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A perda da experiência da formação na universidade contemporânea

Por ocasião de um debate radiofônico com Hemut Becker sobre as finalidades da educação, em 1966, Adorno definiu a educação como “a produção de uma consciência verdadeira”.1 A princípio, seríamos tentados a considerar que a generalidade da definição a torna quase anódina. Ela parece respeitar todos os termos e condições em que tradicionalmente se equacionou o problema da educação. Pois desde o cuidado socrático com a alma estamos habituados a ouvir e a ler que a pedagogia tem a função de conduzir a consciência individual a apropriar-se da verdade acerca de si e acerca do mundo. Mas o contexto em que essa definição é proferida nos leva a interpretá-la muito mais como o enunciado de uma questão do que como uma afirmação peremptória. Com efeito, há uma enorme diferença entre falar de consciênciae de verdade num contexto histórico de pensamento em que essas noções se encontram elaboradas dentro de um sistema de ideias ordenado e coerente, em que os pressupostos adotados respondem pela consistência interna da totalidade e das relações entre todos os elementos que a compõem; e enunciar essas mesmas noções numa época histórica em que elas estão afetadas por um intenso processo de dissolução. Ora, é esse último contexto que caracteriza a situação a partir da qual se pode falar, na atualidade, de consciência e de verdade.

Vivemos o paradoxo histórico, que o próprio Adorno tentou reiteradamente compreender e que constitui o eixo de seu pensamento crítico, de uma herança civilizatória que desmentiu — ou traiu —, no decorrer de sua própria constituição, os pressupostos implicados na sua gênese. Aquilo a que poderíamos chamar a proposta da modernidade, como sabemos, orienta-se por um horizonte em que a emancipação da razão deveria produzir, como frutos de um conhecimento fundado em bases exclusivamente racionais, a perfeita integração entre o saber e a ação, a teoria e a prática, do que resultaria a realização humana em todos os aspectos, isto é, a consecução de todos os fins humanos, como preconizava Descartes. O humanismo moderno, na sua origem, concebia muito naturalmente a consolidação do império do homem como sendo também, e necessariamente, a efetivação da sua felicidade. Essa ideia de um ser humano completo, completamente realizado, não é apenas a versão laica da bem-aventurança, mas é principalmente a afirmação da liberdade da consciência como o fundamento da verdade que agora aparece para o homem no plano daquilo que pode atingir por si mesmo. Importa enfatizar, portanto, a vinculação, no humanismo clássico, entre consciência, verdade e felicidade. E desde já podemos notar que no enunciado pelo qual Adorno define a educação, a consciência e a verdade estão vinculadas, mas a felicidade está ausente. Compreenderemos a diferença entre o contexto das origens modernas do humanismo e aquele que vivemos contemporaneamente se entendermos que essa ausência não é, de forma alguma, acidental. Trata-se de um vazio que constitui a nossa atualidade, que portanto nos constitui enquanto herdeiros históricos de uma certeza que se revelou uma esperança perdida.

Não podemos certamente recuperar essa esperança, mas podemos ao menos tentar compreender as causas que a tornaram frustrada. Na impossibilidade de um exame mais pormenorizado dessas causas, diremos apenas, alertando para a inevitável simplificação, que o processo de desenvolvimento da razão emancipada — aquela que se pretendia como sustentáculo de um equilíbrio perfeito entre a teoria e a prática — provocou efeitos civilizatórios contrários aos seus pressupostos, exatamente pela impossibilidade de manutenção desse equilíbrio entre a razão como meio de produção de instrumentos científicos e técnicos de aprimoramento da civilização e a mesma razão como discernimento dos fins humanos a que tais instrumentos deveriam servir, para o efetivo aprimoramento da vida. É precisamente esse desequilíbrio, e a consequente prevalência dos meios, isto é, da razão puramente instrumental, que nos coloca hoje na posição, impensável para um humanista clássico, de poder enunciar a pergunta: progresso — para quê? Isso significa que a separação entre meios e fins, que na origem tinha o propósito de permitir a articulação das duas instâncias na unidade da razão, tornou-se um isolamento e uma desconexão total e absoluta entre meios e fins, o que tende a fazer da racionalidade técnica e instrumental uma força cega, empenhada numa trajetória que acabou por fazer de si própria a única referência de percurso.

É evidente que essa quebra na unidade originária dos dois polos de racionalidade — o teórico e o prático — bem como a progressiva intensificação de uma nova articulação, não apenas dividiu a consciência, como também desencadeou um processo, que parece estar bem adiantado, de dissolução da dimensão da subjetividade em que o homem poderia reconhecer a autonomia de suas ações e o próprio teor humano, individual e comunitário, dos fins a serem perseguidos. O que significa que o processo de autonomização racional produziu um fenômeno de unilateralidade: a perda da dimensão prática, ética, ativa, da subjetividade. Trata-se da situação, atualmente vivida, da perda das referências éticas, ou da substância ética da vida. Deve-se entender isso como unilateralidade porque não se trata apenas de uma divisão ou de uma tensão entre elementos diversos; o que ocorre é uma anulação da relação ético-prática com o mundo, o que resulta numa anulação da subjetividade, já que o sujeito perdeu o equilíbrio que o sustentaria na articulação entre meios e fins, e dessa maneira perdeu a possibilidade de produzir a verdade histórica que preencheria a existência com um sentido efetivo. Daí as expressões “crise de sentido” e “crise de valores” que são muitas vezes utilizadas para designar a época contemporânea.

Vivemos portanto numa época caracterizada pela dissolução da consciência e pela dissolução da verdade. É a partir dessa constatação que devemos procurar entender o significado da definição de Adorno: a educação é a produção de uma consciência verdadeira. Tanto mais que, na explicitação dessa definição, Adorno identifica o caráter verdadeiro da consciência com a sua emancipação:

“Isto [a produção de uma consciência emancipada] seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas de operar conforme o seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado.”2

A questão surge, então, colocada em toda a sua contundência: como se pode falar de consciência emancipada precisamente num contexto histórico em que as condições objetivas provocam a dissolução da subjetividade? Como educar para a emancipação se as determinações sociais e históricas pressionam no sentido da anulação do sujeito enquanto agente consciente e livre?

A bem dizer, não haveria resposta para essas questões, em sentido absoluto. Mas a mediação política que o texto de Adorno parece estabelecer entre educação e emancipação pode talvez nos indicar uma direção. A emancipação é uma “exigência política” da sociedade democrática. No entanto, a correspondência entre democracia e emancipação pode permanecer uma relação apenas formal. Quando a democracia não “opera conforme seu conceito” a sociedade não apenas parece prescindir da emancipação como até mesmo produz uma pressão sobre os indivíduos no sentido de que a emancipação não se torne uma realidade. Há, portanto, um componente antidemocrático nas sociedades formalmente democráticas, que as condições conjunturais podem exacerbar, a ponto de se produzir algo muito próximo de uma situação totalitária no interior da própria democracia. Isso acontece quando os indivíduos assimilam o que Adorno chama de “ideais exteriores” sem que estes passem pelo crivo crítico de uma consciência emancipada. Ora, longe de ser exceção, isso é antes a regra. É uma decorrência do “mundo administrado”, isto é, de um mundo organizado ideologicamente, no qual se perdeu a possibilidade de “visão de mundo” no sentido teórico, em que a ideologia exerce uma pressão que parece não deixar qualquer interstício para uma conduta emancipada da consciência. Nesse sentido, quando se fala em emancipação, não se pode deixar de “levar em conta o peso imensurável do obscurecimento da consciência pelo existente”.3 Qual é a causa desse obscurecimento? Ela pode ser encontrada, segundo Adorno, numa atitude de hiper-realismo que leva as pessoas a entenderem que a única conduta coerente perante a realidade (o existente) é a adaptação.

“Se posso crer em minhas observações, suporia mesmo que entre os jovens e, sobretudo, entre as crianças, encontra-se algo como um realismo supervalorizado — talvez o correto fosse: pseudorrealismo — que remete a uma cicatriz. Pelo fato de o processo de adaptação ser tão desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os homens vivem, eles precisam impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmos…”4

A introjeção de “ideais exteriores” tornou-se um componente da vida em sociedade, no mundo administrado, de modo que a autopreparação para a adaptação, e, sobretudo, a ideia de que a sociabilidade significa sempre adaptação, não permite que as pessoas notem que esse processo agride a consciência, por ser essencialmente antiemancipatório. Trata-se da concepção de que a realidade é intocável e imutável: é este o sentido do hiper-realismo, a aceitação pura e simples à qual se segue naturalmente a adaptação, como se não fosse possível agir de outra maneira, já que a realidade por sua vez também não pode se apresentar de outra forma.

É desse modo que a consciência se produz a si mesma como falsa, naturalizando a sua relação com o mundo. É próprio do ser natural viver de um único modo e sempre o mesmo; a consciência humana tem como sua diferença a prerrogativa da escolha, e quando nega essa diferença nega a si própria. A adaptação é portanto a maneira pela qual o sujeito participa do processo objetivo que provoca a sua própria anulação, numa espécie de cumplicidade encorajada pelas próprias condições históricas. Nem é necessário observar que a educação tem muito a ver com essa confluência entre o hiper-realismo do sujeito e as determinações históricas de um contexto que não pode suportar consciências emancipadas. É o processo de ajustamento, que dissimula nas suas próprias formas de realização a essência autoritária que o define. O que resulta desse processo é um empobrecimento e uma desfiguração da experiência. “A experiência é um processo autorreflexivo em que a relação com o objeto forma a mediação pela qual se forma o sujeito em sua ‘objetividade’ ”.5

Nunca enfatizaremos suficientemente a relação entre sujeito, experiência e formação. Em primeiro lugar cabe observar que a experiência é um processo de formação do sujeito. Este portanto não é aquela substância metafísica que Descartes julgou descobrir refletindo sobre o procedimento de duvidar. A menos que este próprio procedimento de dúvida seja tomado como uma figura da relação mais ampla entre a consciência e os objetos na qual, por autorreflexão, se forma o sujeito, isto é, se estabelecem as mediações por via das quais o sujeito tomará consciência de si diante dos objetos. O sujeito não pode ser concebido separadamente de sua própria experiência e esta só pode ser concebida como o dinamismo de formação do sujeito por via de sua autorreflexão. Não há, portanto, qualquer modelo ideal e exterior de experiência, assim como não pode existir um paradigma de constituição da subjetividade. Mas há um horizonte regulador com o qual podemos confrontar a cada momento a experiência de formação da subjetividade: é a formação realizada, isto é, a subjetividade plenamente constituída na experiência — o que em termos hegelianos seria a “ciência da experiência da consciência”. Tal ponto jamais será atingido porque o homem é um ser histórico e não lhe encontraríamos um sentido se a história fosse finalizada. Portanto a formação como processo de experiência de uma subjetividade que constantemente se constitui na temporalidade histórica poderia ser entendido como o sentido da emancipação. O que nos impede de conferir à noção de emancipação uma significação apenas conceitual e abstrata. Concretamente, sabemos que a experiência de constituição da subjetividade, que seria uma trajetória de emancipação do indivíduo, é travada pelas condições sociais e históricas.

Mas como somos seres históricos e não naturais, somos consciências e, em termos sartrianos, consciência significa antecipação de si mesmo, então podemos exercer a liberdade de negar a realidade presente, o que deveria ser um momento dialético de nossa relação histórica com o mundo. Essa negação, enquanto recusa de adaptação, não substitui a ordem do existente mas pode suspender criticamente o processo de ajustamento derivado do realismo exacerbado. Negar a realidade presente não significa a pretensão de anular o mundo (como uma forma de reagir à anulação do sujeito), mas apenas compreender que a experiência inclui uma relação transformadora com o objeto, o que vem a ser também uma transformação do próprio sujeito. Em termos mais estritamente adornianos, seria a recusa do existente. Essa recusa é algo que se deve incorporar à experiência, para que ela não degenere em adaptação e ajustamento, mas possa se aproximar daformação. Qual será a via dessa aproximação?

“Mesmo correndo o risco de ser taxado de filósofo, o que, afinal, sou, diria que, […] hoje em dia, […] a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência.”6

O que pode significar “uma educação para a contradição e para a resistência”? De acordo com o que vimos acerca do hiper-realismo, as pessoas são encorajadas a uma aquiescência total ao que existe, como se fosse antinatural ou utópico ou insensato opor-se àquilo que se impõe como realidade. Essa atitude naturalista perante as coisas é tão difundida porque corresponde a um dogmatismo que nem sequer é fruto de crenças fortes, mas simplesmente desempenha uma função acomodadora. Ao hiper-realismo corresponde portanto algo como uma vontade de unicamente afirmar, no sentido de corroborar sempre a realidade. É a atrofia da capacidade crítica, certamente, mas devemos compreendê-la não apenas como empobrecimento existencial e cultural mas também do ponto de vista das condições objetivas, isto é, do clima de “consenso” naturalista que rechaça qualquer atitude de contestação e de crítica assim que elas ameaçam aparecer. Ora, o que se tem de considerar — e a educação pode desempenhar algum papel no desenvolvimento dessa postura — é que tudo que existe deve ser visto tanto pelo lado afirmativo da sua existência quanto pelo lado negativo de que poderia não existir e haver outra coisa em seu lugar. Essa relativização do existente somente pode ser operada por meio da negação. Negar não é suprimir pura e simplesmente; é pensar que sempre é possível uma outra posição. A realidade não é uma plenitude positiva e as coisas não existem de modo absoluto. Ainda que se concorde com isso em teoria, na prática as pessoas se comportam como se tudo fosse necessário, e essa lógica, que seria imanente às próprias coisas, pode justificar tudo. Esse é o aspecto perigoso do realismo exacerbado e da adaptação. Por isso a contradição do existente (no sentido de contradizê-lo) é uma atitude que aponta para a emancipação porque produz a resistência àquilo que é imposto como opção única de realidade. É o que vimos antes como a recusa do existente.

Essa atitude não é gratuita e nada tem a ver com um exercício da oposição simplesmente pela oposição. É algo que repõe nossa consciência no movimento que lhe deveria ser próprio, o da ação lastreada historicamente. Pois para um ser histórico, a abertura de possibilidades é sempre histórica. É nesse sentido que o passado histórico, por ex., adequadamente elaborado, pode sustentar a crítica do presente, não porque uma tal crítica se confunda com nostalgia ou desejo de volta ao passado, mas porque as possibilidades do passado, tanto as realizadas quanto as não realizadas, nos ajudam a ampliar e aprofundar os critérios de consideração do presente. Walter Benjamin mostrou esse componente de irrealização na história, que de alguma maneira deve ser recuperado numa visão não positivista do curso histórico. Mas é próprio do hiper-realismo a exaltação do presente, que por sua vez deriva da ideologia do progresso. É isto que faz com que a atitude crítica seja confundida com nostalgia, conservadorismo, catastrofismo, paranoia, utopia, desatualização etc. Quando se considera a história apenas para exaltar o presente e a linearidade necessária do progresso, de fato se recusa a história, porque se deixa de ver que, no seu movimento dialético, muitas vezes a história realiza possibilidades na forma da própria negação delas. Como compreender de outra maneira que as possibilidades emancipatórias que o humanismo moderno continha na sua origem foram negadas no desenvolvimento histórico, e negadas pelos próprios meios que deveriam servir à sua realização, ou seja, aqueles implicados na autonomia da razão? Como explicar que o progresso da tecnologia e as revoluções industriais, o acervo impressionante de descobertas que a ciência acumulou no espaço de quatro séculos tenham contribuído para fazer desmoronar as promessas de felicidade e para tornar opaco o futuro no que se refere à realização das finalidades humanas? Sem a consideração dessas contradições tão incrustadas na vida histórica, não há como compreender a experiência humana nos termos da sua realidade e das suas possibilidades. E assim não há como compreender também a constituição do humano como experiência de formação, ainda que tivéssemos de compreendê-la como experiência abortada.

Pois o que se pode depreender do que foi dito é que estamos diante de uma experiência arruinada. A conformação histórica tomada pela modernidade, ao truncar a experiência, descaracteriza a formação do sujeito ao interferir decisivamente — e negativamente — no processo de autorreflexão. A impossibilidade de autorreflexão configura a heteronomia do sujeito, pois tudo se passa como se o sujeito vivesse uma experiência alheia a si próprio. É a isso que se costuma chamar “experiência da alienação”, expressão que, no rigor dos termos, é contraditória, se admitimos que o sentido verdadeiro de experiência é inseparável de autorreflexão formadora, requisito da autonomia. É importante enfatizar a noção de experiência na sua vinculação à formação para não sucumbirmos à tentação de entender a impossibilidade aqui descrita como a perda de algum “ideal formativo” que se teria desgastado nos avatares da história cultural. Não se trata de admitir um ideal não realizado, um princípio absoluto de orientação ao qual a experiência histórica não teria conseguido ser fiel. Esse platonismo comprometeria a experiência humana com a heteronomia no próprio processo de sua constituição, devido à prevalência de um paradigma externo. As experiências humanas moldam a história e a história molda as experiências humanas: não se trata de um círculo vicioso, mas da própria definição de historicidade, ou da existência como vida histórica, cujo sentido está na relação dialética que a liberdade mantém com as determinações. De modo que devemos compreender que a experiência da subjetividade, da formação e da autonomia se constitui ou se desconstitui no rumo histórico da humanidade e a partir de condições objetivas.

E isso coloca o pensamento crítico diante de uma inevitável ambiguidade. Quando esse pensamento se liberta da remissão da finitude a ideais absolutos abre-se o campo de possibilidade para uma crítica imanente, uma vez que o pensamento e a ação passam a ser vistos na contingência do processo histórico. Ao mesmo tempo como o processo histórico realiza alguns possíveis e deixa outros sepultados ao longo do seu próprio percurso, a história efetiva aparece como que regida por uma necessidade imanente. Pois quando o acontecimento se torna passado, quando o presente já aconteceu, os possíveis que orbitavam em torno da realidade também se tornam passado. De que adianta perguntarmos, a partir do já ocorrido, como as coisas poderiam ter ocorrido? É dessa forma que se encoraja uma explicação totalmente positiva do passado histórico — e da história — que no entanto não é uma compreensão da história, porque deixa de lado exatamente o conflito de possibilidades que está no engendramento de cada presente. Já vimos como isso está na origem do fenômeno de adaptação enquanto aceitação absolutamente realista do presente, uma conformação à “objetividade” do presente histórico, atitude conformista que procura ignorar como o presente se formou. A compreensão da história, não no sentido de Dilthey, mas no sentido dialético, permite que o pensamento crítico se exerça de maneira consciente da ambiguidade a que nos referimos. Pois não preciso ascender até ideais transcendentes para escapar da aparente necessidade imanente ao processo histórico, se considerar essa necessidade como o triunfo de possibilidades tão contingentes quando aquelas que deixaram de se realizar. Esse componente de irrealização que se conserva na realização histórica nos permite relacionar a cristalização do passado com a liberdade dos agentes históricos que o construíram como presente. Ou seja, a consciência histórica tem que operar negativamente se quiser compreender que a história não são os dados históricos mas a experiência humana que nela se formou.

É essa compreensão que forma o sujeito histórico, isto é, que torna a sua consciência verdadeira. Ora, se a formação tem algo a ver com a educação, essa relação só pode se dar com uma educação crítica, uma educação que subverta os padrões adaptativos impostos pela desagregação histórica da experiência. A formação significa, entre outras coisas, a possibilidade de o sujeito articular-se historicamente, ou seja, equilibrar a sua inserção no presente a partir de uma articulação entre o presente e o passado históricos. Já vimos que não pode haver crítica do presente se ele for considerado absoluto, e se o futuro só puder ser considerado como uma extensão meramente quantitativa do tempo presente. A apropriação crítica do presente é inseparável da sua relativização.

“A educação crítica é tendencialmente subversiva. É preciso romper com a educação enquanto mera apropriação de instrumental técnico e receituário para a eficiência, insistindo no aprendizado aberto à elaboração da história e ao contato com o outro não-idêntico, o diferenciado.”7

A questão que se põe a seguir é tão difícil quanto é clara e coerente a conclusão a que chega o texto citado: é possível que a educação institucionalizada venha a assumir essa perspectiva? A princípio essa pergunta parece ser uma daquelas que alguém só faz porque já sabe antecipadamente a resposta. Mas é de se supor que a questão encerra muito mais do que um efeito retórico. Se a perda da possibilidade da experiência formativa é “uma tendência objetiva da sociedade”, correspondendo ao seu “próprio modo de produzir-se e reproduzir-se”,8 e se tal tendência é acentuada no estágio atual do capitalismo, talvez não se possa esperar dos agentes históricos uma reversão do processo. O interesse historicamente estabelecido a partir da necessidade de dominação pela administração das consciências jamais poderia aceitar uma educação crítica. A situação é tanto mais complexa e grave quanto esse interesse não atua na forma de uma determinação bruta e explicitamente repressiva, mas de maneira insinuante e pela introjeção de padrões que os indivíduos acreditam serem os modos espontâneos de relação entre consciência e mundo. A mercantilização da educação é, entre nós, a prova mais viva do êxito dessa estratégia, pois significa que a sociedade já aceitou inteiramente que a educação é um produto, com o qual devemos estabelecer a mesma relação de objetividade formal que estabelecemos com todos os outros produtos e serviços que são oferecidos para consumo. E o produto educacional universitário é justamente aquele que poderia realizar de forma mais conclusiva a adaptação do indivíduo ao mundo presente e ao mundo futuro pensado como extensão do presente. A ampliação do comércio educacional, que nos últimos anos alcançou entre nós proporções nunca vistas, atinge principalmente o segmento universitário, haja vista a inflação de universidades e centros universitários privados.

Porém quando falamos em “educação institucionalizada” parece que habitualmente ainda queremos nos referir à escola pública, por via de uma ligação mais forte, que o passado provavelmente legitimou, entre o público e o institucional. Deveríamos então fazer uma diferença entre instituição pública educacional, principalmente a universidade, e as empresas privadas de educação universitária, entendendo que o interesse historicamente estabelecido, a que nos referimos há pouco, atuaria com menos intensidade na universidade pública, a qual, justamente por ser pública, refletiria de forma menos imediata os objetivos pragmáticos que as organizações privadas proclamam tão abertamente? Em suma, o espaço de pensamento crítico que permite a formação estaria ainda preservado, de alguma maneira, na universidade pública? Creio que se deve responder negativamente a essa pergunta, mas, para prevenir a acusação de radicalismo ou de catastrofismo, convém explicitar as razões da resposta negativa.

O argumento tradicional para a convivência do ensino privado com o ensino público consiste em afirmar que, numa democracia, as pessoas devem ter o direito de escolha e de exercer opções dentro dos limites legais. É o que fundamenta a liberdade de crença religiosa, de adesão política, de trabalho etc. A educação estando entre as possibilidades de opção, é necessário que exista a escola privada como alternativa ao ensino público, para contentar os que desejam optar por educar seus filhos ou educar-se numa escola particular. Essa seria a razão daconvivência de dois sistemas. A convivência democrática supõe que a existência dos dois elementos nunca poderá chegar a um grau de diferenciação e supremacia que resulte em ameaça de extinção de um deles. Todos nós sabemos com que ardor os donos de escolas privadas defendem este princípio democrático. O problema é que o poder público não o defende com o mesmo entusiasmo. O desinteresse pela educação, manifestado sobretudo pela exiguidade de recursos mas também, principalmente nos últimos tempos, pela obsessão punitiva contra aqueles que se dedicam ao ensino público, demonstra a evolução de um projeto deliberado de desestabilização do sistema público de ensino, mormente o universitário, o que objetivamente significa beneficiar o ensino privado. Há no entanto outro ponto, que afeta ainda mais a universidade: o modelo privatista de organização e gestão que vem sendo implantado já há muito tempo, sob pretexto da eficiência e da produtividade, e que tende a dissolver a diferença entre instituição pública e organização privada. Ora, se supomos que finalidades específicas só podem ser cumpridas se associadas a meios adequados a esta especificidade, o quadro que se desenha diante de nós é o de uma escalada progressiva na direção da inviabilidade das atividades acadêmicas tais como se configuram numa instituição pública universitária. O desequilíbrio gerado pela imposição do modelo privatista da relação custo/benefício e da eficiência refletida nos resultados imediatos desmente na prática o princípio democrático da convivência entre o público e o privado. São essas as razões que mostram, a quem quiser ver, que existe uma ameaça objetiva à universidade pública, que em princípio e ao menos teoricamente, poderia ainda ser pensada como possibilidade de formação. As transformações que lhe vão sendo impostas — e muitas já se consolidaram — implicam na anulação das condições acadêmicas para o exercício do pensamento crítico.

Trata-se, como vimos, de um processo histórico que deve ser pensado a partir de suas condições objetivas. Mas trata-se também de uma adaptação cega ao presente histórico e, neste sentido, de uma cumplicidade que os sujeitos históricos mantêm com as condições objetivas, que de forma alguma precisariam ser interpretadas como a necessidade inelutável. A causa de que haja atualmente tamanho empenho, dentro e fora da instituição, na destruição da universidade pública, certamente pode ser pensada como uma figura privilegiada da confluência entre dois elementos interdependentes: o desprezo pela responsabilidade histórica e a desagregação moderna da integridade da experiência humana.

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Notas

  1. ADORNO, T. W. “Educação — para quê?” IN: Educação e Emancipação. Trad. brasileira de W. L. Maar, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1995, p. 141.
  2. ADORNO, T. W. Ob. cit., pp. 141–2.
  3. ADORNO, T. W. Ob. cit., p. 143.
  4. ADORNO, T. W. Ob. cit., p. 145.
  5. MAAR, W. L. À Guisa de Introdução: Adorno e a Experiência Formativa. IN: ADORNO, T. W. Ob. cit., p. 24.
  6. ADORNO, T. W. “Educação e Emancipação”. IN: Ob. cit., p. 182–3.
  7. MAAR, W. L. À Guisa de Introdução: Adorno e a Experiência Formativa. IN: Ob. cit., p. 27.
  8. MAAR, W. L. Ob. cit., p. 26.

 Sobre Franklin Leopoldo e Silva

É um professor universitário brasileiro. Bacharel (1971), mestre (1975), doutor (1981) e livre-docente (1991), pela Universidade de São Paulo, é professor titular de história da filosofia contemporânea da mesma universidade. Especialista em Descartes, Bergson e Sartre, escreveu inúmeros artigos, participou de várias coletâneas e escreveu os seguintes livros: Descartes: a metafísica da modernidade (Moderna, 1994); Bergson: intuição e discurso filosófico (Loyola, 1994); Ética e literatura em Sartre (Unesp, 2004); Felicidade: dos filósofos pré-socráticos aos contemporâneos (Claridade, 2007).