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DE COMO PHILIP ROTH NÃO É UM ROMANCISTA BRASILEIRO

Comparar aclara. Comparar aclara. Comparar aclara. Vou esculpir esta frase em pedra, e pôr a pedra no meio da minha mesa, a fim de fazê-la penetrar aos poucos na areia mole da minha memória. Pensei nisso depois de ler o último romance de Philip Roth, Indignação (São Paulo, Cia das Letras, 2009). Um livro pequeno, de 171 páginas. Pequeno? Pequeno é o último livro de todos os Bernardo Carvalho, chamem-se eles Cristóvão Tezza, Chico Buarque, Milton Hatoum e um abrangente etc. Digo isso apesar de ter visto não poucas qualidades nos últimos livros dos dois últimos. Digo isso apesar de se poder demonstrar qualidade em quase tudo: “Nenhum livro é tão ruim que dele nada se aproveite”, disse Santo Agostinho (que não conhecia a poesia brasileira contemporânea). Mas isso não basta.

Pois basta o contato direto com a qualidade densa para que se esfarele a qualidade muito relativa a que se vai acostumando imperceptível ou deliberadamente por proximidade, hábito, complacência ou fechamento de foco (apesar de toda a infindável informação da “sociedade da informação” – ou talvez por causa dela, que acaba se tornando um ruidoso e indistinto pano de fundo). E principalmente pela distorção entre o ruim e o razoável. Se o ruim impera, torna-se a regra, logo, o padrão, a média. Mas se o ruim é assim sub-repticiamente alçado a médio, o razoável é automaticamente empurrado para bom – enquanto o bom assume silenciosamente o lugar do ótimo. E tudo afinal não passa de ilusão ou mentira.

Philip Roth é um escritor americano (no sentido lato) contemporâneo, completamente contemporâneo, pois vivo. Logo, é inexoravelmente pertinente compará-lo com outros escritores americanos (idem) vivos, como Bernardo Carvalho, Cristóvão Tezza, Chico Buarque, Milton Hatoum e um abrangente etc. E a comparação é devastadora.

Dei-me conta disso ao tentar explicar para minha mulher por que ela tinha de ler o livro de Roth. Acabávamos de deixar nossa filha pela primeira vez na escola maternal, e ela temia que seu afeto se desviasse para a… – não sei como se chama quem toma conta de uma criança pequena fora de casa, não sendo babá nem professora. Sabia, em todo caso, que ela podia ficar tranqüila quanto a isso, e disse-lho, pois afetos profundos não se desviam com facilidade. Mas que não podia, então, ficar muito tranqüila – porque esse era, afinal, o problema. O grande problema central da condição humana. Pois fora os sociopatas, incapazes de empatia, somos incapazes de indiferença. E sem indiferença – a ataraxia defendida por muitos filósofos antigos como o caminho da felicidade – não existe felicidade. Portanto, não existe felicidade. Ao menos, não a felicidade como condição, mas apenas como circunstância. Contei-lhe então a situação central do livro de Roth, de um pai que pira quando o filho entra, não na escola maternal, mas na universidade. Não porque seu filho costumasse ou começasse a se pôr em situações de risco. Nem porque seu filho desviasse agora inteiramente seu afeto pelo pai para novas relações. Marcus Messner, mas verdade, nada mais faz do que ajudar com vontade no pequeno negócio da família e estudar. Mas com o início da idade adulta, certa liberdade é inevitável. Marcus Messner a aproveita para ficar até mais tarde na biblioteca. O que é suficiente para o pai entrar em pânico e em pane. A nascente liberdade natural do filho de 17 anos faz nascer no pai um medo genérico e generalizado. Marcus Messner ama seu pai. Seu pai que fora forte e amável a vida inteira. Mas odeia seu medo recente e sua paranóia crescente.

Passei então a discorrer sobre como tudo isso era bastante judaico. Pois a despeito da figura caricata da mãe judia, são os pais judeus que costumam ter esse tipo de reação exagerada. Pode ser a paranóia, pode ser a depressão, pode ser a paranóia com a depressão, pode ser o excesso de expectativa e de pressão (como no caso do pai de Kafka), mas costuma ser o pai. Philip Roth não “judaíza” seu livro com teses sociológicas, apenas descreve a história de Marcus Messner. Eu é que vira nela uma subentendida lógica histórica (não sociológica) bastante judaica. Pois a história fez o mundo tornar-se um lugar particularmente perigoso para ser judeu. Ao lado disso, eram os homens judeus, os homens judeus adultos, os pais judeus, que tinham de sair de casa e encarar um mundo hostil todos os dias, e fazê-lo da maneira mais normal possível. Tudo isso tensionado dia e noite pelos finos e fortes fios esticados dos afetos, que jamais param de vibrar em silêncio, partindo de dentro de suas vísceras, atravessando a carne, a pele e as roupas e indo se ligar a outras vísceras, depois de atravessar outras roupas, outras peles e outras carnes, não raramente faz um homem estourar. Não se trata, todavia, do estouro estúpido do brutamonte alcoolizado, ou o do idiota estupidificado pela vida apequenada das grandes cidades modernas e seus “dias de fúrias” entre carros parados no trânsito. Trata-se do estouro da couraça da angústia. Mas tudo isso, disse por fim a ela, está no subtexto do livro de Roth, cujo texto trata das dificuldades da vida recém-adulta de Marcus Messner, um garoto judeu americano do início dos anos 50.

Então pulei para a descrição de sua própria angústia e de sua inaptidão para a adaptação à vida no campus universitário. Verdade que esta não era geral, automática ou necessária, pois se avoluma quanto mais ele se distancia de seu meio de origem, ao trocar uma universidade local da Costa Leste por uma do Meio-oeste, para aumentar a distância do pai, cuja paranóia não para de aumentar. O que não diminui a capacidade de Roth de descrever magistralmente a sensação de inaptidão para a adaptação que costuma acometer jovens adultos. E como isso pode ser intenso, incluindo a ansiedade sexual típica da idade. E concluí que, mutatis mutandis, muita coisa era semelhante ao que ela própria me descrevera de seu tempo de universitária, apesar de Marcus Messner ter sido um universitário dos anos 50 e ela dos anos 80.

Além disso, o fato de a inadaptabilidade de Messner explodir no campus do Meio-oeste serve para Roth, ao mesmo tempo, fazer um retrato cabal de um campus universitário norte-americano do Meio-oeste nos anos 50, e, ampliando o foco a partir dele, da própria sociedade norte-americana da época, recém-saída da Segunda Guerra e ainda mais recém-entrada na Guerra Fria, então momentaneamente esquentada pela guerra da Coreia – que funciona de pano de fundo a pontuar todo o romance, para emergir como cenário imediato do enredo no capítulo final.

Então afinal não se trata da vida de Marcus Messner, jovem judeu de Newark filho de um neoparanóico Joseph Messner. Trata-se da vida de Marcus Messner, jovem judeu de Newark filho de um neoparanóico Joseph Messner, mas também de certos atavismos históricos judaicos, que só fazem entretanto sentido, porque afinal só se realizam, como manifestação histórica e culturalmente particularizada da mais profunda característica humana, a centralidade, a profundidade e a densidade dos afetos. Porém se trata, ainda, das tensões de um jovem adulto inteligente ao se defrontar e confrontar com o mundo dos velhos adultos tal como construído por estes sem a participação daquele: liberdade real, mas muito relativa, versus obstáculos mais ou menos relativos, mas sempre reais. E do retrato da vida universitária no Meio-oeste nos anos 50. E do retrato da juventude ocidental nos anos 50. E do retrato do mundo visto desde os Estados Unidos nos anos 50. E da grande história do século XX, aquela que liga a Segunda Guerra à Guerra Fria passando pela guerra da Coreia, que Roth resgata de seu relativo esquecimento histórico determinado pela subsequente e mais momentosa guerra do Vietnã. E da aguda lucidez histórica de resgatar a guerra da Coreia quando o noticiário alardeia os recentes testes com bombas nucleares e mísseis balísticos da Coreia do Norte, cuja existência não faz sentido sem a Guerra Fria e a guerra da Coreia. E da assustadora descrição do exército chinês em ação, lutando ferozmente contra soldados norte-americanos, como se deu na guerra da Coreia, no momento em que a China emerge como a única potência capaz de presumivelmente desafiar o poder americano.

Como se tornam risíveis as historietas artificiais e artificiosas de um Bernardo Carvalho em livrinhos como Mongólia, O sol se põe em São Paulo e O filho da mãe, em que países orientais servem de pretexto para exotismos ad hoc. Como se tornam pequenos os enredos de época, as histórias familiares, as ficções memorialísticas e históricas e as histórias em geral dos romancistas brasileiros contemporâneos. E como é sem poder seu estilo (apesar de eventualmente “experimental” ou “contra-hegemônico”), perto da maleabilidade, da agudeza, do virtuosismo, da lucidez, da virilidade, da abrangência, da inteligência e do humor da escrita de Roth.

Restaria ainda falar de uma particularmente magistral descrição de uma overdose de morfina, cujo desligamento do mundo, mas não da memória, torna-se uma mimese da vida além da morte – sem contar a profunda ironia que há nisso, ao operar a completa dessacralização dessa “vida”, funcionando afinal como sua caricatura. E da não menos magistral descrição do dia a dia de um açougue kosher – e aqui Roth é, naturalmente, especificamente judaico. Mas não particularmente judaico, pois há muito de universal na situação de um pai que trabalha duro enquanto é ajudado em seu pequeno negócio familiar por seu filho. Além disso, isso permite ao livro se fechar, se não em círculo, em espiral, quando carnes, sangue e facas voltam a aparecer no final, muito além do pequeno açougue em que aparecem no início, e envolvendo não mais bois e galinhas, mas norte-americanos e chineses. Do pequeno açougue incrustado num canto do mundo ao grande açougue a céu aberto do mundo. Definitivamente, Philip Roth não é um romancista brasileiro.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).