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Barack Obama e a América Latina

Transcrevo duas estrofes da peça, nas quais as diferenças aparecem nítidas:

Rica, potente, activa y venturosa
Se levanta de América en el Norte
Una nación sin reyes y sin corte,
De sí señora – esclava de la ley;
Débil ayer, escasa de habitantes,
Al ver que Albión su libertad robaba,
¡Atrás, gritó: la servidumbre acaba,
Porque hoy un Pueblo se proclama rey!

[…]

Mas aislados se encuentran, desunidos,
Esos pueblos nacidos para aliarse:
La unión es su deber, su ley amarse:
Igual origen tienen y misión;
La raza de la América latina,
Al frente tiene la sajona raza,
Enemiga mortal que ya amenaza
Su libertad destruir y su pendón.

Caicedo é claro ao afirmar que “la sajona raza”, embora tenha a mesma origem colonial, é um obstáculo à América Latina – sua inimiga mortal –, pois ameaça sua liberdade e destrói sua vocação igualmente de ventura. Do ponto de vista norte-americano, todos os países ao seu sul compõem a América Latina. O fato é que, com exceção de Brasil e México, os outros todos são pequenos países impotentes, para me valer da expressão de Eric Hobsbawm. O Brasil é hoje a nona maior economia do mundo, superando a Itália; e o México, a décima primeira, superando a Espanha, a décima segunda, com 4 milhões de desempregados. Brasil e México superam o Canadá, que pertence à América do Norte (décima quarta posição).

Nos cem primeiros dias de seu governo, Barack Obama agiu na questão principal e também na secundária. A secundária é Cuba. Ao liberar viagens e remessa de dinheiro para a ilha, advertiu que o Embargo comercial a ela imposto só será levantado quando o país libertar seus prisioneiros opositores e aderir à democracia. É o “imperialismo dos direitos humanos”, para me valerde outra expressão de Hobsbawm. Ao mesmo tempo em que condicionava o levantamento do Embargo – instrumento mais simbólico hoje do que real –, declarava que não iria perseguir judicialmente os agentes da cia, torturadores dos afegãos e iraquianos, pois eles supunham trabalhar de acordo com a lei. Argumento hipócrita: Obama elegeu-se com plataforma anti-Bush. (Sob pressão de ongs, começa a voltar atrás e admite investigar George Bush e Dick Cheney.)

Cuba é um pequeno país impotente, com ou sem democracia ou com ou sem embargo. O presidente estadounidense não deseja apoiar um Fulgêncio Batista para suceder Raúl Castro. Obama é acusado de ser socialista pelo Partido Republicano e, por isso, não levantará, tão cedo, o Embargo – desumano e inútil, como o define Luiz Alberto Moniz Bandeira. Hoje, Cuba precisa, economicamente, dos Estados Unidos, haja vista a disposição incomum dos Castro, ante as carências de seu país, em dialogar com Obama. Com o gesto de liberar viagens e remessas de dinheiro dos Estados Unidos, Obama neutralizou Hugo Chávez e sua Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), iniciando o degelo da neve da Guerra Fria. Compõem a Alba Venezuela, Bolívia, Cuba, Nicarágua, Honduras, Dominica, Paraguai, Equador e São Vicente de Granadinas, que, na Cúpula, criou o sucre, sua nova moeda comum. Deste modo, Hugo Chávez – um autocrata eleito – tenta se fazer herdeiro dos Castro e liderar uma ala de oposição aos Estados Unidos – o que preocupa Washington, mas não chega a se traduzir em um problema frente à pobreza desses países e a inconsistência e “volatilidade” do Coronel. A Alba é uma pequena aliança impotente. Aliás, o número de miseráveis da América Latina e do Caribe deve aumentar de 38 para 41 milhões rapidamente – esta uma séria questão não abordada pelos presidentes.

O principal ponto é a hegemonia que o Brasil alcançou na América do Sul, que fere os ditames da Doutrina Monroe, aplicada até a presidência de Bill Clinton. George Bush a abandonou em parte em virtude de suas guerras. Barack Obama pretende recuperá-la com novos conteúdos não-intervencionistas, e, por isso, não toca mais em assuntos como Área de Livre Comércio das Américas (Alca), procurando se aproximar do Brasil, que elege presidentes moderados ideologicamente. O México é um problema e uma solução ao mesmo tempo e não ameaça os Estados Unidos diretamente, inclusive por estar, de fato, na América do Norte. Sua tópica é a da migração e do tráfico de drogas, consumidas pelos americanos. A América Latina de hoje é complexa, com vários organismos novos, como a Unasur (que criou um exército sul-americano) e a já mencionada Alba – uma aliança impotente –, entre outros.

Os novos organismos relativizam a OEA, por meio da qual Tio Sam comandava o subcontinente. Juan Gabriel Tokatlian afirma que os Estados Unidos necessitam mais da América Latina do que ela dos Estados Unidos em virtude de seu enorme eleitorado hispano, que aumenta a cada dia. Acrescento: sem uma parceria com o Brasil e com o México, os Estados Unidos sairão de forma mais dificultosa de sua crise econômica estrutural. Barack Obama reconheceu este fato ao elogiar várias vezes Luiz Inácio Lula da Silva na reunião do G20 e, depois, em entrevista à CNN. Em setembro do ano passado, com a quebra do banco Lehman Brothers, houve, por parte dos Estados Unidos, um ataque às moedas da América do Sul, que perderam em média 50% de seus valores para que as matérias-primas pudessem ser importadas a custos mais baratos, visando já a reconstrução daquele país. É por isso, entre outras coisas, que considero as relações ainda muito ambíguas, com interesses em conflito.

Observa Antonio Caño, de El País, que o principal saldo da Cúpula das Américas de Trinidad y Tobago foi o contraste entre a figura cultivada e contemporânea de Barack Obama e a dos demais presidentes. Escreve:

Repassando o mapa de sul a norte, se encontra a esposa de um ex-presidente governando a Argentina, um partido há dezessete anos no poder no Chile – a Concertación –, que já supera em anos a ditadura de Augusto Pinochet, um ex-presidente, presidente de novo no Peru, um presidente colombiano reeleito depois de uma reforma constitucional ad hoc, um presidente semivitalício na Venezuela, um filho de um ex-presidente agora presidente do Panamá, um ex-presidente de novo presidente da Nicarágua, e outro ex na Costa Rica.

Conclui que as sociedades latino-americanas se modernizaram estruturalmente, mas ao contrário de suas instituições políticas. Trago à tona um exemplo: Chávez presenteou Obama com um exemplar do datado livro Veias abertas da América Latina, do datado escritor uruguaio Eduardo Galeano. Os Estados Unidos não se constituem mais no “inimigo mortal” do Brasil, no momento, para utilizar os versos de Caicedo, mas num parceiro estratégico (para o ingresso no G8 e no Conselho de Segurança da onu). Mas o Brasil precisa – como toda a América Latina – reformar politicamente seus poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ainda muito arcaicos, piores dos que os também reformáveis norte-americanos, para que, ao cabo, “o povo se proclame rei”.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.