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Cair de costas

Na verdade, Cair de costas é, do ponto de vista editorial, o primeiro livro de poemas de Ronald Augusto, porque reúne cinco plaquetes, lançadas a partir dos anos 1980, com tiragens pequenas, que propunham a leitura de sua poesia aos amigos. Cair de costas reúne a parte de formação do trabalho do guitarrista da banda “Os poETs”. Não há, em Cair de costas, inovações formais ostensivas na aparência, embora essa poesia não seja nostálgica ou grandiloquente, com temas kitsch. Ronald vale-se, genericamente, dos recursos legados pelo modernismo (1922), pelo concretismo (1956) e pela dicção direta das letras de mpb e rock and roll dos anos 1960. Os poemas são breves, caligráficos ou curtos, estes mais discursivos. A poesia brasileira chamada “contemporânea” constitui-se em uma massa informe de prosa mal escrita, cortada em linhas. Os nomes dos autores são diferentes, entretanto os poemas são quase todos iguais. E irrelevantes. Tal produção é tributária daquilo que já se considerava barateamento poético há vinte anos pelo menos. Hoje, o autor prevalece sobre a obra e a propaganda sobre a reflexão.

O que torna relevante este Cair de costas? Primeiro o fato de seu autor lançar seu primeiro, digamos assim, livro comercial, aos 51 anos. O que isso revela? Revela decoro e indica que ele trafega no sentido oposto da última e irrelevante poesia brasileira. Decoro, do latim decorum, decência, respeito próprio, dignidade. Decoro, de cor. Ronald é um poeta negro a lidar com o legado branco hegemônico da poesia, de um modo crítico e severo, nesse caso, em uma perspectiva política sem apelações. Com alto decoro. Leia-se: “…zulu o grande claro da página onerado por poucas palavras…”. Creio que esse verso possui, também, um significado de carta de intenções. Em Cair de costas, Ronald trabalha, de modo sistemático, com os preconceitos brancos da linguagem e daí decorre sua originalidade, porque eficaz. Alguns exemplos: “Preto, estátua de granito denegrido”, em um poema no qual critica Gregório de Matos: “… mono o/ preto a quem a tribo branca// palma após lama/ faz mercê”; e, por fim, “por que dizer escuras/ em lugar de escólios?”.

Além de “poeta negro”, Ronald é, principalmente e apenas, um poeta, como deixa entrever em: “meu sangue de sibas/ esta sibila numa prosa perturbada/ tratando de pegá-lo no/ contrapé/ através” (“o barroco boca”). A siba é, como todos sabem, um molusco de cerca de 30 cm, dotado de dez tentáculos providos de ventosas na cabeça. A siba segrega um líquido negro ao ser atacada. Faz sentido no percurso de Ronald, porque ele inverte as situações: da condição de “vítima” migra para a de crítico, de segregado para aquele que, ao ver-se discriminado, como todo poeta, diz através, diz pelos flancos da língua, que se faz arte. Os poemas estilhaçados são, as mais das vezes, poemas ornamentais, vazios. Ronald Augusto, ao pegar pelo contrapé, busca exatamente o contrário do ornamento: dar sentidos firmes aos fragmentos: “… o preto de porte palmarino/ rapando as escamas dum sonâmbulo/ outdoor repondo outras…”; ou: “… num abono-pente-de-velha/ (cenho?)// o buana brancrano me acena:/ ébano…”. “Buana”, como todos sabem, quer dizer “senhor ou senhora, no sentido de escravidão”. A libertação negra vem, nesse poeta, lado a lado, com a libertação da poesia em si de seus incontáveis clichês. A maior parte do que se diz sob a forma de poesia é banal e desnecessário. Ronald torna a poesia necessária. Ronald Augusto é o principal poeta negro do Brasil, porque, além de “fazer poemas”, é um crítico de primeira linha, um músico, uma figura rica e complexa. Ronald Augusto está também entre os 5% de poetas que valem a pena no Brasil.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.