, e vidi le sue spalle / vestite già de’ raggi del pianeta / che mena dritto altrui per ogne calle”. Em versão literal:“Olhei para o alto, e vi suas espáduas / vestidas já dos raios do planeta / que a todos conduz direito em seu caminho”. “Suas espáduas” refere-se às encostas do “monte contíguo”, e o “planeta” que lança raios e ilumina os caminhos é, obviamente, o sol. Amanhecia. Augusto de Campos: “E vi que o ombro do monte aparecia / vestido já dos raios do planeta / que a toda gente pela estrada guia”. A expressão “estrada guia” faz com que guia tenha um duplo significado, verbal e adjetivo, o que remete à expressão “estrela-guia”. Esta é, sem sombra de dúvida, a melhor passagem da tradução.

Allor fu la paura un poco queta / che nel lago del cor m’era durata / la notte ch’i’ passai con tanta pieta”. “Então foi o medo um pouco aquietado, / que no lago do coração mantinha / a noite passada com tamanha pena”. Augusto de Campos: “Então a angústia se calou, secreta, / lá no lago do peito onde imergira / a noite que tomou minha alma inquieta”. Falando em português claro, o que me é facultado tanto pelo direito à livre expressão quanto pelo respeito à linguagem de Dante, esta estrofe da tradução é, em compensação, medonha. “Tomou minha alma inquieta” é pastiche de um clichê romântico (além de não traduzir remotamente o original), assim como o terrível verso “Então a angústia se calou, secreta”. Nada disso é Dante, nada disso é a Commedia. Tampouco o não menos terrível “lá no lago do peito…”. É necessário ainda explicitar a inexistência de “secreta” no original, que o tradutor aí meteu para facilitar a rima com “inquieta” – obviamente, também ausente do original: ao contrário, este rima “queta”, calma, aquietada (a paúra, o medo) com “pieta” (pena). Resta perguntar por que Augusto de Campos tem tanto medo da palavra medo: Dante repete “paura” três vezes neste canto (paúra que é, de certo forma, sua palavra-tema ou principal) e nas três vezes seu sentido é roubado na tradução: primeiro por “figura”, depois por “solidão” e, por fim, por “angústia” (nesta estrofe).

A mais bela imagem deste início do Canto I está na oitava estrofe: “E come quei che con lena affannata / uscito fuor del pelago a la riva / si volge a l’acqua perigliosa e guata”. “E como aquele que, a respiração aflita, / tendo escapado do mar para a praia, / volta-se para a água perigosa e olha”. Augusto de Campos: “E como o náufrago, depois que aspira / o ar, abraçado à areia, redivivo, / vira-se ao mar e longamente mira”. Não há “náufrago” nenhum no original. Muito menos um clichê como “abraçado à areia”. Tampouco “redivivo” ou “longamente”. Se a tradução é, assim, inchada como o cadáver de um afogado, além de gramaticalmente complicada (o verso “o ar, abraçado à areia, redivivo” é ritmicamente um desastre), consegue, ao mesmo tempo, a proeza de eliminar as expressões mais importantes e impactantes, como “respiração aflita”, “escapado do mar” (que vira “abraçado à areia”) e “água perigosa” (“l’acqua perigliosa”). Resta ressaltar a simples falta de sentido da tradução: “E como o náufrago, depois que aspira / o ar” pressupõe alguém que deixara de respirar; Dante, lucidamente, fala em “respiração aflita” (pois quem tivesse deixado de respirar não chegaria vivo à praia).

A nona estrofe, última desta primeira cena do Canto I, é um símile magnífico da anterior: “così l’animo mio, ch’ancor fuggiva, / si volse a retro a rimirar lo passo / che non lasciò già mai persona viva”.“Assim minha coragem, ainda fugitiva, / virou-se para remirar o passo / que não deixou jamais pessoa viva”. “L´animo”, no primeiro verso, é ânimo, mas no sentido, aqui, de coragem, uma de suas principais conotações. No último verso, “lasció”, do verbo lasciare, significa literalmente deixar (permitir, afrouxar; tem a mesma origem de lasso em português). O sentido é, portanto, duplo: aquele passo, aquela passagem, não permitiu a ninguém atravessá-la vivo, ou seja, jamais deixou ninguém vivo. Augusto de Campos ignora essas sutilezas e complexidades: “O meu ânimo, ainda fugitivo, / voltou a contemplar aquele espaço / que nunca ultrapassou um homem vivo”.

 

3.

Dante Alighieri é um poeta medieval em sua visão de mundo, mas radicalmente moderno em sua linguagem. Neste sentido, é o par complementar, pois inverso, de Shakespeare. Freud afirma em algum lugar que sua obra psicanalítica carece, na verdade, de originalidade, porque alguns de seus principais elementos, como a sexualidade infantil, seriam do conhecimento de qualquer babá, enquanto os demais, como as angústias existenciais do homem moderno, estariam todos em Shakespeare. Mas Shakespeare, em termos linguísticos, é muitíssimo menos moderno do que Dante. Na verdade, a linguagem shakespeariana nada tem de moderna, com sua profusão interminável de metáforas complexas e sua elaborada eloquência. “To be or not to be, that is the question” é, por exemplo, sua maneira de fazer Hamlet se perguntar se deve ou não se suicidar. O verso, que muitas vezes é ligado erroneamente à cena da caveira (e que teria, portanto, uma conotação abstratamente “existencial”), na verdade inicia um monólogo que o príncipe da Dinamarca faz segurando uma adaga (ato 3, cena I). Em minha tradução:

 

Ser ou não ser, eis a questão:
É mais nobre a alma sofrer
Os golpes da fortuna infame
Ou se armar contra um mar de danos
Para, opondo-se, pôr-lhe fim?
Morrer e dormir. Nada mais.
Dizer que em um sono findamos
A angústia e milhares de embates
Que são a herança da carne,
Eis o final mais ansiável.
Morrer, dormir. Dormir! Talvez,
Sonhar. Eis a dificuldade.
No sono da morte que sonhos
Virão, livres do afã da vida,
Então cismamos: e a desgraça
Desta longa lida está posta.
Quem traria o desdém do tempo,
O dolo do tirano, a afronta
Do soberbo, a dor do amor findo,
O langor da lei, as ofensas
Que o mérito ganha do indigno,
Podendo se dar paz com a faca?
Quem traria tão grandes cargas,
Gemer, suar a dura vida,
Sem temer algo além da morte –
Terra indescoberta, de onde
Nenhum viajante retorna –,
Confundindo a vontade e impondo
Sofrer nosso mal a lançar-nos
Noutro do qual sabemos nada?

 

O ceticismo duvidante de Hamlet, que, de um lado, elimina a divindade da especulação da vida após a morte, e, de outro, o faz cogitar antes de agir, na verdade, hesitar em agir por duvidar (e cuja versão contemporânea e caricata são os personagens de Woody Allen), é completamente moderno, ao contrário da metafísica cristã medieval de Dante. Mas a linguagem do italiano é muito mais simples, direta, coloquial e substantiva: numa palavra, muito mais moderna. Eis, em todo caso, minha tradução da primeira cena do Canto I da Commedia:

 

No meio do caminho desta vida
Me deparei com uma selva escura
Quando a via correta vi perdida.

Ah, dizer como era, é uma coisa dura,
Essa selva selvagem, rude e forte,
Que recordar renova minha paúra!

Tão amarga, que pouco mais é a morte.
Mas para tratar do bem que encontrei,
Falarei de outras coisas, de outra sorte.

Não sei bem dizer como ali entrei,
Tamanho era o meu sono no trajeto
Em que o caminho certo abandonei.

Após chegar aos pés de um monte perto,
Lá onde terminava essa valada
Que de medo o coração tinha repleto,

Olhei para o alto e vi suas espáduas
Vestidas pelos raios do planeta
Que retos nos conduz em cada estrada.

Então o medo um pouco se aquieta
No meu coração, onde insidiosa
É a noite que passei em tal tormenta.

Como quem, a respiração ansiosa,
Depois que na praia do mar se livra,
Volta-se e olha a água perigosa,

Minha coragem, ainda fugitiva,
Virou-se para olhar aquele passo
Que não deixou jamais pessoa viva.

 

Traduzir Shakespeare, apesar dos dois séculos a menos que nos separam em comparação a Dante, é afinal mais difícil do que traduzir o poeta italiano (daí a dificuldade de entender tantas soluções complicadas e/ou questionáveis comuns às traduções dantescas).

 

P.S. Apesar da “facilidade” muito relativa de traduzir Dante, há na minha tradução três erros, de certa forma imperdoáveis, de metrificação, pois não consegui nestes casos respeitar o acento na sexta sílaba, de rigor no decassílabo heroico: “Que de medo o coração tinha repleto”, “Como quem, a respiração ansiosa” e “Depois que na praia do mar se livra”. Além disso, acho a opção por “valada” para traduzir “valle”, vale, apesar de semanticamente correta, esteticamente ruim. Por fim, em três momentos também fui incapaz de recriar estes versos com rimas perfeitas: valada /espáduas / estrada; planeta / aquieta / tormenta; livra / fugitiva / viva. Do que se conclui que há “facilidades” bastante difíceis. Mas também que traduzir é ou deveria ser um ato de humildade, pois traduzir é falhar. Por mais trabalho que dê, ou por melhores resultados relativos que obtenha, nenhuma tradução deveria ser, no limite, motivo de orgulho. Traduz-se por necessidades e razões várias. Entre elas não deveria estar a soberba, para usar um termo dantesco.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).