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BERNARDO CARVALHO FRACASSA EM O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO

Sibila prossegue sua avaliação dos livros vencedores dos prêmios Jabuti e Telecom Portugal

Luis Dolhnikoff

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O que se espera de um romance? A questão assaltou-me ao me deparar com o título do último livro de Bernardo Carvalho (SP, Cia das Letras, 2007, 164 pp.): O sol se põe em São Paulo. Pois a frase, assim isolada, tem ao menos dois sentidos: um, circunstancial, o outro, digamos, existencial. Um sentido circunstancial, pois refere um instante qualquer, quando o sol ali se põe — o que pressupõe então um advérbio que fica, porém, implícito: agora o sol se põe em São Paulo, eis que o sol se põe em São Paulo, aqui o sol se põe em São Paulo, e tudo isso, agora, eis que, aqui, remete diretamente ao romance — que será, portanto, tão paulistano quanto sombrio, e tanto mais paulistano quanto mais sombrio. E um sentido existencial, pois é também, contraditoriamente (logo, complexamente) uma afirmação não-circunstanciada, logo, absoluta: “o sol se põe em São Paulo”, ou seja, em São Paulo o sol sempre se põe, ou põe-se necessariamente: São Paulo faz o sol se pôr, São Paulo é o anti-sol. Teria enfim São Paulo o romance contemporâneo que a transforma em seu personagem central?

Bernardo Carvalho é o que eu chamo de um “complicador de enredos” (pois se um romance pode ser muitas coisas, estas podem, por sua vez, ser agrupadas e sintetizadas em umas tantas). Em O sol se põe em São Paulo, ele pratica sua arte através de um triângulo amoroso, da troca de identidade, do deslocamento cultural e do uso da metalinguagem. Nada disso, porém, é suficiente para ocultar a principal característica do livro, sua banalidade — que se manifesta, se desdobra e se espalha de várias maneiras, nos diversos aspectos que fazem um romance. Por exemplo, na linguagem em si mesma, carregada de frases-feitas e conceitos-clichês. Isto poderia ter um sentido e um propósito literários, se tivesse um propósito e um sentido literários. Mas, neste caso, não tem:

“Assim como as obras não podiam estar separadas dos contextos em que foram criadas, assim como não podiam escapar ao presente, nós também não” (p. 10); “minha pífia ambição de escritor” (p. 11); “uma noite saiu do seu canto debaixo da escada, como uma aparição” (p. 11); “Uma vez, lá pelas tantas” (p. 11); “ainda nutria aquela fantasia” (p. 12); “São Paulo não se enxerga” (p. 14); “uma cidade sitiada pela miséria e pelo crime, dos quais [o poder] se alimenta embora tente em vão excluí-los” (p. 14); “Tinha de ganhar coragem para fazer o que não era do meu feitio” (p. 15); “No dia seguinte, lá estava eu de novo” (p. 16); “ela guardava uma história” (p. 17); “Não tinha papas na língua” (p. 18); “O que eles chamam mercado de trabalho é só uma farsa que se auto-alimenta para que uns possam foder os outros” (p. 19); “no mundo da razão, um mundo esvaziado de mitos” (p. 23); “Só um louco, como o professor, podia me levar a sério” (p. 24); “Durante muito tempo eu tentei fugir como o diabo da cruz” (p. 28); “O inferno era aqui mesmo” (p. 29); “uma cidade sitiada pelo crime” (p. 30); “A velha entrou na sala como uma assombração” (p. 30); “Eu tinha firmado um pacto” (p. 30); “A sua história era um acerto de contas” (p. 32); “Ela estava imbuída de uma missão” (p. 32); “A doença daquela relação” (p. 35); “Era uma moça inteligente” (p. 36); “a outra era só ouvidos” (p. 39); “Estava cheia daquela farsa” (p. 41).

Outra coisa que o romance não tem é ironia, em qualquer grau. Um personagem pode se levar a sério, como o personagem central deste livro, e ainda assim o narrador, um observador, o próprio texto, não fazê-lo. Pode, igualmente, levar-se a sério e ser assim tomado pelo livro, logo, pelo leitor: tudo depende da adequação. Não se espera muita ironia num romance naturalista de Zola, por exemplo, porém não se espera outra coisa num romance contemporâneo de Philip Roth. No caso de O sol se põe em São Paulo, por outro lado, há uma seriedade século-dezenovista num personagem que, ao não ser irônico, torna-se patético, justamente por não poder ser levado a sério.

O grande problema desse personagem é não conseguir ser escritor. Seu problema adicional, tornar-se redator publicitário por não conseguir ser escritor. Pode-se, por simples e sã empatia humana, respeitar a frustração existencial de alguém que deseja ser ou fazer alguma coisa que jamais consegue. Principalmente quando não há qualquer grande dor envolvida. Existisse uma grande dor, poderia ou deveria haver mais do que o mero respeito à frustração, alguma forma de comoção, cujo verbo, comover, significa ser movido junto, ser co-movido, por essa dor. Mas aqui não há dor, há apenas veleidade vazia. O sujeito quer ou queria ser escritor, em sua adolescência e em seu tempo de estudante. Hoje, é um redator publicitário desempregado, que por dezenas de páginas lamenta não ter se tornado afinal um escritor, o que porém não o deixa profundamente irritado, furioso, angustiado pelo vislumbre de uma possível grandeza certo dia antevista e agora irremediavelmente perdida, ou coisa equivalente. Depreende-se então que seu motivo para querer ser escritor era a vaidade — daí, aliás, entender-se facilmente por que não se tornou escritor. Por tudo isso, o fato revela-se meramente desinteressante, a princípio, tão desinteressante quanto o próprio personagem, e logo francamente enfadonho, pois a questão se arrasta e se reitera e se repete por nada menos que 40 páginas, não sem antes se concentrar em uma velha dona de um restaurante medíocre que, para pasmo do narrador (“Devo ter arregalado os olhos de um jeito que costumava afligir minha mulher” — p. 11), de repente lhe pergunta: “O senhor é escritor?”, para em seguida acrescentar enigmaticamente: “O melhor escritor é o que nunca escreveu nada” (p. 12).

O que então lhe provoca, agora sim, uma “espécie de paixão. Me levantei e fui ao banheiro com o mero pretexto de perguntar à dona do restaurante o que tinha afinal contra a literatura” (p. 15). Dando assim ensejo a páginas e mais páginas de indagações: “Não estava ali para julgá-la, e, se o fizesse, provavelmente nunca ouviria o que ela guardava sobre a literatura” (p. 16); “Alguma coisa na primeira vez em que me dirigiu a palavra, perguntando se eu era escritor, me dizia que ela guardava uma história e procurava alguém para escrevê-la” (p. 17); “Embora eu não fosse escritor, foi esse suspeita que me deu ânimo para insistir e voltar dois dias depois, como quem se ilude a ponto de crer que a vida é feita de sinais e que afinal está diante de sua grande chance” (p. 17); “[Um] hábito que vinha conservando sempre que ia ao restaurante, mesmo antes de querer descobrir o que a velha tinha contra a literatura” (p. 18); “Nunca pediu para ler meus livros, que não existiam, é claro” (p. 20); “A responsabilidade era minha. Eu tinha firmado um pacto com a velha japonesa. Eu era o escritor” (p. 30); “[Se] era melhor não escrever, por que tinha me chamado? Aonde é que ela queria me levar?” (p. 32). A verdadeira pergunta, porém, é aonde quer nos levar a “enorme” questão envolvendo a possível opinião de uma velha dona de um restaurante medíocre sobre a literatura.

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O fato de o frustrado personagem realmente se interessar por tal “mistério”, ao lado da repetição da questão e da situação, somados ao motivo já depreendido pelo leitor para ele não se tornar escritor, torna tais páginas romanescamente ociosas: uma desculpa longa, complicada e pretensamente metalingüística (logo, “moderna”) para introduzir a história da velha japonesa — que não consegue, naturalmente, despertar o interesse do leitor, ainda que desperte a “paixão” do patético narrador.

Mesmo porque, ele próprio fornece afinal uma explicação alternativa para sua vontade de ser escritor. Ainda que tal explicação nada explique. De um lado, ele não a leva a sério, já que apesar dela não pára de questionar, ainda que sem real profundidade, a razão de ser ou não ser escritor. De outro, a explicação é apenas uma forma rebuscada de dizer que se tornar escritor é completar a transição cultural familiar — o que, naturalmente, nada explica: “Escrever em português era para mim uma forma de romper com a ilusão de imigrantes dos bisavós (que era possível escapar ou voltar atrás)” (p. 20). Romper com a ilusão dos bisavós?

Junto a esse problema de estrutura, há ainda problemas que são de fatura. Por exemplo, o didatismo: seja quanto à situação narrativa (“Nunca pediu para ler meus livros, que não existiam, é claro” — p. 20), seja quanto à introdução de referências: (“William Blake, autor do Casamento do Céu e do Inferno” — p. 10). Ou o uso facilitado de certos termos: “Era uma velha de cabelos grisalhos e escorridos, presos num rabo-de-cavalo que lhe dava uma aparência escolar, um vestígio anacrônico da juventude distante” (p. 11). Anacrônico, porém, ao contrário do uso comum, refere-se não ao que está fora do tempo, mas a um erro de cronologia; o mais pertinente, aqui, seria portanto extemporâneo. Ou então a utilização de expressões que traem certo desconhecimento do meio em questão: “[Estava] desempregado e separado da minha mulher, depois de me foder por nada, trabalhando como redator de comerciais de uma agência de publicidade” (p. 11). Fui redator publicitário durante anos em São Paulo, e jamais ouvi a expressão “redator de comerciais”. O que se diz é simplesmente “Sou redator publicitário”. Ou, mais comumente, “Sou publicitário”. Ninguém, portanto, diria “redator de comerciais” a não ser que fosse deliberadamente para se menosprezar. Mas não é o caso. Porque o tom do narrador é descritivo; porque não há qualquer indicação de intenção, por exemplo, o uso de aspas: “trabalhando como ‘redator de comerciais’”; e porque, se o objetivo era ser irônico, a expressão “redator de comerciais” é tão fraca (pois afinal é disso que se trata) que se torna inútil. A única explicação é mesmo o desconhecimento do meio. O que se reforça pelo didatismo: “trabalhando como redator de comerciais de uma agência de publicidade” — e onde mais se poderia sê-lo?

Por fim, há as repetições. A literatura moderna, e mais particularmente modernista, fez largo uso da repetição como elemento de linguagem. Porém aqui não se trata de elemento de linguagem, mas apenas de vício narrativo, mera reprodução de informações já fornecidas:

Ao longo do processo, Jokichi terminou por localizá-los, em Ikuno, mas eles se recusaram a continuar a ouvi-lo quando tentou informá-los da morte do filho. Não queriam acreditar naquela farsa. O filho simplesmente desaparecera em 42. Nunca mais ouviram falar dele. Eram simples e desconfiados. (p. 47)

Com a rendição, Jokichi havia procurado os pais do morto para informá-los da morte do filho desaparecido. Os velhos ignoravam o que acontecera. Nada sabiam da impostura. Não ouviam falar do filho desde 42, quando ele sumira sem deixar traços. Inconformados e humilhados, eles se recusaram a acreditar no que Jokichi lhes contava. […] Eram simples, mas orgulhosos. (p. 88)

As informações são exatamente as mesmas, e quase o mesmo é o texto. O leitor, portanto, já sabe das informações e do texto. E se já os sabe, para que lê-lo de novo poucas dezenas de páginas à frente? Ou na página seguinte: “[Havia um novo personagem.] Era a raposa, o único ator a usar máscara” (p. 124); “[Ele] interpretara a raposa, o único personagem caracterizado com máscara” (p. 125). Ou, enfim, na mesma página:

Os pais do soldado morto não podiam suspeitar que estivesse mentindo, e muito menos que fosse ligado a Jokichi e agisse em seu nome. […] Não perguntavam de onde vinha o dinheiro. Não lhes passava pela cabeça que era de Jokichi e que o ator seguia as instruções dele. (p. 89)

3

Resta o enredo. Num livro de cerca de 160 páginas, até a página 40 não há enredo. Há apenas o enfadonho ir e vir de um patético “redator de comerciais” desempregado a um medíocre restaurante japonês no bairro da Liberdade, onde não se decide a “enfrentar” a velha proprietária, pois esta certo dia lhe perguntara se ele era escritor. A partir daí, o enredo, enfim, começa. Não sem que antes uma grande dose de exotismo de ocasião se contrabandeie, preparando esse enredo: “Quando, um ano depois, num apartamento em Tóquio, o homem de lábio leporino terminou de ler a carta…” (p. 13). Um homem de lábio leporino num apartamento de Tóquio?

O enredo é, enfim, apresentado na quarta dezena de páginas, e se refere, em suma, a um triângulo amoroso envolvendo, nas palavras sérias do narrador, “uma moça inteligente”. Acontece de a tal “moça” ser uma antiga amiga da dona do restaurante, no Japão pós-Segunda Guerra. Estamos, assim, em um enredo étnico, histórico, multiculturalista, a lista toda (o que não é uma particularidade deste livro, mas sim uma característica do autor, cujos romances já se passaram na Floresta Amazônica, na Mongólia etc., mas não em São Paulo de modo a fazer da cidade mais importante do país o grande personagem).

Quando a história afinal começa, à página 42, ainda é, no entanto, difícil avançar sem ser perturbado pelos vícios do texto. Pois o narrador-escritor-frustrado, ao contar o que a velha lhe contara, assume a condição de comentarista. Assim, enquanto nos deparamos, de início, com quatro páginas de história genealógica do vértice masculino do triângulo, que não se decidem entre a narrativa ficcional e o texto de história, e que afinal não servirão, em sua pletora de detalhes e circunstâncias, ao enredo, por outro lemos de contrabando as opiniões do narrador, sempre ao mesmo tempo “politicamente corretas” e essencialmente equivocadas.

Jokichi, o marido de Michiyo, descendia por parte da mãe de uma família de antigos proprietários da região de Nagano. Mesmo depois da reforma da época Meiji, tinham conseguido manter boa porção das terras, graças à influência e às maquinações políticas do avô, que pagou uma quantia simbólica pela propriedade que já estava sob o controle da família havia séculos, assegurando assim a passagem para a modernidade, ao mesmo tempo em que perpetuava as relações paradoxais de senhorio com os agricultores locais. […] O pai seguiu o caminho do avô e multiplicou a fortuna da família. Era um homem culto, politicamente moderado, ocidentalizado e avesso ao nacionalismo militarista, embora em contradição com os lucros que esse mesmo militarismo lhe proporcionava. (pp. 42-3)

Relações paradoxais de senhorio com os agricultores locais? E onde está o paradoxo? Pois o próprio texto acabara de descrever uma “modernização” oportunista e de fachada. Em contradição com os lucros que esse mesmo militarismo lhe proporcionava? Mas o texto fala de um homem de negócios que multiplicou a fortuna da família e é apenas “avesso” ao militarismo, não estando, portanto, em franca oposição ou recusa radical a ele. E um homem de negócios é um homem de negócios.

Pior, porém, são as inadequações do tipo “redator de comerciais”: “Quando o Japão entrou na guerra, em 41” (p. 43). Só havia então uma guerra: a guerra européia, confrontando Alemanha e Itália a Inglaterra e URSS. Motivo, aliás, de os EUA não lutarem nela — pois uma grande oposição interna sustentava que o país já fizera o bastante ao intervir para acabar com a interminável Primeira Guerra, em 1917. EUA que, portanto, só estarão em guerra a partir de dezembro de 1941, dois anos depois do início do conflito europeu, e por terem sido atacados unilateralmente pelo Japão — que aproveita o enfraquecimento dos impérios europeus no sudeste asiático para tentar erguer ali seu próprio império. O único obstáculo restante era o poderio naval norte-americano no Pacífico — razão do ataque à Pearl Harbor. Logo, o Japão não entrou em guerra alguma, já que não atacou a Europa, mas sim começou uma outra guerra, a do Pacífico — que, somada à guerra européia, resultaria afinal na Segunda Guerra Mundial. Claro que é nesta guerra que o narrador pretende ter o Japão “entrado”. Mas como não havia guerra mundial nenhuma até o próprio Japão atacar os EUA, a afirmação é historicamente equivocada. O que se torna aqui relevante por fazer parte de uma minuciosa contextualização histórica (ainda que sua minuciosidade seja ociosa para a narrativa).

Mas o pior de tudo talvez sejam as inconsistências propriamente romanescas. Logo no começo da narrativa, isto é, a partir da página 40, apresenta-se a situação central da trama, uma troca de identidades. Ela é originada pela ida de seu personagem principal, “Jokichi, o marido de Michiyo”, para o interior, onde ficaria durante toda a guerra. Pois Jokichi, apesar de se alistar antes mesmo de ser convocado, não quer ir de fato para a batalha. Quer apenas escapar da “opressão familiar” (p. 44). O pai, que nutre por ele um “amor insano” (p. 44 — sabe-se lá o que há de insano num pai tentar proteger a vida de um filho), o convence portanto, sem dificuldade, a ir administrar a propriedade da família no interior, enquanto não chega sua convocação — e só por esse período. Jokichi no entanto fica placidamente administrando a propriedade até o fim da guerra, quando afinal se surpreende ao descobrir que o pai o enganara, jamais enviando a convocação, e ainda alistando em seu lugar um operário, que adota seu nome e morre em ação. Como, porém, se explica sua surpresa? Somente se fosse um perfeito idiota, que não percebe, ao longo de quatro anos de guerra total, que talvez já devesse ter sido convocado — afinal, todos os homens de sua idade o foram… Mas ele não é absolutamente um idiota. Pois a narrativa explicita: “Jokichi era um homem inteligente. Nada daquilo teria acontecido sem sua cumplicidade, nem que fosse parcial” (p. 44). E ainda mais diretamente:

Setsuko [a velha do restaurante] não descartava a hipótese, de todas a mais verossímil, de que o próprio Jokichi tivesse se apresentado no interior não como filho de seu pai, mas como um simples administrador enviado por ele para substituir o anterior, convocado para a frente de batalha. Ou seja, deve ter participado da deserção de modo ativo e consciente, assumindo desde então outra identidade ou pelo menos escondendo a sua. (pp. 44-5)

Em primeiro lugar, como se pode esconder a própria identidade sem adotar outra? Pois não é possível ser ninguém. Mas o mais importante: se ele participou da deserção e não era um idiota, como pode ficar surpreso? Pelo fato de seu pai ter enviado outro, um operário, em seu lugar? Ora, Jokichi era “um homem inteligente”, e o Japão era um Estado fascista. Não seria fácil escapar à convocação militar. Portanto, e considerando ainda as relações de classe tradicionais, nada haveria de surpreendente na ação do pai. Mas Jokichi se surpreende, apesar de sua cumplicidade e de sua inteligência. Além disso, apesar de sua cumplicidade e da inteligência do leitor, passa por um “processo absurdo de humilhação como desertor” (p. 46). Mas por que absurdo, se ele era de fato um desertor (“deve ter participado da deserção de modo ativo e consciente”)? E como pode ter se submetido a tal processo “para não sujar a memória do pai, que tudo havia arquitetado sem seu conhecimento” (p. 46)? Sem seu conhecimento? Ele não era inteligente? Não tinha “participado da deserção”? Tudo parece resultar da intenção deliberada de multiplicar o jogo de troca de identidades (não por acaso, a “questão da identidade” é comumente apontada pela crítica como algo central na obra de Carvalho). Assim, Jokichi “assume outra identidade ou pelo menos esconde a sua”, enquanto o pai faz outro homem assumir sua própria identidade. A troca de identidades é tão antiga quanto as comédias latinas de Plauto. Se isto não compromete a priori seu uso, tampouco pode, por si só, justificar qualquer coisa para ser construída, principalmente inconsistências flagrantes.

Seria inverossímil, no entanto, que um operário tivesse tomado o lugar de Jokichi e partido para o Sudeste Asiático só por dinheiro, para ajudar a família. Era preciso saber quem era esse rapaz. “Tudo nesta história se resume às razões que levaram o operário a aceitar o papel de protagonista dessa farsa”, me disse Setsuko. “É possível que nada tivesse acontecido se ele não fosse quem era”. (p. 45)

Se tais afirmações carecem de sutileza, também dela carece o enredo: pois tal revelação é guardada para as páginas finais. A falta de sutileza só não é maior que a de consistência. Pois não há nada mais verossímil do que um operário, em tal circunstância, agir por dinheiro, ou seja, “para ajudar a família”. Primeiro, porque se está em guerra, e a própria sobrevivência ameaçada de várias maneiras, a começar pela escassez de alimentos — dinheiro é, portanto, igual a chance de sobreviver; segundo, porque se trata de um operário, logo, de alguém cuja família é pobre, e ficará para trás com sua pobreza em meio à guerra; terceiro, porque ele seria convocado de qualquer maneira, ou seja, de graça. Logo, inverossímil mesmo é que alguém possa achar inverossímil a explicação provável e suficiente da ação do personagem. E se ela carece então de qualquer outra explicação, o romance, ou “essa farsa”, nas palavras da narradora, carece de qualquer base, pois “tudo nesta história se resume às razões que levaram o operário a aceitar o papel”. Que tal uma razão chamada chance-de-minha-família-pobre-sobreviver-à-Segunda-Guerra-Mundial-enquanto-eu-seria-convocado-de-qualquer-maneira? A página History of Population Structure of Japan (www.wwq.jp/indexfr.html), com gráficos anuais da população japonesa e sua composição etária ao longo do século XX, mostra que, em 1945, o Japão tinha em torno de 5,5 milhões de homens entre 19 e 34 anos. E 5,5 milhões era o número de integrantes das forças armadas japonesas em 1945. Portanto, virtualmente todo homem adulto foi de fato convocado. Mesmo nessas circunstâncias, porém, talvez nem todos os japoneses pobres tomassem tal decisão. Talvez sequer a maioria, em função da explicação dada 40 páginas adiante, relativa à honra familiar e às honras fúnebres. Mas isto jamais tornaria inverossímil um ato individual, tanto por ser verossímil quanto por ser individual.

4

Seguindo, enfim, com a leitura, deparo-me, perto do meio do livro, com esta passagem:

Foi nessa época que Setsuko e Michiyo se encontraram na oficina de bonecas. O pedido de casamento já havia sido formalizado, e os pais da noiva estavam absorvidos nos preparativos da cerimônia, que se pretendia a mais discreta. Michiyo não via Masukichi fazia meses. Tanto que Setsuko, apesar de saber da existência do rapaz, só veio a ouvir o nome dele bem mais tarde, quando foi morar com Jokichi e Michiyo. (p. 55)

E o que esta passagem me fez pensar foi: mas por que, afinal, todos esses nomes orientais? As mil e uma noites têm um núcleo original hindu — que foi, porém, inteiramente arabizado. A história deste livro, se precisa de uma guerra, não precisa da Segunda Guerra, e da Segunda Guerra do lado japonês. Infelizmente, houve guerras depois e há guerras agora. Como não há nada exclusivamente japonês na história — mulheres prometidas em casamento e honra familiar existiam no próprio Brasil há muito poucas gerações —, nada a priori a impediria de se passar em outro tempo ou lugar. Mesmo porque, a “questão de identidade”, na literatura moderna, inclui a migração do próprio texto. Mas já que foi feita a opção por um cenário nipônico para o romance, e já que ele se baseia no uso da metalinguagem, a velha conta ao narrador que, quando jovem, trabalhara para um velho escritor que não pode mais usar as mãos, e lhe dita então sua tradução para o japonês moderno do “‘Conto de Genji’, o mais antigo romance japonês, escrito há mais de mil anos por Murasaki Shikibu” (p. 77). O autor parece pretender criara assim um jogo de espelhos literário meio borgeano, num arco que se estende do “mais antigo romance japonês” ao seu próprio romance, o que é reforçado, entre coisas, por um comentário da mulher do velho escritor sobre… ser escritor. Mas, na verdade, não é borgeano, é apenas enfadonho. Para começar, há o fato de essa referência ser tão previsível quanto, ao se falar de poesia japonesa, evocar o haicai da rã de Bashô, o que seu igualmente previsível didatismo apenas piora: “o ‘Conto de Genji’, o mais antigo romance japonês, escrito há mais de mil anos por Murasaki Shikibu”. Para terminar, tal “conto” não é um romance.

De fato, em torno do ano 1000 foi escrito no Japão o que se convencionou chamar de “o primeiro romance da história”, Genji monogatari, ou Narrativa de Genji. Há nesta consideração muito de multiculturalismo e outro tanto de feminismo, já que o autor é uma mulher, que assim, por se alfabetizar e produzir uma obra de arte respeitável na patriarcal sociedade nipônica, teria sido também uma espécie de primeira feminista da história. O problema de tais considerações é que linguagens artísticas não são constituídas de casos isolados, mas sim de tradições. E a narrativa cortesã em questão é um caso isolado, antecedido por obras como Taketori monogatari (Narrativa do cortador de bambus), um conjunto de lendas, e sucedido por outras como Heike monogatari (Narrativas de Heike) e Tsurezure-gusa (Relvas do ócio), a primeira com histórias bélicas, a segunda com ensinamentos budistas. Portanto, se o Genji monogatari foi um caso único, não pode ser o primeiro ou mais antigo, o que pressupõe uma série. E se não houve tal série, não se pode falar no gênero romance na literatura japonesa até a chegada da literatura ocidental. Tudo isso pode parecer acadêmico, mas acontece que, se o Genji monogatari não foi, como de fato não foi, “o mais antigo romance japonês”, sua (enfadonha) referência como tal no centro deste romance metalingüístico perde boa parte de sua razão de ser.

Outra previsível e enfadonha referência à literatura japonesa é Yukio Mishima — que se torna aqui uma espécie de Ezra Pound nipônico. Pound, como se sabe, colaborou com o governo de Mussolini, e depois da guerra foi convenientemente considerado louco, não sendo assim julgado por traição (pois era norte-americano). Já Mishima foi um militante de extrema-direita, o que não impede que seja incensado pela intelligentzia multiculturalista: “Da parte de Mishima, só a loucura podia explicar a convivência pacífica de um escritor homossexual de talento extraordinário com um grupo de fascistas iletrados” (p. 157). Carvalho talvez não ignore que boa parte da liderança da SA, organização nazista rival da SS, era homossexual, enquanto a própria SS contava com intelectuais de talento. Logo, não eram nazistas nem criminosos, mas loucos. Pena não terem pensado nisso a tempo de se livrar dos tribunais de guerra.

Voltando ao nosso enredo, falta dizer que o narrador fica surpresíssimo ao descobrir ser a velha que lhe conta a história do triângulo amoroso, não uma amiga da mulher envolvida, como dissera, mas a própria. Quem jamais imaginou uma coisa assim? Seu espanto, porém, é tamanho que, uma vez que ela desaparece, depois de percorrer o interior de São Paulo a sua procura, ele parte para o Japão. Para quê? Para entregar uma carta que a velha deixou para trás, destinada a um dos outros vértices do triângulo… O chavão narrativo não termina aí. Pois o tal vértice não será encontrado, mas a carta, afinal traduzida do japonês pelo sujeito de lábio leporino num apartamento de Tóquio, esclarecerá tudo.

Por exemplo, porque o autor viu-se obrigado a dar tanta ênfase à inverossimilhança do gesto do operário de aceitar dinheiro para servir no exército sob nome falso. O motivo era apresentar uma história, esta sim inverossímil, que comprova a intenção deliberada de multiplicar o jogo de troca de identidades — e ainda serve para explicar a escolha pela ambientação nipônica do enredo. Essa história envolve, de um lado, uma espécie de casta de intocáveis japoneses (os burakimins), e de outro, um primo do Imperador. Em resumo: o operário aceitara a oferta, não pelo dinheiro, mas por ser um pária acostumado à submissão. Além disso, depois de assumir a identidade do filho do patrão e revelar a farsa a outro soldado, é morto e tem a própria identidade roubada pelo primo do Imperador, um criminoso de guerra que, com a identidade do pária, foge para o Brasil em 1945. Trata-se, naturalmente, da velha fábula do príncipe e do mendigo. As intenções do autor, em todo caso, são claríssimas, e para não deixar qualquer dúvida, estão explicitadas nos parágrafos finais: primeiro, trata-se de questionar como é “possível ser outra coisa além de si mesmo”; segundo, trata-se de, num hino-síntese do politicamente-correto, decretar que ocidentais e orientais “Temos mais em comum do que se pode imaginar. O oposto é o que mais se parece conosco” (p. 164).

Só o que não será jamais esclarecido é a necessidade de repetir as informações até o desespero do leitor. O pior momento, neste aspecto, encontra-se à página 125. Pois fora à página 107 que o narrador vendera o carro a fim de ir para o Japão com o propósito específico de descobrir o paradeiro de um certo Masukichi, que fora a vida inteira um ator. Ele, portanto, não faz outra coisa nas 18 páginas seguintes. A busca frustrada de seu paradeiro, através de várias cidades do Japão e por milhares de páginas da internet, incluindo a repetição de seu nome nas várias entonações possíveis (“Másukichi, Masúkichi, Masukíchi, Masukichí” — p. 121) para desconhecidos que talvez tivessem ouvido falar dele — afinal, fora a vida inteira um ator —, culmina numa ida a um teatro. O narrador, então, assiste a uma peça da qual não entende nada, pois não fala japonês, apenas para poder esperar a saída dos atores, depois de se informar na portaria qual deles falava inglês. E eis que, enquanto espera, aproveita para explicar ao leitor: “Buscava alguém que tivesse ouvido falar de Masukichi”.

Já o pior momento no aspecto propriamente romanesco encontra-se na penúltima página: “Entendi porque Michiyo precisava de alguém para escrevê-la [sua história] em português. Era a herança que deixaria aos filhos que não teve” (p. 163). Acontece que Michiyo viveu por 50 anos no Brasil. Falava muito bem o português, como fica demonstrado por várias citações diretas. E como era comerciante, o que implica em uma série constante de papéis a ler e a escrever, e como escrever em português é bem mais fácil do que em japonês, torna-se no mínimo duvidoso o fato de não poder redigir as próprias memórias, que aliás não incluiriam nenhuma grande dificuldade vocabular ou sintática, pois não se trata das memórias de uma intelectual, mas apenas de um triângulo amoroso juvenil.

Se sintetizar o que se espera de um romance não é impossível, resumir o que se espera da crítica é facílimo: que dê a conhecer a obra analisada, para além do vício hoje comum da paráfrase da história (no caso da prosa) ou do verso (no caso da poesia), e do ainda mais comum vício de querer integrar o velho mas sempre renovado “coro dos contentes”. Pois se integrá-lo não acarreta risco nenhum (sequer dá muito trabalho), por outro lado garante certos ganhos, resumíveis na palavra compadrio. A literatura brasileira contemporânea, incluindo a crítica, é hoje um piquenique auto-congratulatório sobre a relva das circunstâncias. A história, porém, se acaso convidada, dificilmente marcará presença: ela é, até por conseqüência da idade, algo mais exigente.

 

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REPERCUSSÃO

olá, luís.
estou chegando da última sibila, na qual li duas resenhas suas, excelentes. logo vi que você é um leitor bastante cuidadoso, que não dá a mínima para nada que não seja estritamente literário. isso é muito raro hoje em dia. e tanto o bernardo carvalho quanto o eucanaã ferraz devem ler as observações com atenção, sem melindres. eles só têm a ganhar com isso. abraço, valério oliveira, curto-circuito camicase.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).