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Piglia morre pela boca do editor fanfarrão

Borges afirmava, já no final da década de 1960, que o romance estava em declínio. Ao mesmo tempo defendia e projetava (como valores) a continuidade da história e da narrativa. O poeta argentino escrevia àquela altura que não veremos o dia em que “os homens se cansarão de contar e ouvir histórias”. O cinema, até meados do século 20, confirma em parte a previsão de Borges, ou seja, a sétima arte contribui para o encerramento do discurso romanesco, mas não deixa de lado a história nem as formas vertiginosas de narração. Excetuando o cinema-música, ou o metacinema, de Jean-Luc Godard que a um só tempo – por meio da mobilidade fugidia da montagem –, dissipa e funde o ficcional e o documental de modo radical, pode-se dizer que a maioria dos realizadores ainda deposita bastante confiança nos poderes persuasivos da história, ainda que contada através das imagens. O diretor Raoul Walsh (Seu último refúgio, 1941) costumava dizer: “Se você não tem a história, você não tem nada!” (apud Martin Scorsese). Muito bem, antes de nos embrenharmos no texto mesmo de Alvo noturno, objeto desta peça, precisamos atravessar uma forma menor (porque é menos explicação do que embromação) de paratexto, refiro-me ao comentário-anúncio da aba do livro.

Ao contrário do que diz o texto da orelha de Alvo Noturno, saudando o retorno do autor, o longo silêncio de Ricardo Piglia foi desgraçadamente interrompido. Ou, dito de outra maneira, o autor voltou à cena quando poderíamos muito bem passar sem esse seu novo livro. Como outras tantas – lembro apenas duas para a alegria do leitor: Leite derramado e O filho eterno –, Alvo noturno é obra que se lê porque foi colocada à venda. Escritores que se tornam celebridades (“célebre” saiu de voga) inventam um tipo menor de cortesão que faz parte de um grupo cuja denominação cabe vagamente na categoria “os leitores de”, isto é, esse povo que, indiscriminadamente, oferece condições para a continuação da literatura, seja a de nível ou a que passa a léguas de distância disso. Desse modo, no texto-orelha vamos encontrar o reconhecimento de cunho clientelista aos “leitores de Piglia”, aqueles que, suponho, subirão num porco diante das eventuais objeções à linguagem do argentino, aqui apontadas e debatidas. Esse tipo de apreciador que, segundo a impaciência mercantil dos editores, deve ser fisgado já no primeiro parágrafo do livro. O peixinho (“protegido”) morre pela boca do editor fanfarrão.

Parte do romance, diz o responsável (chamar de “autor” seria um crédito excessivo) pela orelha, cede a uma “trama ortodoxa na melhor tradição do noir”. Mas essa tradição, reprisada por Piglia, a que o comentário faz alusão, diz respeito à série das transposições fílmicas dedicados ao gênero e que, me parece, o superam, pois o noir significa, entre outras coisas, dizer pouco com pouco e com um cigarro no canto da boca, portanto, funciona à maravilha à imagética da sétima arte.  Ao mesmo tempo, certa nostalgia da pulp fiction tenta restaurar, num salto mais a retro do cinema, os tiques “literários” dessa narrativa de mascates do entretenimento que mescla doses virulentas de inteligência cínica e simulacros de uma estética ficcional entre pop e povera. Em Alvo noturno Ricardo Piglia dá corda ao ecletismo pós-moderno, em que os estilos se convertem em guisados de prefácios à redundância. E com relação às questões avançadas no primeiro parágrafo dessa resenha, Ricardo Piglia parece não ter nada a acrescentar. Pelo contrário, seu texto, inadvertidamente, aprofunda mais ainda o declínio do romance assinalado pelo autor de El hacedor e dá mais motivos para levarmos a sério ou considerarmos (im)pertinente tal crítica.

Por outros atalhos Borges se aproxima das ideias defendidas por Theodor W. Adorno. No ensaio “Posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno propõe o seguinte paradoxo: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”. Para as condições atuais, mais anacrônico do que trazer à cena a argumentação do filósofo compositor a propósito do declínio da narrativa, talvez seja a aguda menção à “forma do romance”. Alguns caracterizarão isso como uma contradição entre termos. Forma? Alguém já disse que esconjurar um poema chamando-o de formal é tautológico, pois poesia é forma, mesmo. Não foi à toa que a forma do romance só incorporou novas tensões e dimensões quando alguns prosadores resolveram tratar sua linguagem com um apetite de poetas. Esses prosadores da linguagem perceberam que a capacidade de conter artisticamente a mera existência (mimese artesanal) era uma impostura.  Mas hoje o romance é sinônimo de passatempo cult, e não de forma; trata-se de uma arte em extinção. Alvo noturno contribui para a noção de romance como divertissement (aquele tipo de signo que não precisa ser recorrido) para cidadãos informados, e que a cada livro “devorado” acumulam o déficit de um pensamento a menos. Ricardo Piglia escreve para esses leitores que já folhearam de-tudo-nessa-vida e, agora, vítimas do pós-tudo, se permitem, como prêmio por sua longa confiança nos poderes da ilustração, a excentricidade do relaxo que recreia e pasteuriza.

Romances fundantes, até então criadores de controvérsias e de intermináveis debates como Ulisses, Finnegans Wake, Grande Sertão: Veredas tornam-se agora obras a respeito das quais não se diz senão o rotineiramente tolerável. Elas são referidas por meio de um discurso em estado de lápide, isto é, as defesas e/ou negações se prestam, quando muito, a inscrições tumulares e polêmicas de fachada. O resultado é que tanto os que as repudiam quanto os que as incensam, em fim de contas, acabam se encontrando numa zona de intransigência anódina ou de indiferença estética que não gera movimento nenhum. Essas obras que – por incrível que pareça – até há pouco pareciam alargar os limites do romance clássico, segundo a atual dinâmica à retaguarda do vale-tudo do mercado livreiro-editorial, já estão catalogadas e oficialmente interpretadas; não servem mais de insumo ao tacanho realismo desses prosadores para quem a simples menção a um “público refinado” lhes provoca uma cusparada reativa de clichês antidecadentistas. Com efeito, o mercado busca moldar menos este ou aquele autor em particular do que um modo de escrita que não entre em atrito com o desejo de entretenimento do leitor.

O romance contemporâneo (situemos sua abrangência, mais ou menos, desde o final do século 19 até agora), segundo Adorno, substitui a narração heroica, ao mesmo tempo em que a transforma em decorrência do subjetivismo do narrador, “que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade”. Em Morte em Veneza, por exemplo, acompanhamos os torneios de um narrador que tenta neutralizar a falência do próprio discurso, sua voz desce da épica ática para o solilóquio agônico. A passagem do discurso afirmativo do falo (epos) para o discurso intrincado do ônfalo (ego). O romance-guisado de Piglia que, segundo as palavras do seu editor, é capaz de “chegar às raízes mais profundas, aos males de origem da história argentina” interpreta de maneira eclética a tese de Adorno de que o romance perdeu muitas de suas funções para a reportagem e para o cinema.

Com efeito, Alvo noturno fica a meio caminho de coisa nenhuma: seu autor sabe que a forma romanesca já não funciona muito bem, mas faz vista grossa ao impasse vigente. Pois a reposta pragmática a esse dilema, considerado anacrônico, é a confiança no romance-relato como a comunhão entre o autor e o seguidor-leitor a partir do ponto de vista de que ambos são vetores do sucesso (ou do fracasso) de um produto cultural de “retorno sempre garantido” para as editoras. Em termos de linguagem, a solução encontrada é a do ecletismo oportunista que anula o conflito, já que Ricardo Piglia conduz sua narrativa buscando, aqui, através de um realismo light, uma aproximação com a reportagem: o autor tira proveito do artifício de notas de rodapé, onde o narrador interpõe às vezes um breve flashback ou referências a obras literárias citadas, e, em outras, informações supostamente reais que promovem um embaralhar da ficção com a verdade histórica; e, logo em seguida, o romancista incorpora ao texto evocações de cinéfilo, fazendo uma espécie de intertextualidade edulcorada ao “exigir” de seu leitor um ensaio frívolo na direção de estabelecer relações entre excertos (sobras) das duas artes. A visão joyceana que conjuga a ruptura com o realismo a uma ruptura com a linguagem discursiva foi esquecida pelos escritores de romances. Fortalecendo este esquecimento, que tem mais de safadeza do que ignorância, Alvo noturno não sacode a tranquilidade contemplativa do leitor diante da coisa lida. A propalada investigação de alguns aspectos do pesadelo da história argentina – elogiada na orelha do livro –, graças à fiança dada ao relato converte a prosa de Alvo noturno no kitsch intragável de uma arte regional. Não se desperta do pesadelo da província.

Constante em sua indiferença à objeção adorniana, segundo a qual o romance – tendo em vista a superação de sua crise de forma – precisaria se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato, Alvo noturno, nos seus primeiros capítulos, em um percurso vizinho ao real, discute aspectos relativos ao proverbial racismo antinegro dos argentinos. A presença de Tony Durán, “o agradável jovem escuro de origem incerta”, sacode a calma amortecida de um lugarejo da província de Buenos Aires e desperta, aos poucos, o latente preconceito, afinal “era extraordinário ver um mulato tão elegante naquele povoado…”. Entretanto não há consistência, nem complexidade no personagem. Ele participa da trama tão-só para morrer, será o cadáver anafórico, eternamente entranhado aos lugares comuns dos romances policiais. Mesmo a tensão racial galvanizada em sua relação com as pessoas do lugar, vem a calhar para colocar todos como potenciais assassinos de Durán. O estereótipo do mulato libidinoso, Tony Durán, cujas façanhas sexuais ficam subentendidas, vem à baila na figura do ménage à trois em que se envolve com as irmãs Belladona, gêmeas, ou em sua ambígua relação com o Japa, que a maledicência do povoado denuncia como um caso de veados. A presença de Tony Durán na trama é tão previsível quanto à do sparring no preparo do boxeador que alcança o topo no ofício: Durán assimilará os golpes e estará predisposto a ser nocauteado; não poderá ser mole, do contrário seu oponente enfraquecerá; seu fracasso, levado a efeito com bravura, ameniza os excessos de violência com que o campeão orna o seu cinturão. Em Alvo noturno o subjacente discurso de vitimização não é, portanto, suportado apenas pelo “outro”, mas faz parte de uma estratégia de dissimulação de poder entranhada nas relações sócio-afetivas, que visa a velar os aspectos culposos do seu continuísmo dando relevo, no texto em causa, a uma falsa denúncia. Convencemo-nos menos do absurdo do que da naturalização desse estado de coisas. A dor e a delícia com que fruímos os transes alheios se infiltram na narrativa de Alvo noturno. O povoado é retrógrado e traiçoeiro, sim, mas quem mandou Tony Durán se meter com essa gente, esses caipiras do pampa ignoto?

A dublagem dos seriados de televisão

Cinematográfico por natureza – imagem tautológica do pesadelo persecutório –, o topos do “homem errado”, aquele que, em função dos prodigiosos labirintos do acaso, acaba parando no “lugar errado e na hora errada”, fórmula recorrente em muitas narrativas, se presta como o insumo básico de Alvo noturno. O título enseja um trocadilho perverso, o negro Tony Durán é o blanco (“dar en blanco = atingir o alvo”) desse preconceito entranhado à “vida besta” do lugar: alvo negro. Aliás, o lugar parece existir apenas para cumprir o desígnio do assassinato do personagem; trata-se, mais uma vez, do bosque, essa metáfora intrincada onde alguém sempre acaba por se perder ou é enclausurado e vitimado em sacrifício, não à divindade, mas à fabulação ela mesma.

Entremeados aos “fatos” da crônica de Ricardo Piglia, vamos encontrar muitas chapas banalizadas pela reiteração fílmica. O comissário Croce, a autoridade policial que mastiga pensativo um charuto, é o duplo do asqueroso inspetor Quinlan (interpretado por Orson Welles em A marca da maldade, 1958). Vejamos outros detalhes dessas duplicações diluidoras. Na passagem da história em que começam as investigações sobre o assassinato de Durán, Croce dá uma bofetada no Japa que o “desacatara” dizendo que iria ser condenado pela morte de Tony Durán porque o pecado dele era ter olhos rasgados e pele amarela, por ser o mais estrangeiro de todos os estrangeiros do povoado de estrangeiros. Qual a importância para a estrutura narrativa e textual sabermos que o comissário Croce esbofeteou o rosto de Yoshio “com a mão direita”? O leitor-modelo de Alvo noturno, entusiasta de tais convenções, registra a informação: Croce não era canhoto. E o filete de sangue que depois escorre do nariz de Yoshio é um dos truques mais ordinários de que se pode lançar mão nesse tipo de relato, sequela do realismo fake. Se a vítima da agressão não fosse um humilde criado, mas, por exemplo, o atrevido Durán, Ricardo Piglia (inspirado nos lugares-comuns do gênero noir) talvez o fizesse cuspir na cara do comissário. Pronto. Close na expressão do detetive-torturador transtornada pelo ódio.

Reforçando uma imagem usada por Piglia, seu romance se confunde (embora aponte mais para o decalque do que para a confluência) “com fragmentos de um filme preto e branco”. Por esta razão, Saldías, ajudante e escrevente de Croce, não obstante a relação elementar de sua figura com a do secundário Watson, lembra antes os policiais dos filmes de Alfred Hitchcock, invariavelmente tacanhos e de cadernetinha na mão, exercendo seu ofício sem nenhum charme: burocratas de pouca imaginação. Algumas descrições lembram rubricas de roteiros com indicações de ações de outros personagens presentes num determinado plano, por exemplo, o comissário Croce acende o charuto “apoiando-se no balcão enquanto Madariaga limpava os copos”. Essas aparas, tiques romanescos, talvez entrem na conta dos prazeres da demora inerentes à arte da prosa.

Por outro lado, pensando um pouco mais a propósito dessas referências evocadas por Ricardo Piglia, talvez elas tenham mais a ver com os seriados de televisão e sua dublagem dessincronizada do que com as finezas do cinema, já que, em Alvo noturno, as senhas e as remissões, tanto ao film noir quanto à escrita que mimetiza essa tradição, são muito estereotipadas. De resto, não há muita sutileza, inclusive porque esta é a marca dessa cultura das citações em abismo e das medíocres releituras que estamos experimentando a todo momento, quer como leitores, quer como espectadores.

 


 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com