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ROMANCISTAS CONTEMPORÂNEOS MASCAM CLICHÊS

A literatura participa do conjunto das manifestações artísticas. Já nem sei se uma afirmação como essa ainda provoca algum embaraço à maioria das grandes editoras. Mas aqui a reitero e digo ainda que a literatura degenera quando dá as costas ao seu impulso de arte, ou quando se censura nela essa vocação para a multiplicidade de sentidos. Com efeito, para a literatura importa mais a releitura do que a leitura. Para o ponto de vista atacadista do mercado livreiro-editorial interessa a “leitura” enquanto confirmação do apetite de um público consumidor que demanda o livro na perspectiva de uma mercadoria-entretenimento. E a ampliação da venda/leitura per capita de livros é a razão de ser, a carcaça conceitual ao redor da qual volitam as boas e más intenções sejam de editoras, sejam de ocasionais políticas públicas, ou ainda de vozes que repetem clichês decadentistas ou multiculturais em torno ao assunto.

No entanto, o que conforma a literatura, numa época multimídia como a atual, ainda como alvo de interesse, inclusive em suas manifestações mais antiquárias, é, talvez — e à revelia mesmo da horizontalidade democrática —, a releitura, que é radical ou transversal. Reler, portanto, é mais importante do que ler, isto é, no sentido em que nesta imagem de releitura que proponho está implicado um tranco de qualidades que se cruzam e se atritam, ou a idéia de uma leitura algo expropriativa que se pretende criadora e desobediente com vistas à continuidade da literatura. Depois de Guimarães Rosa, por exemplo, abandonei a leitura de romances. Concordo que em função disto me vejo obrigado a não desprezar o tanto de prejuízo e o tanto de vantagem incrustados solertemente na escolha. Mas, por outro lado, a recusa até agora tem sido recompensadora. Prefiro reler o prosador mineiro ou Machado de Assis, o maior de todos, a ler o romancista da vez elogiado pelos suplementos culturais ou bancado pelos prêmios literários. O que importa, em fim de contas, é o desejo de produzir linguagem conjugado com a leitura de prazer. O literário em sua dimensão de “desautomatização da vida psíquica” não tem que ser associado à utilidade, mas sim à fruição.

Imposturas inofensivas

A prosa da contemporaneidade se limita mais com os interesses do mercado livreiro-editorial e da retórica cult do sujeito mais ou menos letrado e suas “inofensivas” imposturas, do que com a poesia, as artes visuais ou a música. Se o haikai, segundo Paulo Franchetti, significa “dizer pouco com pouco”, essa prosa sem viscosidade que a nossa época vem nos ministrando, se especializa em não ultrapassar o parco e o parvo, não obstante o dispendioso, o redundante com que se honora no lance de pôr em movimento seu discurso de platitudes. Alguns exemplos: “Súbito a porta se abre e entram os dois médicos”; “Cinco segundos de silêncio. Todos se imobilizam — uma tensão elétrica, súbita, brutal, paralisante, perpassa as almas”; “…alguma coisa misturada a uma espécie furiosa de ódio”; “…como vingança e válvula de escape”; “…olhando o céu azul do outro lado da janela”; “…a idéia de que algumas coisas são de fato irremediáveis…”; etc. etc. etc. Assim, por essas vias e por esses descaminhos conjuro para essa discussão o mais recente vencedor do Jabuti na categoria romance, Cristovão Tezza, autor dos excertos acima citados. Certamente esses recortes não dizem toda verdade acerca do premiado livro. Por outro lado, nem é a obra em si mesma ou a eventual singularidade de linguagem que ela teria a nos oferecer — quando de fato não oferece —, o que está em foco aqui, mas o que ela simboliza por metonímia.

Uma prosa com soluções discursivas feito essas esboçadas há pouco, faz soar uma espécie de sineta pavloviana, mais atendendo do que condicionando o paladar do leitor para algo com o qual ele, de antemão, já sente uma necessária propensão a identificar-se. Por fim, o leitor agradece ao prosador facilitador por este não lhe ter ministrado nada além do que ele aprendera a precisar dentro do hábito do menor esforço. Diante de uma tal peça literária ou de sua mancha gráfica na página, e, diga-se de passagem, ainda a uma distância improvável a qualquer leitura, mesmo assim, o leitor teria a garantia de sua satisfação; quem sabe dissera: “Emoção à vista!”. A obra dos seus sonhos se apresentaria, para usar um conceito da semiótica, como um índice; um “sinal de fumaça” indicando o fogo da comunhão emocional com a qual o leitor se depararia, sem dúvida, logo depois da próxima curva, ou no próximo virar de folha. Mas, o texto criativo, a contrapelo do que está descrito antes, deveria ser uma terra de ninguém. Um lugar nunca conquistado.

Se Poe, ao inventar o conto policial, inventou o raciocínio e o modelo de sensibilidade do leitor da narrativa policial, um romance como esse, O filho eterno, saído da pena de Cristovão Tezza, inventa ou irriga os quereres do leitor preguiçoso que faz jus ao pouco em função do pouco esforço que o discurso romanesco lhe pede em troca.

Corruptora relação

Em O filho eterno, romance que, segundo o próprio autor, se filia à tradição da literatura confessional, onde se encarece a fusão dos gêneros biográfico, reflexivo e ficcional, o leitor desta “obra libertadora” (como alguns já começam a apresentá-la) acompanha os transes do protagonista que tem um filho com síndrome de Down. O tema é de “forte apelo emocional”, mas a virtual resenha-chapa conclui que o prosador se safa da armadilha com “coragem e brilhantismo”. Temos, então, o dado biográfico no centro da sedução textual. Corruptora relação isomórfica entre escritor e leitor. Com efeito, o leitor no redemoinho da hipnose romanesca, “tocado” pela façanha do autor que alcança uma integração entre a literatura e a vida, expurga de si, por espelhismo, as interdições, os preconceitos e os sentimentos contraditórios relativos ao tema. O leitor, sombra do autor, se livra também de um fantasma, da idéia de que havia um ponto cego em sua vida a respeito do qual ele não tinha consciência. O leitor é ajudado enquanto se deleita. Filho sempiterno de uma tradição literária que robustece seu espírito.

Cristovão Tezza nos faculta o acesso a mais um romance que reifica inadvertidamente na percepção do consumidor contemporâneo o gênero como um simulacro de emoção que requer uma narratividade naturalista para atingir seus objetivos. A idéia de que tal simulacro anuncia/antecipa ao leitor a emoção que ele “naturalmente” encontrará durante a leitura, confirma a estrutura (que deveria ser fugidia) da prosa de ficção, antes de qualquer coisa, como a chave léxica de uma experiência sensório-emotiva não mais irredutível apenas a esse leitor.  Pois como o insumo emocional, no final das contas, se torna um clichê, isto é, uma reação causal a um comando de condicionamento, evento medíocre, porque produto de uma cadeia de convenções de estilo destinada a não cansar o seu público mais crédulo do que crítico, todos estariam aptos a compartilhar esta emoção, por assim dizer, automática, inercial. A telenovela é, em outro âmbito, o melhor exemplo de um “simulacro audiovisual da sentimentalidade” que anuncia ao telespectador – enquanto o adestra para – emoções certas e imperdíveis. Satisfação garantida.

O leitor fiel se extravia numa confusão entre o imaginário e o real. No entanto, pelo simples fato de ser uma representação da vida, a literatura não se confunde absolutamente com esta, nem lhe pode fazer as vezes. Segundo José Paulo Paes, a literatura “trata-se, antes, de um prolongamento, de um complemento dela, mesmo porque já se disse que a arte existe porque a vida não basta”. A vida é um defeito na pureza do construto estético que, por seu turno, tem lá as suas impurezas, claro que de outra ordem.

Por fim, ao contrário de alguns blogueiros e pseudo-críticos que preferem manter silêncio sobre livros que não possam elogiar, entendo que o texto é um gesto de comunicação, portanto, é um evento em que o leitor está necessariamente implicado. O leitor fecha, ou abre dependendo do ponto de partida, o circuito dialógico. E o leitor (mesmo o mais ingênuo, crítico ou chato) tem bastante a ver com o processo da significação, na medida em que, por dever do ofício, a recepção é transformadora. À liberdade de criação do autor, podemos propor uma equivalente liberdade de leitura crítico-criativa que inere ao desejo de linguagem do leitor. A crítica não é senão um exercício de leitura. Uma leitura possível.

Deixando de parte o cinismo risonho desses que escolhem a omissão descolada e transigente, calando ao invés de falar diante da razão que empalidece, seria útil lembrá-los do seguinte: sempre que escrevemos uma peça literária nos vemos implicados (às vezes à revelia do nosso desejo) num debate de formas e idéias que diz respeito a nós e aos nossos pares, que exige a interferência deles e a nossa réplica futura. Vivemos morrendo e aprendendo na troca conspícua de resenhas e livros com os nossos iguais e adversários, nossos leitores baudelairianos.

 

Leia E os finalistas e vencedores do ano passado?

 

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com

 

 

O OUTRO LADO
Talles Colatino, Jornal do Commercio – Caderno C, 11 de novembro de 2007

Escritor catarinense reúne forças para levar à literatura, sem cair no sentimentalismo, a sua experiência de ser pai de Felipe, hoje com 26 anos e portador de Síndrome de Down

O escritor catarinense Cristovão Tezza abriu um capítulo da sua vida, talvez o mais difícil de todos. A partir dele, desdobrou os outros vários que compõem seu novo livro, lançado recentemente pela editora Record. O filho eterno retrata a relação do próprio Tezza com seu filho Felipe, hoje com 26 anos, portador de Síndrome de Down.

No livro, o pai, como o personagem principal é apresentado,trava uma batalha consigo e com a sociedade que, há quase 30 anos atrás, tinha pouco conhecimento sobre a disfunção. “Esse foi um livro em que lutei pelo ‘não sentimento’ narrativo, no sentido de não me entregar ao aspecto sentimental da trama, que é poderoso, praticamente irresistível. Claro, é preciso distinguir aqui o narrador do personagem, o que eu tentei manter ‘frio’, o tempo todo, foi o narrador. Era fundamental que essa distância se mantivesse, ou eu estaria à mercê do personagem, e aí o livro não levantaria vôo, por assim dizer.”, comentou Tezza.

Mesmo distante do sentimentalismo exacerbado, as reações e as transformações que o pai vai sofrendo desde o nascimento do filho até o seu desenvolvimento e inserção no mundo chamam a atenção pela sua intensidade. Os pensamentos às ações do pai, somados a força do enredo e a densidade libertária da prosa de Tezza transformam O filho eterno num livro pulsante, vivo.

“O tema do livro é naturalmente reflexivo, transcende os limites do enredo, e assim obrigou a narração a abrir muitas comportas, desde a retomada biográfica do pai até as reflexões mais duras sobre a realidade que ele viveu. Talvez daí venha essa idéia de ‘libertação’ que o romance sugere”, diz o escritor.

Entre o romance a autobiografia, os acontecimentos que o livro relata vão convergindo para refletir o amadurecimento dele ao lidar com o filho. A situação faz o leitor questionar se as atitudes do personagem condizem com, no caso, do próprio Tezza. “ Eu acredito que não, embora o resultado final, 27 anos depois, seja o mesmo. Há sempre um abismo entre o evento da vida, que é o acontecimento aberto do cotidiano, o nosso dia-a-dia, e a representação literária. Nesta, a vida é caprichosamente recortada, selecionada, escolhida e emoldurada, transformando-se em objeto, em algo que se vê de todos os lados, com uma nitidez que o simples ‘viver’ jamais nos dá. E, é claro, esse objeto literário não é em si a vida, mas a sua representação reflexiva – é na verdade um olhar (entre milhares de outros possíveis) sobre a vida. Assim, o desenvolvimento do personagem tem um grande grau de autonomia, obedece à lógica interna que a própria narrativa foi criando”, explicou o autor.

Ao comentar sobre a dificuldade de romancear a sua própria realidade, Tezza acredita que esse trabalho é relativo e depende do temperamento e da inclinação do escritor sobre a sobre a obra que deseja criar. “Eu acho muito mais difícil romancear a realidade, partir do dado biográfico para daí fazer matéria ficcional. O risco de você apenas fazer uma confissão pessoal, de não sair dos limites da vida pessoal, é muito grande. Não é fácil transformar um fato da própria vida em objeto”.

Pela exposição que o livro traria, Tezza confessa que adiou a sua publicação. E mais que a publicação, idéia de escrevê-lo. Elogiado pela crítica e já apontado como a melhor obra do catarinense, O filho eterno tem o mérito de conseguir se mostrar um raro equilíbrio alcançado por um escritor: casar uma temática passional a uma poética densa e envolvente. “Começo lentamente a me ‘livrar’ do romance, o que sempre acontece comigo depois de publicar meus livros. Com esse, esta separação está demorando mais pelo impacto que o romance está tendo entre os leitores, mas felizmente já consigo vê-lo um pouco mais do lado de fora, digamos assim. De fato, eu temia que a literatura do romance não fosse percebida, eclipsada pelo tema, mas isso não aconteceu. E também a exposição pública, se O filho eterno fosse lido apenas como depoimento pessoal, o que também não aconteceu. Hoje estou muito tranqüilo quanto a isso. Sei que escrever é uma atividade dura, difícil, áspera – não temos de esperar nada de ninguém, a não ser da própria cabeça. Mas posso dizer que O filho eterno me deu uma profunda e rara alegria como escritor”, confessou.

Sobre grande desafio de um escritor que arrisca contar, ou romancear, que seja, um fato da sua vida, Tezza respondeu: “O mesmo de qualquer outro livro: não naufragar na travessia. E não permitir que o elemento íntimo, depois de escrito, continue apenas pessoal. O objeto da literatura são os outros”.

Sem precisar citar a palavra amor, Tezza nos apresenta a evolução desse sentimento, de pai para filho, que se eternaliza a cada barreira desconstruída acerca da situação do filho. O filho eterno é um livro sobre seu filho Felipe, mas não escrito, diretamente, para ele, e sim para nós. Afinal, como Tezza se define: “eu sou, em boa medida, os outros”.

Apesar dessa cristalização da relação construída pelos dois personagens, o eterno citado no título cabe, unicamente, à condição do filho. “Só quem tem um filho especial sabe o que quer dizer esse eterno. É uma eternidade laica, concreta, visceralmente amarrada à vida cotidiana”.

Com a editora Record, Cristovão Tezza comemora o relançamento de livros como Trapo, que o projetou nacionalmente em 1988, O fantasma da infância e Aventuras provisórias. E, em primeira mão, o autor revelou que O filho eterno acaba de ser vendido para a Itália e para a França. E que há negociações avançadas com outros países.

» O filho eterno (Cristovão Tezza): Editora Record. R$ 34 (preço médio).


 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com