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DA MÚSICA OVO-PODRE E DA POESIA ZUMBI

1. Os novos Goethes

A PBC (poesia brasileira contemporânea), assim como a MPB (música popular brasileira, para quem não se lembra), morreu. Quem constatou a morte da segunda não fui eu, mas Chico Buarque de Hollanda, que declarou, explicitamente: “A canção morreu” (e a canção era o gênero musical por excelência da MPB).
Em tempos recentes, muito coisa foi declarada morta um tanto prematuramente: o advento da TV mataria o rádio, a fotografia mataria a pintura, o cinema mataria o teatro etc. Mas tirando a máquina de escrever, que foi substituída diretamente pelo teclado do computador (e, portanto, pelo computador), os moribundos anunciados estão bem de saúde, porque, na verdade, a cultura contemporânea, ao contrário do que aconteceu quando da Revolução Industrial, no século XVIII, é uma cultura de acúmulo, não de substituição.
Um dos motivos é a própria Revolução Industrial: o advento da mecanização arrancou da musculatura humana o papel central, ao lado da musculatura animal (guiada por humanos), de geradora de energia para a produção. Isso levou, ao longo dos séculos XIX e XX, à indústria do entretenimento: o tempo dedicado ao trabalho tendia a diminuir, como de fato diminuiu. Além disso, o enriquecimento geral dos países industrializados (basta pensar na penúria francesa no Ancien Règime) criou a classe média e os direitos trabalhistas (com destaque para a jornada de trabalho). Havia agora muito tempo e algum dinheiro para as massas consumirem.
Trotsky afirmou que a Revolução transformaria cada homem num Goethe. Goethe acharia a ideia um tanto estranha, imagino. Mas o que importa é a metáfora: a humanidade se transformaria numa imensa academia, uma Atenas planetária, com as multidões se dedicando à vida intelectual e à criação artística. Isto foi ainda mais explicitado por algumas vanguardas do século XX, marcadas pelo democratismo e pelo voluntarismo: “Todo homem é um artista” (Joseph Beuys).
Não, não é. O máximo que se pode dizer numa afirmação existencial absolutista é que todo homem e toda mulher são humanos. Fora isso, é mera opinião, expressão de desejo ou talvez puro delírio. Cada homem e cada mulher são o que são. E eles são, inevitavelmente, medíocres, na maioria dos casos. A diferença desta afirmação em relação às anteriores é que não se trata de uma doxa, de uma opinião (e toda opinião vale tanto quanto as outras, incluindo a que a nega), mas de uma epistéme, de um conhecimento, baseado na própria etimologia da palavra. Medíocre é do mesmo campo de médio, mediano. E a maioria da humanidade, necessariamente, não pode senão representar a média da própria humanidade.
Por constatação histórica já multissecular (desde a Revolução Industrial e do ensino universal, implementado primeiro na França após a Revolução Francesa), o que se comprovou é que Trotsky e as vanguardas estavam redondamente errados: as massas não querem ser Goethes, querem, em seu tempo livre, ver séries de TV, ouvir música ruim, anunciar ao mundo pelo Facebook o ponto de cozimento da salsicha que têm em mãos, tirar infinitos selfies, fotografar seu teste de gravidez e fazer buscas pelo Google sobre a vida de pessoas famosas porque muita gente faz pesquisas sobre suas vidas pelo Google. Não há encontros multitudinários em estádios para maratonas de leitura, mas para rezas públicas ou para se acompanhar com atenção, tensão e ansiedade infindáveis partidas de futebol.

2. A música de uma semana e o ovo de mil anos

Referi-me acima à música ruim, o que me permite voltar à afirmação de Chico Buarque. Apesar de certa histeria democratista da época, tudo tem, necessariamente, um limite. Há gostos incontáveis quando se trata de ovos fritos, incluindo a consistência da clara e da gema, a quantidade de sal etc. Mas ninguém gosta de ovos queimados. Ovos queimados são ruins. Mas isso não pode se aplicar à música dita ruim, já que, ao contrário dos ovos queimados, multidões a adoram. Isso parece verdade – mas não o é, necessariamente. Marx afirmou que a razão da história (ou da “evolução histórica”) era a “educação dos sentidos”. Ninguém gosta de ovos queimados, pode-se deduzir, porque não se é acostumado a comê-los desde a infância. Uma prova indireta disso é o fato de os chineses, aos bilhões, gostarem de ovos podres (os liricamente chamados “ovos de mil anos”). Portanto, se as pessoas se acostumarem desde sempre a comer ovos podres, gostarão de ovos podres. Os chineses têm todo o direito de afirmar que são deliciosos. Mas não de dizer que não são podres. Portanto, eles são, para eles, deliciosos apesar de podres.
A atual música de massa brasileira, filha bastarda e abastardada da morte da canção, é consumida aos milhões, mas isso, como demonstram os bilhões que consomem ovos podres, não garante nada quanto ao sabor do que se consome. Tudo que se pode deduzir com certeza é que se trata de um hábito (como diria Marx).
A questão de por que as massas chinesas são alimentadas com ovos podres e as massas brasileiras com música ruim, deixo para os antropólogos e os sociólogos. Aqui interessa apenas o paralelo anunciado no início, entre a morte da canção constatada por Chico Buarque e a morte da poesia contemporânea idem humildemente por mim.
A morte da canção não é a morte da música popular, obviamente, mas a morte de um gênero musical. Esse gênero se caracterizava, sinteticamente, por uma linha melódica clara, cujas notas se encaixavam às palavras da letra. Havia, ainda, certo equilíbrio minimalista mas sutilmente complexo no acompanhamento instrumental – que idealmente resultava em um diálogo musical entre notas instrumentais e vocais. A questão que a afirmação de Chico Buarque coloca, tendo em vista o contexto, é: por que, em vez de vários tipos de ovos serem hoje consumidos, a quase totalidade do país de Noel Rosa, Pixinguinha e do próprio Chico Buarque de repente passou a consumir quase que somente ovos podres? Porque, como os chineses, eles gostam de ovos podres. Não há resposta mais honesta. O que, como já dito, não muda o sabor de um ovo podre.

3. A elite de elite e a elite puída

A canção morreu, e seu cadáver tem cheiro de ovo podre. Mas e quanto à PBC, a poesia brasileira contemporânea?
Também morreu, mas os zumbis que a substituíram não zumbem tão alto quanto os que substituíram a canção. Daí ser mais difícil percebê-lo.
Por motivos alheios às próprias dimensões deste texto, não cabe aqui discutir as razões, mas apenas constatar que, entre os inúmeros itens da nova indústria do entretenimento, nascida do novo ócio dos trabalhadores desde a Revolução Industrial, a poesia ficou de fora. Portanto, ela é, ainda que à sua revelia, uma arte de elite, nem que fosse pelo absoluto descaso das massas em relação a ela (mas também, e principalmente, porque se insere numa milenar tradição estético-literária; é uma linguagem com características próprias).
A ciência experimental e teórica, por razões próprias, também é uma atividade de elite (não, o mundo definitivamente não é feito de Goethes). E o que fazem os cientistas com isso? Para usar um dito popular, usam os limões para fazer uma refrescante limonada. Se a ciência é e tem de ser, por sua própria natureza, que exige talento, imaginação, imensa capacidade de trabalho e enorme preparo intelectual, uma atividade de elite, que faça então um trabalho de elite, ou seja, de alta qualidade, rigor, apuro, interesse e inventividade, ajudando, à revelia do desinteresse científico das massas, a moldar o mundo moderno. Nem o mais delirante democratista poderia afirmar que tais características se aplicam sequer minimamente à poesia contemporânea.
Ela é, como a ciência, uma atividade ignorada pelas massas, logo, de elite. Mas, ao contrário da ciência, em vez de aproveitar essa circunstância para tirar dela o que de melhor só ela pode permitir, a poesia contemporânea não sabe ou não quer ser de elite. Mas condenada a sê-lo pelos fatos socioculturais, acaba não sabendo o que é nem o que fazer – inclusive consigo mesma.
A canção morreu, e foi soterrada pela música ovo-podre – porque a música faz parte da indústria do entretenimento. Já a poesia se zumbificou, e vaga por aí, entre livros que ninguém lê e poetas que ninguém conhece. Mas isso não incomoda muita gente, afinal, pois a poesia não faz parte da indústria do entretenimento.
Recusando-se a ou incapaz de ser, como a ciência, uma atividade poderosamente produtiva, criativa e inventiva, que apesar de elite, ou porque de elite, possa apreender o e se inserir no complexo mundo contemporâneo, e ao mesmo tempo excluída da indústria do entretenimento, a poesia, vagando em torno do cadáver da canção, é hoje um morto-vivo.

4. Zumbis e zumbidos

Publish or persish”: publique ou pereça, diz um antigo adágio do meio científico. Pois uma descoberta não publicada é uma descoberta indescoberta. Não entra na corrente sanguinea do fazer científico, logo, é como se não existisse. A poesia contemporânea inverteu a equação: publique e pereça, ou publique para perecer. Publique para não ser lido.
No final do século XIX e no início do XX, ou seja, antes das primeiras vanguardas, a poesia tinha uma forte presença cultural, ao menos nos meios dominantes. Ela era lida em banquetes, em saraus, em eventos públicos (para os quais muitas vezes um poema era encomendado) e publicada em todos os jornais. Uma das principais explicações é que a poesia e seu público compartilhavam o mesmo código, que se pode chamar, senso lato, de cultura literária. Os temas e as formas (com destaque para o soneto) eram conhecidos e reconhecidos. Mas assim como aconteceu com a nova pintura, a partir do impressionismo, as vanguardas poéticas passaram a ignorar seu público em nome da supremacia das questões próprias da linguagem, exigidas pelo mundo contemporâneo (como sempre fez a ciência). Além disso, também havia um componente ideológico, que, mais do que ignorar, pretendia espantar, nos dois sentidos, seu público (resumido na palavra de ordem “épater la bourgeoisie”, “espantar a burguesia”).
A poesia modernista de fato espantou seu antigo público – e foi disto acusada. Mas a história provaria que os modernistas sabiam o que estavam fazendo. Ao acabar com as formas fixas e trazer a língua coloquial para a poesia, eles afinal atraíram um público ainda maior, em um país que se urbanizava e se modernizava. Uma de suas revistas se chamava Klaxon, buzina. Um termo e um objeto conhecidos dos novos habitantes das cidades em rápida expansão, mas que não teria lugar no vocabulário poético antigo. Além, é claro, de servir para espantar.
A operação era, afinal, de mão dupla: afastar o antigo público conservador da poesia conservadora, e se aproximar da vida moderna, logo, potencialmente, do público moderno. Bandeira e Drummond, para citar apenas dois nomes, seriam popularíssimos. E, em menor escala, mesmo o complexíssimo João Cabral. E todos entraram para a corrente sanguínea da cultura brasileira. Vinícius de Moraes foi um poeta que migrou das formas clássicas para a linguagem modernista (apesar de sempre praticar o soneto, mas um soneto modernizado). Não haveria “Garota de Ipanema” sem o coloquialismo da nova poesia. Nem “Construção”, de Chico Buarque, sem as permutações cabralinas.
Mas as regras do jogo seriam de novo embaralhadas pelas vanguardas visualistas da segunda metade do século XX, com destaque para o concretismo. Segundo uma afirmação, se não me falha a memória, de Décio Pignatari, “a nova poesia seria concreta [ou visual] ou não seria”. Bem, ela foi. Mas não foi. Ao contrário do modernismo, com sua implosão das formas fixas e sua inclusão da língua coloquial, que expandiu as possibilidades, o público e o diálogo com outras linguagens (como a música popular) da então nova poesia, as poéticas visualistas se revelariam quase um beco sem saída. Nos anos 1990, seria decretada uma espécie de “morte das vanguardas” (Haroldo de Campos).
Em 1989 caiu o Muro de Berlim, soterrando o sonho socialista. Não havia mais vanguardas nem utopias. A própria contracultura (que dera origem à chamada “poesia marginal”, última tentativa deliberada de reencontrar certo público urbano e “moderno”) morrera anos antes (“The dream is over”, nas palavras imortais de Lennon). Havia agora um mundo mais complexo e mais confuso a encarar. E os poetas, confusos ou incapazes, ou incapazes porque confusos, não deram conta.
Para piorar, no vácuo e na confusão geral da época, emergiu o chamado “democratismo”, segundo o qual o “fim das certezas” era igual ao vale-tudo. Naturalmente, o caminho mais fácil. E mais infértil
Porque se a poesia não conseguiria ou não tentaria mais dar conta do mundo contemporâneo, restava se encapsular. O encapsulamento mais evidente foi a migração para a academia. Grande parte dos poetas atuais são formados em letras ou professores de letras, como se o contexto institucional pudesse servir de substituto para a perda do contexto cultural geral. A subcultura (no sentido de particularismo) acadêmica faz as vezes de uma nova e apequenada suficiência. Já os poetas que não são acadêmicos são, como regra, anêmicos (o que não exclui que os primeiros também o sejam). Pois sua poesia não têm a força nem os meios para dar conta do mundo contemporâneo. Portanto, no limite, é apenas tinta no papel (e sua satisfação com essa condição é outra manifestação de encapsulamento).
Em termos formais, essa anemia é mais evidenciada pelo prosaísmo, que se tornou dominante na poesia atual. Dizer prosaísmo é quase uma concessão. Pois ela é, em sua maior parte, pura e simples má prosa, apenas recortada aleatoriamente e margeada à esquerda. E quem precisa de uma prosa prosaica disfarçada de poesia? É esta a linguagem que falará do e falará ao complexo e confuso mundo contemporâneo? Então, a completa indiferença do público e a perfeita ausência na cultura atual são a por ora a única resposta.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).