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Um lugar sob o sol do além

(Boris Groys em 10 tópicos macabros)

Há algum tempo, escrevi um pequeno texto de apresentação na revista Cult sobre o filósofo e crítico russo-alemão Boris Groys (1947), pouco conhecido no Brasil. Como o tenho lido com muito interesse, pensei em estender a apresentação de seu pensamento aqui no seminário de psicanálise. Posso garantir que é dos mais originais entre a gente que, por ora, vive. A piada vai ficar clara mais adiante. Não por acaso Groys foi escolhido para escrever o catálogo da exposição The Air is on Fire, composta de desenhos, fotografias, pinturas e animações de David Lynch, exibida na Fondation Cartier pour l’art contemporain, em Paris, de 3 de março a 27 de maio de 2007.

Breve cv: Groys estudou Filosofia e Matemática na Universidade de Leningrado e deu aulas no Instituto de Lingüística Estrutural e Aplicada da Universidade Estadual de Moscou. Desde 1994, leciona Filosofia e Teoria da Mídia, na Academia de Design (Hochschule für Gestaltung), dirigida por Peter Sloterdijk, em Karlsruhe, na Alemanha.

De sua bibliografia, destacaria Gesamtkunstwerk Stalin [Stálin, obra de arte total] Munique, 1988; Über das Neue. Versuch einer Kulturökonomie [Do Novo – Ensaio de Economia Cultural], idem, 1992; Unter Verdacht. Eine Phänomenologie der Medien [Sob Suspeita. Uma Fenomenologia da Mídia], idem, 2000; e, enfim, Politik der Unsterblichkeit [Política da Imortalidade], idem, 2002 – livro que reúne quatro grandes entrevistas conduzidas pelo filósofo Thomas Knöfel. Esta obra, em particular, ajudou-me a compor o quadro das matérias que passo a expor, com a preocupação primeira de não trair as idéias de Groys, a despeito da minha maior ou menor adesão a elas.

 

  1. A imortalidade em arte e filosofia

 

Na perspectiva de Groys, arte e filosofia têm abordagens análogas: uma e outra, para ele, tratam fundamentalmente de questões que não admitem solução e que, por isso mesmo, são imortais. Em vez de solicitar resposta, como as questões das disciplinas científicas –, que são sempre muito efêmeras e cujas contribuições, passado o seu tempo de vigência, apenas permanecem interessantes como objeto de história das ciências –, as questões artísticas e filosóficas existem no âmbito de um espaço “duradouro” da linguagem, no qual os discursos individuais tratam de se inscrever.

A filosofia possui um tipo de discurso ainda mais estável do que o artístico, embora este, por sua vez, reivindique uma duração mais longa. Isto se deve, para Groys, a duas razões. A primeira, é que a arte tende a ser mais permeável às modas culturais do momento, enquanto a filosofia não precisa acompanhar o estágio atual das ciências. A segunda razão é que, no caso da arte, a forma é sempre decisiva, o que implica apreciações estéticas que variam com o tempo, enquanto na filosofia, as idéias tendem a ser consideradas como se dependessem pouco da sua apresentação.

O mais relevante para Groys, entretanto, é que a dedicação à filosofia ou à arte supõe algum ceticismo face a garantias ontológicas fora da linguagem, da cultura ou da história para sustentação da imortalidade. Tal ceticismo conduz ao que chama de políticas da imortalidade, que são nucleares às atividades artísticas e filosóficas. É preciso compreender bem essa questão.

Para começar, a idéia de “política da imortalidade” se opõe ao projeto de pensar literatura, arte ou filosofia como “formação”, e mesmo como “produção” de conceitos, como o faz Deleuze, por exemplo. Para Groys, que nisso segue Wittgenstein de perto, conceitos não são “inventados”: eles preexistem a nós, tanto quanto as questões filosóficas irresolvidas. Mas eles sempre podem ser usados de maneiras individuais novas. Nisto apenas reside a possibilidade de novo posicionamento de cada artista ou filósofo no espaço da arte ou da filosofia. Ou seja, a questão relevante aqui é o uso dos conceitos e não a produção deles. Don´t ask for the meaning, ask for the use,como na lição wittgensteiniana.

Assim sendo, não há interesse no estabelecimento de genealogias ou paternidades dos conceitos. Importa, ao contrário, estabelecer estratégias para entrar no “campo” já existente da filosofia ou da arte. Um análogo dele é, por exemplo, um espaço já mobiliado, cujos móveis particulares, entretanto, podem ser usados ou não pelo novo morador.

 

  1. Artistas e pensadores perigosos

 

Para Boris Groys, artistas ou pensadores perigosos são aqueles que ganham alto reconhecimento no seu campo de atuação justamente porque colocam em questão a estrutura inteira de distinções sobre a qual o campo costuma sustentar as suas operações. Ao duvidar da evidência das distinções implícitas ou pressupostas no tipo de raciocínio filosófico ou de trabalho artístico habitual, tais autores obtêm um extraordinário efeito destrutivo. Fazem com que se perca a credibilidade das oposições habituais, dissipam a sua força persuasiva, até então intocada e aparentemente intocável.

Groys destaca três casos exemplares de pensadores que foram bem sucedidos na adoção desse tipo de estratégia de risco: Kierkegaard, cujo empenho estava em produzir o colapso dos critérios de distinção entre Deus e os homens; Husserl, que tratou da insustentabilidade das distinções entre o mundo que existe e o que é apenas virtual ou imaginado; e, enfim, Wittgenstein, que se empenhou em “dissolver” toda sorte de distinção filosófica tradicional a partir do exame dos “jogos de linguagem” implicados em sua determinação.

Para Groys, entretanto, como, na prática, não é possível trabalhar sem distinções e oposições, o perigo de colapso do campo acaba revertendo para a reiteração da sua estrutura por meio da renovação e legitimação de um novo vocabulário distintivo. Ou seja, o vocabulário do colapso é, assim, incorporado como um novo móvel do cômodo.

No caso dos três filósofos citados, o traço mais comum a eles é a recusa de tratar a questão do “sujeito” ou da “subjetividade” em analogia com a do “ser”. Deste modo, eles impedem a sua assimilação a noções como “universalidade” e “evidência”. Quer dizer, o “sujeito” deixa de ser tomado como condição ontológica do pensamento ou da ação para ser interpretado no âmbito da própria decisão de produzir distinções, sem qualquer fundamento exterior a elas.

Justamente por isso, o mais notável nessa intervenção “perigosa” é que o desancoramento ontológico que produz não impede em nada o funcionamento do “sujeito”. Assumir uma responsabilidade subjetiva pela ação é uma operação cuja eficiência nada tem a ver com a existência ontológica do sujeito, e sim com o quadro de atribuição subjetiva no qual a ação se dá.

Ou seja, ao se colocar fora do enquadramento das distinções tradicionais, recusando ao máximo o emprego de uma linguagem filosófica ou artística comum ou partilhada, tais autores conquistam, antes de mais nada, o encargo da responsabilidade pessoal e subjetiva por sua prática. O que se observa neles, como reflexão ou obra artística, não tem validade universal estabelecida: falam e escrevem em seu próprio nome. E justamente por isso, seus nomes passam a integrar as balizas do campo artístico e filosófico redefinido por suas intervenções.

 

  1. Crítica sociológica

 

Para Groys, uma observação de Marx que atinge em cheio o mundo da cultura é a de que uma idéia deve se impor para poder nos parecer justa, ou, de outra maneira, que uma idéia dominante é sempre a idéia de alguém que domina. Nesses termos, qualquer idéia que se apresente possui um “suporte material”, e apenas contradizê-la com outras idéias não basta para que desapareça. É preciso combater as forças que suportam a idéia, em vez de se circunscrever à sua crítica.

Segundo Groys, esse tipo de materialismo pode explicar um procedimento bem característico da crítica literária e artística contemporânea, que se esquiva de criticar idéias, em favor de apenas tecer louros ou silenciar a respeito delas, “na esperança de que as forças que suportam as obras percam sua energia e finalmente deixem de ser mencionadas”.

Além disso, os modelos de explicação sociológica da arte, ainda dominantes em todo o mundo, fazem do público real e atual o contexto decisivo de aparecimento da arte, mesmo quando eles dão ao “público” nomes tão amplos quanto o de “sociedade”. Neste ponto, o sparring favorito de Groys é alguém como Pierre Bourdieu, por exemplo, que imagina que a produção artística ocorra como reação à demanda social. Para Groys, a chave do sucesso das teorias sociológicas reside justamente aí: em alimentar a convicção de que, numa economia de mercado moderna, a produção é exclusivamente ditada pela demanda. Em tal situação, arte e teoria são entendidas como mercadorias específicas cuja missão é satisfazer necessidades e desejos de um público atual de consumidores.

A contrapelo desse tipo de sociologia da arte ou da cultura, Groys observa que o conjunto das pessoas que constituem o público atual de uma obra, com toda probabilidade, estará morto num intervalo de tempo relativamente curto. Se se tratasse de escrever apenas para esse público, a obra em questão, em pouco tempo, já não faria qualquer sentido. Por isso mesmo, considera que os modelos sociológicos, isto é, baseados no público real, são insuficientes e mesmo implausíveis, embora adequados para tratar da economia de mercadorias mais perecíveis do que arte ou pensamento. Escrever livros ou produzir obras de arte significa, ao contrário, que se espera fabricar produtos capazes de sobreviver aos consumidores atuais, o que também significa que os autores tendem a se dirigir a consumidores desconhecidos, ainda não nascidos, e, portanto, com necessidades e desejos ainda indeterminados.

Assim, um autor interessante não escreve para um “leitor real”, mas para o que Groys chama de “leitor utópico”, isto é, aquele que lê o livro com atenção máxima, descobre o que o autor quer dizer, e até o que ele próprio não sabia ao escrever. Mais do que isso tudo, o leitor utópico se define por “amar” o livro, o que não raro significa que “tem mais estima pelo livro do que pela realidade”. Nesses termos, não importa muito se um leitor desse tipo já existe hoje, se vai nascer mais tarde, ou se vai permanecer para sempre como figura onírica. Trata-se apenas de uma “idéia reguladora”, constitutiva do processo de escrita, que não pode ser substituída pela invocação do público atual. De resto, apelando para a sua própria experiência na Rússia, Groys acha que um leitor atento assim é muito menos utópico do que se poderia pensar, e dispensa qualquer objetivo de acumulação de capital simbólico, na linha suposta por Bourdieu.

Em suma, para dizer em outros termos, se a escrita fosse apenas determinação do leitor vivo, não se poderia ler ou gostar de livros de períodos fora de seu próprio tempo de lançamento. O que ocorre, entretanto, é o contrário: os autores mais interessantes, em geral, são os mais insensíveis aos desejos do público de sua época.

De outro lado, Groys concorda que existe uma realidade da arte e da literatura que se dá como acumulação de objetos materiais, de vetores e mídias que suportam a cultura por força da própria materialidade. Tal cultura materializada se liga a instituições como bibliotecas, museus ou programas de educação e de fomento relacionados à “herança cultural” – a qual, por sua vez, nos dias atuais, é bastante criticada em nome do tempo presente, do público atual.

Uma crítica dessas, para Groys, não tem a menor vocação crítica. Para mim, este é o ponto decisivo a reter em suas idéias. A suposta crítica do antigo em favor da atenção do crítico à produção atual, não passa de entrega ao “ar do tempo”, isto é, à banalidade que penetra como resfriado as idéias contemporâneas, e que serve de pretexto para a adulação do leitor real. Mais interessante que isso seria, na direção oposta, criticar o tempo presente em nome da herança cultural, olhar para o tempo presente com a distância crítica que apenas o legado cultural permite.

A “vista curta” sociológica se coroa com a interpretação do legado cultural apenas como coisa atestada e transmitida pela instituição – sendo a instituição, por sua vez, tomada como objeto primeiro, senão único, de exame da teoria e da crítica. Ocorre que, posto que a herança cultural seja material, a sua conservação é também extra-institucional. Isto é, não apenas a política ou a política cultural determinam a conservação de certos quadros e obras, ou a perda irreparável de outros, mas também a ocorrência ou não de acasos, de catástrofes naturais, de circunstâncias imprevisíveis que podem tanto devastar quanto criar segmentos inteiros de cultura. Portanto, por mais materializada que seja, a “herança cultural começa antes da institucionalização e termina depois dela”.

 

  1. A arte como construção da “subjetividade”

 

Para Groys, o artista ou pensador está obrigado se autoposicionar no campo da arte ou do pensamento a fim de escapar da descrição usual feita por outros a seu respeito. Para essa redescrição de si mesmo, o artista/pensador pode até tomar a imagem já feita e trabalhar com ela estrategicamente como um ready made, mas abdicar da tarefa de recriar a si mesmo, terminaria por submergi-lo na banalidade.

Essa observação de Groys está em oposição direta à idéia liberal e democrática de que as pessoas, no fundo de si mesmas, sempre são interessantes e originais. Bem ao contrário, a noção de subjetividade define-se em função de um “trabalho” sobre as imagens feitas a respeito de si. Trata-se de um espaço invisível de manipulação imagética, bem distinto da idéia de “individualidade”, se esta for entendida como imagem original, pré-definida e intocável.

A crença na profundidade de uma imagem individual dada apenas conduz a uma banalidade involuntária, a um fracasso não intencional. Mas, claro, o fracasso pode fazer parte da construção de uma estratégia interessante de metaposicionamento no jogo da cultura (Cioran, por exemplo, é um perfeito exemplo de êxito baseado numa estratégia montada sobre a idéia de fracasso).

 

  1. O “trauma” como última esperança ontológica

 

No pensamento contemporâneo, que reconhece em tudo o falhado, o precário, o vicário, o trauma parece adquirir para si esse estatuto paradoxal de última garantia ontológica de imortalidade universalmente aceita. Literatura, por exemplo, tem se tornado em larga medida ato de testemunho de trauma. Por isso ela é valorizada, por falta disso, ou mentira disso, ela é repudiada.

Groys menciona os escritos tardios de Freud como apoios para leituras que ressaltam os aspectos reprodutivos dos traumatismos coletivos e interpretam a reprodução traumática como vetor material da herança cultural. A hipótese dessas leituras é que a cultura não poderia se reproduzir senão por uma série de traumatismos sofridos, os quais, paradoxalmente, assegurariam sua continuidade histórica.

Nada está mais distante que isso da idéia de “política da imortalidade” que interessa a Groys. Esta, como o próprio termo “política” evidencia, supõe “esforço consciente de formulação, conservação e institucionalização de procedimentos de intervenção no campo cultural”. Embora operando com ligações causais, a idéia do trauma como fundamento da cultura existe sem qualquer fundamento extra-teórico, da mesma forma que todas as outras idéias. Assim, está claro que a “teoria do trauma” deveria ser interpretada apenas como mais uma estratégia de imposição no campo da cultura, a qual, em determinadas circunstâncias contemporâneas, torna-se muito sedutora. Assim, não é que literatura como ato de testemunho do trauma seja especialmente interessante para dar ideia do ato da literatura, mas pode ser elucidativo perguntar a que tipo de estratégia de afirmação intelectual contemporânea isso se presta.

 

  1. Arte e pensamento como competição

 

Um dos aspectos mais provocadores e bem-humorados da reflexão de Boris Groys diz respeito à caracterização do campo da arte e da filosofia como uma espécie de competição radical. Os mais sensíveis, aviso logo, devem deixar a sala.

O primeiro ponto a considerar nessa competição peculiar é que, para ele, “não se pode obter na vida as vitórias que se deseja conquistar na arte”. Ou seja, em contraste com os tantos nietzscheanismos ou deleuzianismos vitalistas, que gostam de brandir a categoria desbundada da “vida” como justificativa para a arte, para Groys, bem ao contrário, “a vida jamais se constitui como um atalho para a grandeza literária”.

Para Groys, foi este atalho que tentaram tomar aspirantes a artistas como Goebbels (“quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver”) ou Hitler, entre tantos outros. Tornaram-se criminosos excepcionais, mas não artistas de alto nível.

Segundo Groys, não é possível escapar da competição artística, literária ou filosófica travada no interior de seu próprio campo. As exigências da cultura não podem ser satisfeitas na vida, assim como não são refutáveis por ela. Ou, de outra forma ainda, não há como fazer economia das exigências culturais a partir desses “desvios” para a vida.

Um gesto comum às ideologias autoritárias seria partir corretamente do princípio de que os problemas, atitudes e exigências têm sempre um vetor material e concluir equivocadamente que, se esse vetor for eliminado, os problemas também o seriam. O equívoco é tão primário quanto supor – o exemplo é ainda de Groys, e não meu, que tenho mais horror ao futebol como exemplo e metáfora do que ao jogo mesmo, que apenas aprecio nas raras vezes em que a Ponte Preta vira time grande — que, se alguém matasse todos os árbitros e suprimisse todas as regras do futebol, tornar-se-ia automaticamente o melhor jogador de futebol de sua época.

O caso, entretanto, é que as exigências culturais são incontornáveis. A mais fundamental delas é que o artista conquiste uma forma própria, considerando-se o campo preciso da herança cultural em que se inscreve. Este é o ponto chave: a cultura exige um posicionamento individual do artista. Ele se encontra submetido à exigência de se justificar a si próprio do ponto de vista cultural: nada fora daí tem poder suficiente para justificar a sua existência artística. Tal exigência, Groys pensa ser “escandalosa” para a crítica sociológica que supõe tal justificativa própria de instituições, classes ou raças determinadas.

Groys admite que tal “exigência escandalosa” da cultura seja ficcional, imaginária, mas, para ele, exatamente aí reside a sua força. Se não se tem interesse pessoal ou compromisso com esse tipo de ficção, não há nada a fazer: a exigência simplesmente perde sua força. Levar a exigência cultural a sério significa entrar pessoalmente na competição da cultura, ou, de outra maneira, como diz Groys, “tomar a si próprio como vetor material de cultura”.

Um fenômeno curioso observado por ele é que, quando o encontro de alguém com a arte e a cultura, ocorre tardiamente (por conta, por exemplo, de um meio familiar inculto), a tendência é confundir-se a exigência da cultura com uma força institucional real, isto é, como se ela fosse uma imposição produzida por uma classe, uma raça estrangeira, ou alguma forma de ditadura burocrática, que exige saberes, no fundo, para recusar postos.

Tal experiência dramática de encontro com a cultura pode gerar atitudes tanto de veneração quanto de horror por ela, tanto uma subjugação extrema à cultura quanto uma revolta violenta contra ela. Isto porque, nos dois casos, o encontro com a cultura não é percebido como aquilo que realmente é: um jogo com regras próprias, do qual ninguém está obrigado a participar. A adesão ao jogo decorre, como ficou dito, de uma convicção ficcional apenas. É a perfeita compreensão dessa exigência imaginária que faz com que, na outra ponta do exemplo, os filhos de meios cultivados sejam, por sua vez, menos produtivos culturalmente: eles sabem que podem se dispensar sem punição desse tipo de jogo, caso não se interessem por ele.

As exigências culturais não apenas são fictícias, como dizem respeito a um jogo de “espectros”. Isto porque o objetivo dos artistas e pensadores é superar os melhores em seu campo, o que inclui necessariamente, e, em primeiro lugar, os mortos. Isto é, os artistas que desejarem alcançar o primeiro nível no campo da cultura devem posicionar-se tão bem quanto o souberam fazer os mortos que se tornaram imortais.

As exigências imaginárias dizem respeito, portanto, a uma imortalidade “artificial”, isto é, obtida como efeito de uma política consciente para lidar com os mortos, pois o espaço simbólico da arte necessariamente os inclui. Os mortos vivem ainda! — representados por suas obras, imagens, teorias, atitudes, linguagens.

Nessas condições, para Groys, a verdadeira pressão cultural não vem das instâncias de poder, mas sim desses mesmos mortos ilustres. Eles são um caso muito mais sério do que os vivos, pois continuam a perturbar o presente como verdadeiros criadores. É, pois, com os mortos que os artistas estão em competição; como eles, querem, por exemplo, chegar como edições integrais nas estantes das bibliotecas.

Mais ainda: os verdadeiros leitores dos artistas mais comprometidos com o campo da arte são também os mortos, com os quais competem. O que interessa aos artistas ambiciosos é o que Dante, Camões ou Shakespeare poderiam pensar a respeito deles, e em que medida os imortais podem ser atingidos ou deslocados de seu lugar superior pela força de sua própria corrida rumo ao pódio. Neste ponto também reside uma dicotomia insuperável do artista vivo: o desejo de matar os mortos, ainda uma vez, vencendo-os na grandeza do nome, e o desejo de que esses mesmos mortos o reconheçam, sendo os seus primeiros leitores.

Como disse antes, na competição artística, existe a obrigação incontornável de representar a si mesmo, de inscrever seus signos, de criar uma imagem própria. No vocabulário final um pouco bizarro de Groys, essa obrigação pode ser traduzida pela de “projetar a própria tumba”, ou de “fabricar o próprio cadáver”. Daí também, para ele, a gritante insuficiência das teorias sociológicas que só argumentam em nome da sociedade dos vivos. Enquanto personagens da herança cultural, os mortos não estão mortos. Para Groys, esse fenômeno é intuído até pela indústria cultural cujas únicas personagens sempre exibidas como cultas são os vampiros: mortos que não estão mortos e escravizam os vivos.

Ou seja, escrever livros, se é uma atividade irredutível à economia dos bens perecíveis (e, portanto, esquiva-se de qualquer sociologia), tampouco se inscreve numa economia do desejo (esquivando-se igualmente da psicanálise). Trata-se aqui, em suma, de “construir um túmulo” (mise au tombeau) para si mesmo.

Dito de outra forma: do ponto de vista cultural, só se começa a ser criativo quando se começa a fabricar uma imagem duradoura de si. No vocabulário macabro de Groys, essa imagem só é obtida quando o artista ou pensador começa a “embalsamar a si próprio”, a se “transformar em múmia”, a construir para si um “perfil de cadáver”, ou enfim, quando trata de “representar o próprio enterro” em seus livros, imagens etc.

Assim, quando Groys alerta que arte e filosofia não podem ser deduzidas da vida, ele pretende dizer que essa impossibilidade é completa: não podem ser extraídas nem do que a vida de alguém tenha de excessiva, nem do que tenha de fracassada. Assim, desgraçados de todo o mundo, desenganem-se! Miséria e sofrimento não são condição relevante para a criação. Isto também significa que, diferentemente do lugar comum divulgado a respeito, arte ou filosofia não nascem de uma preocupação ditada pela vaidade, cujo móvel é o corpo vivo, mas de uma preocupação com o cadáver, com o destino do corpo morto.

Para entender melhor a formulação de Groys, é preciso considerar que o cadáver que interessa ao artista construir não se situa ao termo da vida, nem se produz como fuga da vida, mas como marco que está em seu início. A mitologia vulgar sobre o artista sensível ou frágil diante da vida não cabe aqui. O modo de vida próprio da arte tem como condição primeira a adesão à corrida com os mortos, contra os mortos. Como diz Groys, à sua maneira peculiar: “no princípio, era a múmia”.

Isto posto, a idéia de uma “política da imortalidade” deve ser entendida como a maneira pela qual um artista ou pensador encontra de se tornar uma “múmia indestrutível”, um “cadáver vivo”. Ou, para dizê-lo de outro modo, como a maneira que o artista busca de transcender a sociedade efêmera dos seus contemporâneos por meio de uma “metaposição”, isto é, da construção da própria imagem que vai além do mundo dos que vivem e vão morrer. Ou, de outra forma ainda, por meio da construção de uma forma de se comunicar com os mortos célebres e adquirir a imortalidade que já é deles.

Claro que esta comunicação fúnebre, para Groys, nada tem de mística. Trata-se de uma questão intrinsecamente política, prática, embora não seja matéria que teorias científicas, sociológicas ou midialógicas possam dar conta. Adotar uma “metaposição”, produzir uma visão de si mesmo no âmbito do campo artístico, assemelha-se a entrar em contato com os mortos e esperar daí alguma espécie de imortalidade.

Isto significa que o grande problema do artista é “entrar na tradição”, encontrar a porta de entrada para a sala da herança cultural, e não a de saída, como se costuma pensar, quando se fala de ruptura, inovação ou vanguarda. Os artistas que importam tratam de, submetendo-se ao campo da herança cultural, buscar lá um bom enterro, ou, como diz belamente Groys, “um lugar sob o céu do além”.

Ou seja, a busca de imortalidade nada tem a ver com a busca de entidades eternas, como Deus, o espírito, o inconsciente, ou com qualquer outra maneira de fugir ou de lidar com o mundo real. O artista busca a imortalidade apenas para as suas obras de arte. Não se preocupa com a sua alma, como os santos, mas apenas com seu cadáver. Preocupa-se com que o legado de seu corpo artístico continue a viver depois da sua morte. Os livros, as obras são os verdadeiros túmulos do artista, ou, para ficar no campo semântico macabro, as suas múmias.

Este tipo de preocupação, estranha aos ocidentais não voltados para a criação, é, entretanto, segundo Groys, bastante familiar aos egípcios, por exemplo. Para eles, a alma deve partir para que o corpo fique. Nessa mesma chave de leitura, Groys entende de maneira heterodoxa o famoso aforismo de Wittgenstein segundo o qual o filósofo é como “a mosca que não consegue sair do vidro”. Pensa que isto quer significar que a alma do pensador ou artista continua para sempre no âmbito do seu corpo, como prisioneira da linguagem. Para ele, não poderia haver melhor imagem para descrever a imortalidade no campo da cultura.

 

  1. Espaço da cultura, espaço de sombras

 

Groys aproveita de Husserl a idéia de que uma “atitude natural” em relação à vida está em contradição com uma “atitude transcendental”, que preside o campo da arte e da filosofia. Neste último, é irrelevante a separação entre o que existe no mundo real ou não, como fantasmas e demônios, por exemplo. O decisivo na atitude transcendental é saber o que é um demônio, reconhecê-lo em suas formas de representação, entender o que se pensa quando se pensa nele, e, não menos importante, saber o que é preciso fazer, quando se deseja invocá-lo.

A natureza do espaço da cultura não depende de que os atores do fato cultural estejam vivos ou que existam realmente. O espaço simbólico da arte evolui, por assim dizer, excluído da vida, como um espaço de sombras. Os espectros que o habitam, por sua vez, nada têm a ver com a noção de “espectro” formulada por Derrida. Diferentemente do que Derrida supõe, para Groys é fundamental que os espectros possuam “vetores materiais”.

Vem daí o interesse da figura do “vampiro”, aplicada como metáfora que melhor representa a cultura. De um lado, o vampiro “está entre os homens”, participa da comunicação social viva; de outro, ocupa uma “metaposição”, isto é, tem a perspectiva de um morto que não participa dos sentimentos coletivos dos vivos. Além disso, a imagem do vampiro tem a vantagem adicional de apontar para um lugar fixo, um vetor material evidente de si: o seu caixão. Um vampiro depende de seu caixão, para continuar vivo, como o artista de sua obra. Sem o corpo da obra, que possa permanecer materialmente no mundo dos vivos, não há imortalidade que se possa defender.

Enfim, a questão de Groys é clarificar o funcionamento da competição cultural, encontrar as determinações de suas regras, isto é, aquilo que a faz, de fato, uma competição. Nesses termos, um discurso que faz convergir a arte para a vida e vice-versa, como uma filosofia do êxtase ou da transgressão, se não tem o menor interesse para ele enquanto imagem particular fornecida à cultura, interessa-lhe muito como uma estratégia possível a utilizar na competição do campo das artes. Quer dizer, mais do que conhecer os conteúdos de certa obra, interessa-lhe o exame de sua pragmática, da sua política de inscrição do artista no campo santo dos grandes da cultura.

 

  1. Arte/Filosofia como “forma de vida”

 

A acentuar o background wittgensteiniano de algumas das principais formulações de Groys, cabe observar que, para este, embora a competição das artes não possa ser vencida pela maneira de lidar com a vida, a competição, em si mesma, deve ser pensada como um “modo de vida” particular, ainda que se trate de uma forma vampiresca de vida. Por isso mesmo é que não vale a pena aproximá-la ainda mais da vida, que já reside nela, no seu modo particular de viver em competição com os mortos.

Nesta particularíssima maneira de viver, não se admite ensino ou pedagogia. Os que não a praticam tendem a considerá-la incompreensível. A noção de “forma de vida”, tal como Wittgenstein a aplica e Groys a toma, supõe que a filosofia, como a arte, “deixe o mundo como está”, mas transforme o artista ou filósofo, porque exige todo o seu tempo para as operações do jogo que lhe é próprio.

Desse mesmo ponto de vista, arte e filosofia, diferentemente da ciência, não podem ser postas à disposição de todos, nem podem ser acumuladas. Isto equivaleria, para Groys, a uma expectativa tão delirante quanto imaginar que o treino duro de um atleta pudesse fazer com que toda a assistência adquirisse musculatura. Rigorosamente, para ele, arte e filosofia são uma forma de treino do espírito, entendido como trabalho de construção da “subjetividade”. E, em relação a esse tipo de trabalho, tudo o que se pode dizer é que certas regras e conselhos podem ser utilizados para o “próprio” treino.

Enquanto forma de vida, arte e filosofia tampouco participam de uma busca cartesiana de “evidência”. Trata-se, no máximo de “apresentar evidências próprias para outros”, como o artista exibe publicamente as suas obras ou as imagens que produziu de si. O artista ou o filósofo também não podem ser alguém que “vê”, que antevê de modo especial, pois a sua especialidade não existe como substância de uma virtualidade íntima, mas como técnica de mostrar para outros.

Por ser um técnico da exibição, o âmbito da atividade do artista é a política, não a psicologia ou a sabedoria. O sentimento que um pensador ou artista possa ter de “atingir uma evidência” deve ser reinterpretado no contexto dos efeitos produzidos pela comparação de uma idéia nova com outras já conhecidas, e não numa chave de aproximação da verdade. O sujeito da construção artística, nessas condições, é o lugar de uma “incerteza”, de uma “indecidibilidade”, no âmbito de uma comparação deslocadora da idéia nova com as outras conhecidas com as quais entra em relação ou, mais literalmente, em disputa de espaço.

 

  1. Do novo

 

Um dos temas mais desenvolvidos nas reflexões de Boris Groys é o sentido do “novo”, ao qual dedica um de seus livros. A primeira coisa a dizer a respeito é que, na sua noção de novo, não é fundamental a idéia de “ultrapassar o antigo”. Se o antigo fosse ultrapassado seria impossível distinguir o novo, pois este só surge na comparação com o antigo. A “necessidade de novidade” surge da proibição de violar o direito dos outros autores em relação àquilo que já disseram ou fizeram. Ou seja, “o novo é uma exigência imposta pela tradição” e não uma ação independente ou exterior a ela.

Groys supõe que, no terreno da cultura, vigore uma espécie de “regime de propriedade”: quem quiser se instalar nele, está obrigado a buscar um lugar novo para si. Tal obrigação ou exigência nada tem a ver com a idéia de produção do “inteiramente original” romântico, e sim com a de o artista encontrar uma nova maneira de se localizar no próprio campo duradouro da herança cultural.

Nos discursos artísticos e filosóficos interessantes, está sempre em jogo o que Groys chama de “refundação”, termo que, para ele, se associa a uma impossibilidade de compreensão ou de atribuição de sentido. Isto porque, se uma teoria ou objeto artístico estão obrigados à novidade para se impor, tal imposição implica que a teoria ou objeto não possam ser confirmados, nem negados pelas posições conhecidas. Isto é, quando uma teoria ou uma criação são novas, elas se “esquivam” tanto da simples confirmação na autoridade da herança, quanto da negação dela, pois, no primeiro caso, não passariam de uma dedução do antigo, no segundo, seriam contraditadas ou excluídas do campo cultural.

Assim, para Groys, a melhor estratégia para obter o novo está, num primeiro momento, em encontrar um “lugar neutro” de formulação, isto é, um lugar fora do âmbito das distinções ou oposições conhecidas. Num segundo momento do jogo, trata-se de tentar, aí, sim, uma “estratégia revolucionária” de expansão desse discurso. Isto significa “obrigar a se mexer do lugar” tudo o que o precedeu. Refundação, nestes termos, implica em reestruturação de toda a herança cultural. Na metáfora anterior dos móveis da casa, é como se um novo móvel entrasse em seu espaço e a casa inteira tivesse de sofrer uma reacomodação. Portanto, para que a refundação ocorra, tem de haver uma operação decisiva que mostre o deslocamento que a idéia nova produz na tradição, ou, enfim, que demonstre de que maneira esta é forçada a se rearranjar em função da primeira. Apenas nesse ponto, a idéia tem força para se impor como nova.

De qualquer modo, o início do processo está em ajuntar uma nova figura ao campo da filosofia ou da arte, cujas continuidades internas são largamente ilusórias. A aparência de permanência ou rigidez dos campos se deve, de fato, aos “arquivos”, aos museus, que são exteriores, artificiais e materiais.

 

  1. A atração da arte e da filosofia

 

Para encerrar esta apresentação das idéias de Boris Groys, observo apenas que, no momento atual em que as políticas têm, como ele diz, cada vez menos “investimentos utópicos”, ocorre também um curioso crescimento do interesse por arte e filosofia. Groys acha que isso se dá porque há uma espécie de “atitude contemplativa” suposta em ambas, o que as torna especialmente sedutoras em face da tendência dominante de utilitarismo superprodutivista. Por isso mesmo, supõe que arte e pensamento são ainda a melhor chance de “sair da prisão do ar dos tempos”, e de “estabelecer contato com outros tempos e espaços”, para, enfim, “submeter o próprio presente a uma observação crítica e distanciada”.

Por outro lado, cabe lembrar que, se arte e pensamento são uma forma de vida aberta a todos, também é verdade, como ficou dito mais atrás, que ela não tem grande coisa a oferecer àqueles que não aceitam jogar o seu tipo de jogo. Isto é, aquele tipo de jogo cuja alegria última é se aplicar à construção do próprio túmulo, para um dia, com muita sorte, poder se deitar nele e gozar de um merecido relax.


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos