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SUSAN HOWE E A ESQUIVA SETA DE PIERCE

(Para se ter uma visão diversa de Pierce-Arrow, visão mais próxima da dos diretores de Sibila, visite a página de Susan Howe em EPC http://epc.buffalo.edu/authors/howe/)

Susan Howe, apesar de pouco conhecida no Brasil, é considerada uma das mais importantes poetas norte-americanas. Autora prolífica desde 1974, teve uma de seus últimos livros, Pierce-Arrow, recentemente publicado em português (São Paulo, Lumme, 2008, tradução e apresentação Antonio Sérgio Bessa).

Segundo informação da capa, que presumivelmente segue a autora, Pierce-Arrow é um livro de poesia. Não é: mais do que um verdadeiro híbrido, trata-se de uma sobreposição, de uma colagem de poesia e prosa. Digo isto porque, além de se tratar de uma sobreposição ou colagem de poesia e prosa, discrepando da maioria da crítica, passei a recusar a postura de aceitar como coisa dada o parti pris do autor. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que se afirma sua “morte”, alegada invenção romântica, aceita-se como necessária, automática ou inevitável a pura arbitrariedade autoral: poeta é quem se considera, poesia é aquilo que o poeta determina, e sigamos em frente. Em frente talvez, mas a fundo dificilmente, ao menos não na análise poética propriamente dita, que requer um mínimo de objetividade.

Quanto aos aspectos mais gerais de sua linguagem, Susan Howe, poeta próxima à language poetry, que Haroldo de Campos, citado na apresentação, considera ora concretista (sic) ora “duchampiana” (p. 7), poder-se-ia afirmar, de maneira muito imprecisa, tratar-se de uma poeta experimental. Ocorre que isto impõe descrever seu experimentalismo. Se em termos cotidianos uma experiência é um acontecimento marcante, em ciência e em arte implica em tentar ou testar o novo.

Começando pelas partes em prosa de Pierce-Arrow, elas nada têm em si, em termos linguísticos, de experimental. Este aspecto talvez pudesse então ser realizado por sua origem e seu uso: pois Howe incorpora fragmentos de textos alheios, tanto literários quanto de outros gêneros. Daí as afirmações de que seus fragmentos são ready mades e de que sua obra é duchampiana, aceitas pelo tradutor na apresentação. Mas isto funciona, afinal, como um ruído, e mais confunde e mitifica do que aclara, pois nada acresce em compreensão ou descrição. No limite, serve apenas para oferecer certa genealogia e certo status a um procedimento que, de um lado, tem na verdade mais de uma paternidade (por exemplo, o dadaísmo), e de outro, foi banalizado pelo alto modernismo e seus sucessores ao longo de todo o século XX (basta pensar em Eliot e Pound). Para ser mais chão e mais preciso, o nome do jogo é simplesmente colagem (o tradutor o reconhece, afinal, referindo até mesmo uma “veia colagista” da autora [p. 11]; mas isto ao mesmo tempo que o edulcora com a referência a Duchamp e a ready mades). Pierce-Arrow não é, portanto, de fato experimental, pois seus procedimentos são conhecidos. Isto posto, pode-se passar a analisar como e do que é feita a colagem de Pierce-Arrow.

No caso, ainda, das passagens em prosa, há quase exclusivamente de material alheio (e não, como nas partes em versos, material alheio intercalado a material próprio). Se seu interesse linguístico intrínseco é, como dito, inexistente, pois se trata de prosa corrente, e se seu interesse estrutural é muito relativo, pois o procedimento de escolha, recolha e reprodução de longos fragmentos de prosa é em si banal, resta analisar sua semântica, ou seja, a que tais fragmentos se referem, e como tais referências servem às partes em versos a que se intercalam.

Pierce-Arrow divide-se em três partes, “Arisba”, “O ócio da classe teórica” e “Rückenfigur”. Como a presença dos fragmentos de prosa é residual na segunda, a maior, ausente na terceira, a menor, e francamente dominante na primeira, estender-me-ei sobre esta. “Arisba”, a partir de seu título, nome da propriedade de Charles Sanders Pierce, articula-se em torno da figura do criador do pragmatismo (que também frequenta a segunda parte). Nela em si, principalmente nos próprios fragmentos de prosa, e não em sua obra, a partir principalmente de passagens de várias biografias (não há notas: a informação é dada na apresentação). Nos melhores momentos, o resultado lembra o Borges dos falsos ensaios, veramente ensaísticos na forma, mas não nas referências. Mas aqui o jogo se inverte: alguns dos fragmentos parecem falsos fragmentos biográficos pretendendo passar por verdadeiros, quando são fragmentos verdadeiros que passam a parecer imitações de si mesmos. Ns piores momentos, porém, o resultado adquire um tom anedótico, por exemplo, na descrição da técnica bibliotecária da microfilmagem, ou na extensa passagem que discute as inconsistências biográficas da segunda mulher de Pierce, de cuja origem familiar na Europa central nada se sabe ao certo. A pretensão aqui, parece, é que isso reflita, ecoe ou se impregne, se “signifique”, em Pierce e sua obra, ele uma personalidade difícil e “incompreendida”, ela esquiva e pouco compreendida, além de (ou por causa de ser) vazada numa linguagem um tanto opaca e de ter uma história complicada (como, enfim, a sua mulher), incluindo dificuldades de organização, publicação e preservação. As partes em versos de “Arisba”,  ao contrário, referem-se mais à obra que à vida de Pierce.

A linguagem poética estrito senso caracteriza-se por ser constituída de unidades discretas (versos) e elementos recorrentes (rimas etc.). Na verdade, pela interpenetração das duas características, pois é a incidência das recorrências morfossemânticas sobre o fluxo verbal que gera a discrição sintático-estrutural de suas partes. Modernamente, porém, tais elementos foram desconectados, resultando ou em prosaísmo ou em discricionismo arbitrário, ou seja, cortes aleatórios ou “rítmicos”. É o caso de Pierce-Arrow, cujos versos, a se acreditar na tradução (a edição não é bilíngue), carecem totalmente de recorrências formais. A isso se acrescem, com propriedade, as incorporações. Com propriedade porque os versos entrecortados de Howe, sem as recorrências formais, parecem muitas vezes eles próprios outros tantos fragmentos, numa grande colagem paralelística de pedaços de frase (o resultado, porém, é às vezes comprometido por certo artificialismo sintático da tradução, como a ausência de artigos definidos, que gera um efeito “língua de índio”: “Frio apressa pés atuantes” [p. 51]; “Academia exaustou / Pierce…” [p. 130]). Outras vezes, no entanto, os versos parecem o mero resultado de cortes arbitrários sobre um fluxo verbal de natureza prosaica. E parecem-no porque, então, o são. Além disso, eventualmente soam (e não somente em “Arisba”) como paráfrase de alguma filosofia de linhagem pierceana:

Alguém joga uma pedra
no ar como uma fato não
fato mas aparência
fato a flutuar nos vácuos
Ser existencial cego
talvez não possa ocorrer
nunca se sabe nada
com certeza absoluta
das coisas existentes
(p. 23)

Susan Howe é o que se costuma chamar de poeta para poetas (além de ser uma “poeta para acadêmicos” – ela própria, não por acaso, é professora de literatura: pois quem conhece Pierce fora da academia, e mesmo dentro?). Tal definição, porém, acabou por adquirir um viés involuntariamente irônico. Pois dado o desinteresse geral pela arte poética, todos os poetas são hoje poetas para poetas. E se todos o são, ninguém mais pode sê-lo propriamente. A definição nada mais define. Howe não é, portanto, uma poeta para poetas, ou seja, não o é de modo particular ou definidor. Logo, pretender que o seja nada escusa ou explica. Sua poesia deve, em suma, ser considerada por si mesma, como qualquer outra. O resultado é se tratar de uma poesia extremamente literária.

Em certo sentido, toda poesia é literária, pois repousa sobre uma tradição linguístico-poético-literária, que realimenta. Não obstante, a poesia lírica, como regra, é “realista”, no sentido de ser um discurso que imita o da verdade conforme modernamente entendida, ou seja, a afirmação coerente sobre um fato singular (“Está chovendo”, se deveras estiver). Se a poesia, neste sentido, jamais diz a verdade, seu melhor ou pior “realismo” advém de como imita a verdade, apoiada na característica mental definidora da espécie humana, a capacidade de empatia, ou seja, “sentir” o que outrem ou ninguém (um personagem) na verdade sentiu (a chuva nos cabelos, as angústias de Pessoa e Hamlet). Neste sentido verista, ou “realista”, a poesia não se confina a ser literária. Susan Howe, porém, em Pierce-Arrow nega a possibilidade de realismo (“A mente como o-que-não-é” [p. 54]). Daí fazer todo sentido ser radicalmente literária: ela não versa apenas sobre a literatura senso lato, ou seja, diretamente sobre outros textos, mas também sobre a impossibilidade de conhecimento da realidade. Mas fazer sentido não é tudo. É preciso, também, fazer efeito. Ou seja, deve haver algum motivo para se ler um poema. Se esse motivo não é o mesmo de se ler um bula de remédio, isto é, sua necessidade prática, talvez devesse ser o equivalente poético ao de se ler um conto ou um romance (viver vicária ou catarticamente as vidas/situações descritas). Numa poesia literária como a de Pierce-Arrow, essa razão só pode ser intelectual, pois não é sensório-estética (o primeiro termo incluindo e incorporando o senso, ou percepção, da verdade singular imitada). Porém não parece haver tanto a ganhar intelectualmente com ela. Pois ou se conhece razoavelmente aquilo sobre o que versa (em “Arisba”, a vida e obra de Pierce), e neste caso, há certa frustração pelo anedótico e mesmo pelo diluidor (mais do que prazer “clubista” de reconhecer e revisitar as senhas e cifras do “clube” pierceano), ou não se conhece, e neste caso Pierce-Arrow é praticamente ilegível. Uma poesia, enfim, que mobiliza muito para muito poucos.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).