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MILTON HATOUM E A CONDIÇÃO EXTEMPORÂNEA DO ROMANCE

A fase áurea do romance

Entre a segunda metade do século XIX e o início do XX, o romance, então em sua “fase áurea”, foi a linguagem por excelência que deu a conhecer a si mesmo o mundo urbano, industrial, burguês, enfim, capitalista (como na grande tríade francesa, Balzac-Flaubert-Proust), assim como a épica foi a linguagem do mundo clássico, guerreiro e aristocrático. Tal mundo, no entanto, além de conhecido (em grande parte pelo próprio romance), não é mais um “mundo”, no sentido de ser, agora, alguma coisa em transformação acelerada.

Sua organização social, por exemplo, é hoje fluida, com o virtual desaparecimento da família patriarcal (que resiste — e agressivamente — somente em culturas como a islâmica). Daí o romance contemporâneo, em um Philip Roth ou em um Michel Houellebecq, centrar-se em indivíduos — e indivíduos descentrados, não por serem particularmente excêntricos, mas pela inexistência de um centro reconhecível, social, comportamental ou conceitual. Se em Camus (O estrangeiro) o estranhamento era existencial, era, por seu turno, reforçado e parcialmente explicado pelo estranhamento cultural e geográfico, ou seja, a presença francesa na Argélia. Em Roth e em Houellebecq isso foi introjetado: todos são estrangeiros em seu próprio meio.

Um romance que voltasse a retratar o período da fase áurea dessa linguagem seria, portanto, ao mesmo tempo apropriado e extemporâneo. Apropriado, porque não se trata então de abordar o mundo contemporâneo, e extemporâneo pelo mesmo motivo. É o caso do último livro de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado (SP, Cia das Letras, 2008, 107 pp.). Cuja condição ambígua torna a aproximação a esse pequeno romance de linguagem e estrutura narrativa aparentemente simples menos simples.

Lembro-me, por exemplo, do maior falsário da história da pintura, o holandês Han van Meegeren, o homem que “completou” a escassa obra de Veermer. Os Veermer de Van Meegeren eram virtualmente indistinguíveis dos originais. Ao mesmo tempo extemporâneo — pois do século XX — e apropriado, pois retrata personagens do século XVII à maneira do século XVII. A questão que se coloca é, em primeiro lugar, por que retratar personagens do século XVII? E se acaso houver razão para fazê-lo, por que ao modo do século XVII? A falsidade de Van Meegeren estava, afinal, no modo. Pois se podem existir motivos para retratar personagens do passado, não há nenhum para pintar, hoje, à maneira do passado.

Hatoum é, obviamente, consciente dessa armadilha. Sair dela não é, porém, tão óbvio assim. Existem, por exemplo, inúmeros exemplos, inclusive no romance brasileiro contemporâneo, de soluções à Van Meegeren, como em uma “biografia romanceada” de Gregório de Matos escrita, pretensamente, no português do século XVII. Não é o caso de Hatoum.

O romance de Hatoun em si: Órfãos do Eldorado

 

Milton Hatoum escreve com frases curtas, muitas vezes muito curtas: “Dinaura. Não lembrava com nitidez do rosto; dos olhos, sim, do olhar. Rever o que foi apagado pela memória é uma felicidade. Tudo voltou: o sorriso, o olhar vivo no rosto anguloso, olhos mais puxados que os meus. Uma índia? Procurei a origem, nunca encontrei” (p. 31). Mas as frases curtas, em suas mãos, não geram um ritmo acelerado. Ou geram um ritmo que não parece muito acelerado, em função, em parte, do ambiente narrativo extremamente moroso. Esse ambiente, no entanto, não parece “exoticamente” moroso, provavelmente pelo próprio contraste com as frases curtas e, por definição, rápidas.

Há, enfim, uma difícil modulação por contraste entre ritmo frasal e ambiente narrativo. O resultado é tal que, por um lado, o ambiente “exótico”, distante no tempo (início do século XX), no espaço (a região de Manaus) e na cultura (regional), não parece exótico, denotativamente, externo, ou seja, distante, apesar mesmo de tais distâncias Pois as frases rápidas, substantivas e muitas vezes nominais de Hatoum são, numa palavra, modernas.

Por outro lado, as frases substantivas, nominais e rápidas de Hatoum não parecem modernas demais, ou seja, urbanas. Pois suas características rítmicas e sintáticas são, outra vez, moduladas.

Em primeiro lugar, pelo vocabulário, pois pouco ou nada há de urbano nesse ambiente em que predominam árvores, rios, ribanceiras, redes, calor, suor, barcos, ternos brancos — incluindo a particularidade da sonoridade e dos elementos mesmos dos nomes próprios: “Num sábado, Joaquim Roso e Ulisses Tupi me convidaram para jogar dominó na pensão de Salomito Benchaya. Denísio Cão […] se intrometeu no jogo […]” (p. 35).

Em segundo lugar, tais frases são moduladas por uma sutilíssima poetização. Uso poetização como uma variante de minha expressão prosa poetizada, pela qual pretendo definir a prosa comumente dita poética — não por ter cenas “idílicas”, mas por ter palavras recorrentes. Exemplo paradigmático (e sem parar imitado) na literatura brasileira contemporânea são as Galáxias de Haroldo de Campos: “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço”. Prosa poetizada, eu digo, pois contém um elemento definidor da linguagem poética, a recorrência sonora, sem que esta, porém, possa impor à sintaxe, propriamente prosaica, ou linear, a discrição, o recorte, a fragmentação sintática do fluxo verbal — o outro elemento definidor da linguagem poética. Daí não ser de fato uma prosa poética. Tampouco é poética a prosa de Hatoum. Mas ela é, não obstante, poetizada, ainda que por recorrências sutis: “CaminhaVa até a Escada dos Pescadores, Via o Vulto de cabeças no Vão das janelas, eram Velhos insones na escuridão; não sei se riam ou se acenaVam para mim” (p. 32); “Eu ouVia as preces, e Via os fiéis no conVés com uma Vela acesa na mão.” (p. 42); “Saí aturdido com outras lembrANçAs; a pele molhada, o cheiro de lavANdA, o corpo beijado e possuído com tANtA ÂNsiA na noite chuvosa” (p. 52). Tais recorrências são eventualmente aliadas à adequação sonora com as frases, de que é exemplo a grande quantidade de ll em “De Longe, fiquei Lambendo aqueLe corpo na Luz do fim de tarde. Nem Lembrei da Escada dos Pescadores.” (p. 34), em que uma consoante dita líquida pontua frases que descrevem o desejo carnal. Há ainda um evidente controle do ritmo. Tudo isso retira da rapidez, do recorrente nominalismo e da substantividade da frase de Hatoum qualquer marca de secura, velocidade e fragmentariedade urbanas (como em Hemingway ou no melhor Rubem Fonseca, o dos primeiros contos). Porque as recorrências sonoras são recorrências, logo, retornam enquanto avançam. E porque assim “espessam”, adensam a tessitura sonora.

O estilo de Hatoum move-se, enfim, por uma região insuspeitada. Uma prosa moderna que não parece obviamente moderna, uma ambiência exótica que não parece distante.

O moderno nos é próximo, logo, não sentimos estranhamento na matéria do texto. Ao mesmo tempo, um texto modernamente moderno seria aqui estranho à própria matéria narrativa. Através desse movimento em camadas, de aproximar o texto do leitor por sua modernidade, enquanto, por outro lado, o aproxima da matéria exótica por sua plasticidade poetizada, o resultado é a eliminação do exotismo, da distância, fazendo afinal emergir o próprio. A função narrativa então se realiza, pois o resultado é a imersão do leitor em tais acontecimentos.

Se a prosa ruim faz do leitor um turista, a boa prosa o torna um viajante. A diferença entre o turista e o viajante, como se sabe, é que o turista, quando viaja, espera no fundo encontrar em seu destino a sua cidade, ou seja, tem olhos de fato para o que já conhece, que então reconhece, enquanto o viajante despe sua cidade ao partir. Não se faz turismo na prosa de Milton Hatoum.

Domínio do gênero

Órfãos do Eldorado é uma pequena saga familiar, um verdadeiro romance em miniatura. Verdadeiro romance, e não novela (como refere a “orelha”), pois novela não passa de um anglicismo para romance, não existindo como gênero. Novela não é o mesmo que romance curto. E um romance curto é um romance. O que o diferencia do conto, a outra forma da prosa de ficção por excelência, é fundamentalmente ser o conto a narrativa de uma situação, de uma circunstância, de uma condição (daí seu pequeno tamanho habitual), enquanto o romance é a biografia narrada — isto é, não apenas descritiva — de vidas inventadas (daí seu grande tamanho habitual). Nada impede, porém, que um conto seja relativamente longo (A metamorfose), ou que um romance seja relativamente curto, apesar da tendência em contrário.

Milton Hatoum é um romancista com pleno domínio do gênero. Daí poder escrever um romance muito curto (legível em uma noite) que não parece, e não é, amputado ou apressado (conseqüência direta, em parte, da microdimensão estilística das frases curtas). Na verdade, talvez a única nota falsa do livro seja um pequeno excesso, a repetição da referência à lenda da cidade encantada, da cidade submersa, do Eldorado amazonense, para onde teria ido a amante desaparecida do narrador.

Narrador que tem com o pai uma relação fria, imposta pelo último, ao culpar o filho pela perda da mulher, morta no parto. Mas se isto explica a inépcia, a inaptidão, o fracasso e os fracassos do filho face à operosidade do pai, não os explica exageradamente, pois não há relações unívocas de causa e efeito fora de um laboratório. E Hatoum não faz prosa sociológica nem psicológica. Fato é que a própria frieza do pai, se é intensa, não é excessiva, ao mesmo tempo em que o indolente herdeiro do rico self-made man, que afinal malbarata a fortuna laboriosamente acumulada pelo progenitor, explica-se por si próprio. Além disso, como complicadores ou complexizadores da situação, intervêm ainda as histórias brasileira e mundial, pois a Primeira Guerra, a crise de 29 e o início da concorrência asiática acabam com o “ciclo da borracha” e sua economia monoexportadora, origem da fortuna paterna. Em meio a tudo isso, o grande fracasso do filho é o da vida amorosa, ao se apaixonar por uma órfã que, apropriadamente, vive em um orfanato, o que no entanto não impede seus encontros amorosos e, enfim, o encontro sexual. Este redundará, porém, no maior desencontro de sua vida desencontrada, pois ela desaparece em seguida — tornando-se a obsessão ociosa que sustentará, ao menos psicologicamente, todas as suas ociosidades reais.

Um passado já conhecido

Faço, agora, uma comparação talvez não de todo impertinente. Antes do romance de Hatoum, li uma história da Guerra dos Seis Dias, escrita por um historiador profissional a partir de documentos recentemente desclassificados. Trata-se, portanto, de um acontecimento histórico de meados do século XX (1967). Mas, em primeiro lugar, é uma visão desse acontecimento somente possível hoje, pois a desclassificação dos documentos políticos e militares é um fato contemporâneo. Em segundo lugar, esse é um dos fatos mais determinantes na gênese do mundo contemporâneo, ao definir um status geopolítico no Oriente Médio que ainda perdura, e tem estado no centro da política internacional desde então. Há muito em comum entre o romance e a história. Esta tenta narrar do modo mais verídico possível acontecimentos verdadeiros, aquele tenta narrar da maneira mais verídica possível acontecimentos fictícios. A veracidade ou verossimilhança é, portanto, comum.

O sentido da história (ao menos da história recente) é evidente: o presente é seu resultado. Trata-se, a história, da genealogia do presente. Qual, porém, o sentido do romance? Escrever a história do tempo presente. História do presente, pois não se trata de sociologia nem se trata, como regra, do passado.

Quando, porém, o romance aborda o passado, o que o justifica? O fato de se tratar de pessoas e de acontecimentos comuns, cotidianos? O que, então, o justifica face à história do cotidiano ou das mentalidades? Provavelmente, o fato de o historiador apenas descrever, e de maneira receosa, esse cotidiano desaparecido, enquanto o romancista o faz destemidamente reviver. E Milton Hatoum é um grande revivificador. Não apenas seus personagens, mesmo os secundários, têm vida própria (com destaque para a ama-de-leite do narrador, Florita), como ganham vida as paisagens e suas circunstâncias. Particularmente poderosa é a descrição da fazenda Boa Vida, uma vasta terra alagadiça à margem de um dos grandes rios da região. O mesmo poderia se dito de Vila Bela, onde se passa a maior parte da história, e da Manaus do começo do século XX.

Mas para que, afinal, reviver romanescamente um passado já conhecido, justamente, através de romances de sua própria época (neste caso, por obras como as de Inglês de Souza e principalmente Ferreira de Castro – cuja obra melhor realizada, A selva, data de 1930)?

Um romance como O nome da rosa de Eco parece então mais pertinente, pois como não existia a atual forma romance na Idade Média, o único modo de revivê-la é escrevendo hoje romances medievais. Como, porém, Eco não tem vocação para falsificador à la Van Meegeren (como tampouco Milton Hatoum), seu romance “medieval”, se por um lado se apóia num vasto conhecimento da época, para poder fazê-la reviver, por outro jamais esquece ou abandona sua condição de obra do século XX — daí toda sua dimensão metalingüística. Em todo caso, um romance medieval só pode ser obra do século XX (ou, no máximo, do XIX). Isto, porém, não é verdade para um romance passado no início do século XX, que talvez devesse ser obra do início do século XX.

Hatoum afinal a justifica romanescamente por se tratar, ao fim e ao cabo, de uma história contemporânea. Pois o que se lê, na verdade, não é simplesmente uma história passada no início do século XX, mas as memórias de um velho narrando sua vida no início do século XX. Mas isto não convence inteiramente, pois a condição contemporânea, ou quase contemporânea, do velho é uma fina moldura que cerca, no início e no fim do romance, uma história passada no início do século XX.

Milton Hatoum, em Órfãos do Eldorado, resolve de modo eficaz uma das duas grandes questões que envolvem a escritura de um romance ambientado no passado romanesco, aquela relativa à forma, à sintaxe, à tessitura do texto. Mas não consegue resolver a segunda questão, que talvez não possa ser resolvida. Resta saber se não o pode por não ter, de fato, nenhuma resposta realmente satisfatória.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).