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Adonis e a poesia árabe contemporânea

1. Século VIII no XX

O poeta sírio Ali Ahamed Said Esber (Latakia, 1930), conhecido por seu pseudônimo Adonis, é considerado o mais importante poeta árabe da atualidade. Ainda pouco conhecido no Brasil, acaba de ganhar uma antologia com prefácio de Milton Hatoum e tradução de Michel Sleiman (São Paulo, Cia das Letras, 2012). Adonis não pode mais, portanto, ser desconhecido no Brasil.

Adonis é o que se costumava chamar de um “homem político”: num sentido estrito, foi membro do Partido Socialista Sírio; num sentido lato, manifesta-se politicamente em todas as oportunidades; por fim, leva o discurso político diretamente para sua poesia. Apesar disso, os poemas de Adonis, como os de qualquer outro poeta, e ainda que sem desconsiderar inteiramente esses dados, devem ser tomados pelo que são, assim como pelo que representam na história da estética (pois a ideologia “correta” não garante uma grande obra − daí o fracasso do “realismo socialista” −, assim como crenças equivocadas não implicam numa obra ruim).

Um dos maiores méritos de Adonis, quase unanimemente apontado, foi seu protagonismo em levar as principais conquistas do modernismo internacional à atrasada poesia árabe, presa, entre outras coisas, aos sufocantes ditames da correição religiosa.

Adonis não foi só o principal renovador da poesia árabe, realizando uma revolução poética que, no Ocidente, exigiu o trabalho de inúmeros autores de diversas procedências. É, ainda hoje, uma das vozes fundamentais dessa cultura, na qual se destaca pela constante insubmissão à dominante religiosa.

Adonis sempre se posicionou pela “desislamização” da poesia árabe. Daí adotar um pseudônimo ao mesmo tempo pré-islâmico e não-árabe. Daí optar por uma temática secularista. Ocorre que a desvinculação da poesia árabe dos sufocantes ditames religiosos confunde-se necessariamente com sua libertação, também, das formas tradicionais. Em suma, os elementos políticos e temáticos, no caso da poesia de Adonis, são inseparáveis de suas opções propriamente estéticas, de adotar as conquistas do modernismo internacional, como as formas, não por acaso, livres. Infelizmente, as circunstâncias históricas parecem ter sido demais para o talento de Adonis. Pois afinal o modernismo poético árabe acabou sendo, como a crítica enfatiza, quase um modernismo de um homem só, o próprio Adonis. Para isso ele teria de ter, no mínimo, os talentos combinados de um Eliot e de um Pound, cujas obras, tanto nos aspectos formais quanto temáticos, quase esgotam as inovações modernistas, incluindo o uso de elementos gráficos (caso dos ideogramas chineses incorporados aos Cantos). Mas Adonis não chega perto. Sua obra resulta, então, em um modernismo tão tardio (anos 1960) quanto diluidor, e provavelmente tão diluidor porque tão tardio.

Mas talvez fosse pedir demais ao talento individual de qualquer poeta. Pois é simplesmente inacreditável a dimensão e a intensidade do arcaísmo e do engessamento a que esteve submetida a poesia árabe até a geração de Adonis. Cito, a este respeito, o tradutor, Michel Sleiman, que explicita, em conformidade com outras fontes, ter ficado a poesia árabe, até o final do século XX, presa a formas do século VIII!!

Juntos, esses títulos [de Adonis] plasmam as conquistas de renovação absoluta da poesia árabe contemporânea e o consequente rompimento dela com os preceitos milenares da poesia árabe tradicional, descritos na Bagdá do século VIII e desde então canonizados pela crítica e pelos poetas das posteriores gerações até praticamente as vésperas da segunda metade do século XX.1

Afinal o mais o espantoso talvez seja o fato de a maioria dos comentadores tratar dessa situação completamente aberrante com “neutralidade” e “objetividade”, provavelmente em função de pudores politicamente corretos e sua ojeriza a toda crítica intercultural. Ninguém deve criticar a cultura alheia, pois a crítica seria etnocêntrica, colonialista etc. Daí os mais loucos chegarem a questionar a universalidade dos direitos humanos, que são incompatíveis, por exemplo, com a shariá, a lei islâmica. Daí, enfim, poder-se registrar que a poesia árabe se manteve presa a formas do século VIII como se isso não significasse nada além de uma curiosidade literária. Mas para deixar devidamente claro do que se trata, o equivalente em português seria escrevermos poesia, em 1960, ainda em latim, pois no século VIII a língua portuguesa sequer existia. Poderíamos, então, nos ater a formas do século XIII em galego-português, como nos nossos mais antigos registros literários, coligidos no Cancioneiro da Ajuda:

E por maior ei eu, per bõa fe,
aquesta coita de quantas fara
nostro sennor, e por maior mi-a dá
de quantas fez e pois que assi é,
gradesc’ a Deus que me faz a maior
[coita do mund’ aver por mia sennor].

Se considerarmos, porém, que o inacreditável conservadorismo poético árabe (apesar de tudo coerente com o conservadorismo geral das sociedades islâmicas) não incluía a língua, mas “apenas” as formas poéticas contra as quais Adonis se bateu, ainda estaríamos escrevendo, nos anos 1960, em vez de poemas concretos, sextinas em decassílabos heroicos, com rimas perfeitas alternadas nos quatro primeiro versos e pareadas nos últimos, de temática religiosa ou casto-amorosa.

Tanto de amor se disse que não sei
Como dizer que amor é outra coisa
Que nem só o teu corpo me fez rei
Nem tua alma só me deu a rosa
Tanto se disse menos o dizer
Esta paixão que é de todo o ser

2. Modernização regressiva

Tudo isso ajuda a explicar o verdadeiro campo minado que é a crítica da literatura árabe. O presente prefácio de Milton Hatoum, por exemplo (“O cavalheiro das palavras estranhas”, pp. 9-24), não escapa ao que considero certa covardia, operada por omissão. Se refere extensamente a recusa de Adonis do nacionalismo árabe pós-Segunda Guerra Mundial, que no campo literário defendia uma versão local e apequenada do “realismo socialista”, na forma de certo “realismo nacionalista”, evocador das virtudes do povo e da nação árabes, ao mesmo tempo omite qualquer referência à outra recusa fundamental de Adonis, aquela relativa à islamização da poesia árabe. Hatoum sequer usa a palavra “islã”, ou qualquer derivado, em seu texto, num gesto evidente de autocensura, como se este fosse um tema proibido. Em seu lugar, usa o termo genérico “religião” e correlatos. Mas não foi contra a ingerência religiosa em si que Adonis se bateu, e sim contra a histórica islamização da literatura árabe. Ao contrário de Hatoum, Adonis se revela, portanto, um homem de extrema coragem, pois nessa região do mundo se costuma pagar por decisões como essa com a própria vida. Seu par complementar na prosa árabe, o egípcio Naguib Mahfouz, prêmio Nobel de 1988, sofreu mais de um atentado, e viveu anos em verdadeira prisão domiciliar para não abandonar sua cidade natal, o Cairo. Adonis acabaria se exilando na França, depois de se exilar no Líbano.

Outra característica da apresentação de Hatoum é a mistificação. Frases como “A poesia tenta desvelar a essência do impossível por meio da alquimia verbal, que permite criar formas expressivas no âmbito do mistério e do desconhecido” (p. 16) não significam rigorosamente nada, pois nada têm de realista ou verdadeiro. Não importa quantos séculos se passem desde o romantismo, certo tardorromantismo vulgar não dá mostras de perder a empáfia. “A poesia tenta desvelar a essência do impossível”? Com se pode afirmar isso a sério depois do modernismo e sua consciência crítica da natureza linguística da matéria verbal? “A alquimia verbal permite criar formas expressivas no âmbito do mistério”?! Portanto, essa “alquimia verbal” não é mera metáfora ruim, mas sim tomada como fato, como causa de um efeito, a “criação de formas expressivas no âmbito do mistério”, seja lá isso o que for.

Escrevi recentemente, de forma extensa, sobre o caráter regressivo de grande parte da poesia atual, em função de sua incapacidade de dar conta do mundo contemporâneo (“A farra do alumbramento poético [incluindo ‘como fazer diferente’ ou FEMEN]”). Portanto, não me estenderei novamente aqui. Nem por isso deixo de registrar que o mesmo fenômeno reaparece com força em Adonis, devidamente incensado por Hatoum:

A visão poética surge também das lembranças da infância, em que o sujeito lírico, embora viajante, permanece ligado à sua aldeia, trancafiado pelas portas do tempo, e a única possibilidade de evasão é através do amor.2

Não bastasse a regressão, agora também a evasão… Sou incapaz de dizer o que é pior, a defesa de Hatoum dessa regressão poética, que aqui se manifesta explicitamente pela tematização da “aldeia natal” (como se McLuhan e sua “aldeia global” jamais tivessem existido), ou o próprio poema, cuja primeira estrofe é pura e simplesmente o mais completo clichê:

Pequena aldeia tua infância
E apesar disto
Não ultrapassarás suas fronteiras
Por mais que te afaste a viagem.3

Mas ao menos isso nos permite começar a comentar a tradução de Michel Sleiman.

3. Adonis em português questionável

Mesmo sem ter acesso ao original (até porque não leio árabe), o texto de chegada pode ser analisado por suas próprias qualidades, ou, neste caso, por seus defeitos. Imagino que o original dos versos acima tenha um registro coloquial. Na maior parte das línguas, a forma coloquial pede a segunda pessoa do singular, enquanto a terceira, quando não se refere ao pronome ele, mas ao interlocutor direto, é formal. O português do Brasil é uma exceção (ainda que não em todas as regiões do país). O tu e as conjugações na segunda pessoa foram substituídos por você e pelas conjugações da terceira. “Você [ele] vai viajar hoje?”, em lugar do que seria natural e é a regra linguística universal: “Tu vais viajar hoje?”. Você, sendo da terceira pessoa, mas criado para se dirigir ao interlocutor direto, surgiu justamente para evitar o coloquialismo da segunda pessoa em situações cuja formalidade o contraindicavam. Você deriva de “Vossa mercê”, passando pela forma intermediária “vosmecê”. Com o tempo, porém, essa forma também se modificou quanto ao seu uso, deixando de significar formalidade para assumir a função coloquial. Por causa desse deslocamento, a segunda pessoa ganhou, paradoxalmente, um caráter ao mesmo tempo literário e arcaico. Em suma, o tradutor errou completamente a mão. Pois ao traduzir versos que no original devem ser coloquiais e estar, portanto, na segunda pessoa do singular, optou pela segunda do singular numa língua, o português do Brasil, em que essa conjugação não tem mais, há muito tempo, caráter coloquial, mas ao contrário: “Não ultrapassarás suas fronteiras” para traduzir um poeta tido por modernizador da poesia árabe é paradoxal, para dizer o mínimo. Se esse registro arcaizante e “literário” parece, portanto, atrapalhar a recepção da poesia de Adonis, com certeza é uma traição ao seu próprio ideário poético, pois uma das principais conquistas do modernismo, que Adonis lutou para levar tardiamente à poesia árabe, é o coloquialismo.

Pelo conjunto das informações disponíveis, acredito, enfim, ter fortes razões para acreditar, mesmo sem acesso ao original, que esses versos devem soar mais próximos a isto:

Pequena aldeia sua infância
E apesar disto
Você não ultrapassará suas fronteiras
Por mais que o afaste a viagem.

Ou talvez eu esteja enganado. Neste caso, Adonis logrou de fato uma modernização frustra, ou manca, como outras características parecem indicar, por exemplo, o uso reiterado da partícula “literária” “ó”: “Ó cidade dos exilados….” (p. 19).

Concluindo com o tradutor, apesar de seu texto de apresentação intitular-se “Adonis em português” (pp. 27-31), suas quatro páginas não dizem absolutamente nada sobre a tradução. O texto é, na verdade, um resumo algo preguiçoso da bibliografia de Adonis, bem como um repositório ocioso de adjetivos, que calam completamente sobre as opções tradutórias e sobre as características poéticas do original: “A sonhada poesia desse homem do mundo, nascido numa reclusa aldeia da Síria, apresenta uma cara precisa: árabe – fresca, resplendente, inspiradora” (p. 31). Se não estou enganado, a primeira parte dessa passagem afirma algo equivalente a ser a poesia de certo brasileiro brasileira, enquanto a segunda parte pretende que ser árabe é sinônimo de ser “fresco, resplendente, inspirador”. E eu que acreditava que esse tipo de generalização etnológica fosse coisa do século XIX, como dizer que os ingleses são formais, os americanos ousados, os alemães trabalhadores, os franceses românticos etc. Repositório ocioso, eu disse? “Às vezes não deixará de tocar o leitor certa combinação de estranhamentos e reconhecimentos nos poemas […]; algum hermetismo, por vezes, algum descompasso resultante das diferenças de cultura” (p. 31). Ainda bem que fomos avisados. O mesmo não pode ser dito sobre a operação tradutória em si.

4. A aldeia e o mundo

Mário de Andrade, numa carta ao poeta então aprendiz Carlos Drummond, instrui o mineiro a não usar a correição gramatical, pois a poesia brasileira deveria se aproximar do português falado no Brasil, como sintetiza o famoso poema de Oswald, “Pronominais”:

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

A opção do tradutor no primeiro poema do livro, “Amor” (p. 41), parece então modernistamente correta:

Me amam o caminho, a casa
E na casa uma jarra vermelha
Amada pela água,

Me amam o vizinho,
O campo, a debulha, o fogo,

Me amam braços que trabalham
Contentes do mundo descontentes
E os arranhões acumulados no peito
Exaurido do meu irmão atrás
Das espigas, da estação, como rubis
Mais rubros que o sangue.

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
– que fará o amor quando eu me for?

Ignoro a resposta. Mas não posso ignorar a forte sensação de enfado que um poema como esse me provoca. Voltando à questão pronominal, para citar Oswald mais uma vez, a beleza é a prosa dos nove, no amor como na poesia. E versos como “Me amam o caminho, a casa”, “Me amam o vizinho” etc., são feios. “Me amam o vizinho”?! Voltando agora ao enfado, quanto regressivismo a poesia contemporânea deve ser obrigada a suportar? “O campo, a debulha, o fogo”, “os arranhões acumulados no peito exaurido do meu irmão atrás das espigas”… Reiterarão que o “poeta” fala aqui de sua aldeia, indeed, como se isso fosse, em si, justificativa suficiente e inquestionável. Haverá, afinal, tema mais “sincero”, mais “puro” ou mais “puramente poético”? Maiakóvski nasceu em 1893 na aldeola de Bagdadi, onde cresceu, no interior da interiorana Geórgia, filho de um guarda florestal. Deveria, então, ter sido um versejador da ou sobre a aldeola e a floresta? Mas se Maiakóvski, nascido numa aldeola georgiana ainda no século XIX, jamais perdeu tempo versejando sobre a aldeola, pois tinha todo um mundo moderno à sua frente para poetizar, por que a um poeta árabe do século XX que se pretende o grande modernizador de sua tradição poética se haveria de condescender que tematize sua aldeia com bocejantes clichês? “Rubis mais rubros que o sangue”?! “Rubis”?! Maiakóvski compararia o sangue à tinta vermelha de um cartaz recém-impresso, mas por isso (ou seja, suas metáforas inovadoras, entre outras tantas características) Maiakóvski é Maiakóvski, enquanto Adonis não é o Maiakóvski árabe.

Dirão que nossos maiores modernistas, à diferença de Maiakóvski e à semelhança de Adonis, também poetizaram sua origem rural, como Drummond com sua Itabira (reduzida, porém, a um quadro na parede) e Cabral com seu engenho. Mas basta escrever “Cabral com seu engenho” para que engenho, pela proximidade com Cabral, exploda polissêmica, significando também engenhosidade. Não há nada mais moderno do que os seus “Poemas da cabra”. Mas é por poder tematizar o que quiser e ser sempre moderno e cabralino que Cabral é Cabral. Adonis não é o Cabral árabe. Nem o Drummond.

Pulo então metade do livro até um poema que talvez redima sua obra de seu regressivismo, a começar do título: “Tumba para Nova York” (pp. 137-59). Ao olhar o poema, antes de lê-lo, não posso evitar pensar no Uivo de Allen Ginsberg − mesmo porque, recém o traduzi.4 Em todo caso, o poema de Adonis fala de Nova York e é escrito em versos longos e livres, o que também se aplica ao poema de Ginsberg. Minha comparação parece ainda mais pertinente ao ler as palavras Whitman, ponte do Brooklin e Wall Street. Mas, pobre Adonis, ele jamais deveria ter escrito um poema “whitmaniano” e anti-establishment sobre Nova York depois de um Ginsberg tê-lo feito.

Se os primeiros versos do poema de Ginsberg são

Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura,
famélicos histéricos nus,
se arrastando na aurora pelas ruas do bairro negro na fissura de um pico,

anjos de cabeça feita ardendo pela ancestral conexão celestial
com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,

que se sentaram pobreza e farrapos e ocos olhos loucos fumando na escuridão sobrenatural
de apartamentos sem aquecimento flutuando pelos tetos das cidades contemplando o jazz,

que despiram seus cérebros ao céu sob o viaduto
e viram anjos muçulmanos cambaleando iluminados nos telhados dos cortiços,

o poema de Adonis assim começa:

Até agora, tem-se desenhado a terra como pera,
Isto é, um peito
Mas entre o peito e a lápide há um truque geométrico, e só:
Nova York,
Civilização de quatro pernas, cada direção é um crime,
Um caminho para o crime, e na distância o gemido dos náufragos.

Nova York,
Mulher – estátua de mulher
Numa mão ergue um trapo que a folha chama Liberdade
Que nós chamamos História
Noutra mão estrangula uma criança chamada Terra.

Em suma, enquanto os versos longos e livres de Ginsberg são repletos de imagens impactantes e tensionados por um ritmo poderoso e denso, os versos livres e longos de Adonis são meramente prosaicos, além de inchados por imagens banais: “Você ardeu, chaga escondida entre as coxas?” (p. 138). Chaga ardente escondida entre as coxas? Tudo isso para se referir a uma mera boceta? Num poema sobre Nova York do final o século XX? Ginsberg diria:

que acalmaram as xoxotas de um milhão de garotas tremendo ao pôr do sol, tinham os olhos vermelhos de manhã mas estavam prontos para acalmar a xoxota da aurora, bundas brilhantes nos celeiros e pelados no lago.

Enquanto Adonis é muitas vezes explicitamente moralista (“Os homens entram como moluscos em alambiques de álcool e drogas” [p. 145]), Ginsberg é sempre simplesmente modernista (“andaram a noite toda com os sapatos cobertos de sangue pelo cais recoberto de neve esperando que uma porta se abrisse no East River repleta de vapor e ópio”). Mas por isso Ginsberg é Ginsberg, enquanto Adonis não é o Ginsberg árabe.

Para ser o mais anti-establishment poeta da América, Ginsberg jamais usou imagens tão apelativamente banais como “[Nova York] noutra mão estrangula uma criança chamada Terra”. Uma criança chamada Terra?! Isso é coisa de cartaz de centro acadêmico, não de grande poesia moderna. Depois de Ginsberg e seu Moloch? Depois de Eliot e sua “the waste land”? Ocioso dizer, portanto, que com tal tema e tal tratamento, Adonis está sempre a um passo, neste poema (mas não só nele), da pior poesia engajada: “E vi entre eles rios árabes carregando milhões de pedaços de cadáveres, vítimas e oferendas ao Grande Ídolo” (p. 143). Depois de Ginsberg e seu Moloch?!! Tenham paciência.

Que esfinge de cimento e alumínio arrebentou seus crânios
e devorou seus cérebros e sua imaginação?

Moloch! Solidão! Sujeira! Feiura! Latas de lixo e dólares inalcançáveis!
Crianças gritando embaixo das escadas!
Garotos soluçando nos quartéis!
Velhos chorando nas praças!

Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o sem-amor!
Moloch mental! Moloch o duro julgador dos homens!

Moloch a incompreensível prisão!
Moloch cujas construções são julgamento!
Moloch a pedra imensa da guerra!

5. Modernidade curta

Avanço mais uma vez, e paro na penúltima grande seção do livro, “Guia para viajar pela floresta do sentido” (pp. 215-34), cujo título tem um sabor ao mesmo pretensioso e tardopsicodélico (não surpreende: a seleta referencial modernista em que Adonis bebeu incluía grandes doses de surrealismo francês). Em compensação, seus versos são mais curtos, mais francamente modernos, à primeira vista. Então me deparo com:

o que é o vento?
alma que não quer
habitar o corpo.

o que é o espelho:
segundo rosto
terceiro olho

o que é a onda?
imagens em movimento
na tela do mar.

o que é a praia?
travesseiro para descanso da onda.

o que é o negrume?
útero grávido de sol.

o que é poema?
criança
que vive
em
mamar
contínuo.

o que é o sonho?
elevar o real
ao nível da fantasia.

o que é o pó?
futuro do corpo.

o que é o horizonte?
espaço que se move sem parar.

A lista enfadonha de pequenas perguntas e menores respostas segue ainda por 14 páginas! Lembro-me, então, de Chico Alvim e suas infindáveis banalidades poéticas pseudoexpertas de Elefante, incensadas por Roberto Schwarz como o suprassumo da poesia brasileira neo-pós-ultra-super-trans:

QUER VER?
Escuta

ARGUMENTO
Mas se todos fazem

FUTEBOL
Tem bola em que ele não vai

PARQUE
É bom
mas é muito misturado

MAS
é limpinha

DESCARTÁVEL
vontade de me jogar fora

E afinal vejo a luz, para falar como Adonis: Adonis talvez seja o Chico Alvim da poesia árabe. E mal escrevo isso, temo que vá ser, necessariamente, mal interpretado, porque há muita gente que acredita ser Alvim, de fato, um grande poeta brasileiro contemporâneo… Desisto.

Notas

1 “Adonis em português”, p. 28.

2 P. 17.

3 Idem.

4 São Paulo, Globo, 2012.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).