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CARNAVAL TRANSDOOR NA BAHIA

A herança cultural não pode ser vista, de agora em diante, apenas como um valor herdado, que deve ser preservado e protegido, como parte da identidade de certa sociedade. A herança como raiz não está dissociada do tronco vivo ou dos galhos de uma sociedade e, longe de ser um legado mumificado, deve ter o objetivo de se constituir em uma raiz autêntica e se expandir como uma riqueza plena, estar em um constante processo de recriação. Nesse caso, o lema deveria ser: “nunca contra as raízes, mas sempre e sempre, além delas. (LACAYO PARAJÓN, 2001, p. 6)

Bahia de São Salvador. Multidão de corpos, ritmos, canto. Da casa à rua, os usos e costumes se espraiam ao som da percussão e das melodias, o corpo sem as amarras do decoro e dos rituais civilizatórios. Carnaval com seus blocos e afoxés na cidade-mãe.

O Carnaval aqui como alhures promove o indivíduo ao anonimato livre de liames da esfera privada, o olhar desvia seu curso da ótica da cordialidade e da solidariedade da casa para ingressar no anonimato aventureiro. Assim é nesta cidade de João (Baêa, Viado, Meu Rei, Meu Bróder) e de Maria (Ninha, Minha Linda, Putinha, Amiga).

As duas esferas da ação social, casa e rua, se mesclam e se permutam numa espécie de lógica subvertida, erotismo e sentimento orgíaco se confundem e se alimentam, abre-se a porta das fantasias reprimidas no espaço público.

Os aspectos mais profundos da realidade quotidiana – aqueles que talvez sejam perturbadores demais para se mostrar abertamente – se mostram e se espraiam no Carnaval. O desvio latente brota da alegria carnavalesca.

Invertidas as regras da convivência nas esferas privada e pública, rua e casa, no chão da praça ou no asfalto das avenidas da cidade barroca coexistem loucura e razão, sagrado e profano, sublime e grotesco, num surto de liberação (Eros), de destruição (Tanatos) e de recomeço de alguma coisa que não se percebe de pronto o que é, nó górdio das histórias pessoais, anseio, impulso energético de tanta vida reprimida na constrição econômico-social da sociedade capitalista em seu consumismo feroz.

Na Bahia mais que em outros carnavais brasileiros, o Carnaval se processa como delírio carnal antes da penitência quaresmal. Vale tudo. É a afirmação barroca que se revela nos blocos com seus abadás coletivos que ocultam aquilo que se teme

De modo geral, o Ninguém se torna Alguém, Alguéns coletivos, de peça anódina no mercado de trabalho a personagem mitológica de uma história mitológica, esta, essencial para a vivenciação do momento do Carnaval.

 

No tempo de Rabelais (Bakhtine), o Carnaval abria o caminho popular para uma experiência não hierárquica da vida, contra os códigos rígidos da ordem medieval. Diante da sociedade feudal, o Carnaval se tornava a possibilidade de existência paralela ao Estado ou à sua margem para segmentos populares. Então, as verdades oficiais se deslocavam ou invertiam pela paródia carnavalesca. Num salto, caiamos no espaço contemporâneo e verificaremos a reversão num efeito de espelho, o que é diametralmente diverso de uma utopia de mudança estrutural.

Se a lei é colocada de modo reverso, teremos apenas uma ‘anti-lei’ (Muniz Sodré), não uma nova ou reformada em benefício do coletivo. A ‘liberação’ pura e simples da festa escamoteia a mudança.

Sabe-se, o Carnaval é um período de festas regidas pelo ano lunar no Cristianismo da Idade Média. O período do Carnaval era marcado pelo “adeus à carne” ou “carne vale” dando origem ao termo “carnaval”.

O Carnaval constituía simultaneamente um conjunto de manifestações da cultura popular e um princípio de compreensão holística dessa cultura em termos de visão do mundo coerente e organizada.

O elemento que ainda unifica a diversidade de manifestações carnavalescas e lhes confere a dimensão cósmica é o riso coletivo, que se opõe ao tom sério e à solenidade repressiva da cultura oficial e do poder, que não se limita a ser negativo e destrutivo. Antes, projeta o a multidão-que-ri em liberdade fecunda e regeneradora.

Na Bahia, será talvez nos afoxés que reside o traço mais típico e autêntico da cultura do carnaval.

As observações abaixo são pertinentes:

O Afoxé é a referência das comemorações carnavalescas da primeira capital brasileira em 2009. Até porque comemoramos 60 anos do tapete branco da paz resistindo desde a passagem da segunda guerra até hoje (1949-2009). Trata-se de conquistas múltiplas marcadas por querelas culturais, sociais e festivas tantas que caracterizam a complexidade de nossa história. É a antevisão de uma conquista humana em busca de uma diversidade plena. É como o anúncio de vitória de uma “afro-baianidade” misteriosa e mítica que guarda sua glorificação numa mescla inusitada de cultura, estética e religiosidade. O “afoxé” de matriz étnica nagô guarda na sua significação o mistério de nossas origens e mesclas. Enfim, revela miticamente a realização dos contatos humanos através da palavra e da vida festejada e concretizada. Ou seja, a etimologia desse vocábulo aponta para a soma de duas expressões da língua nagô: fó (palavra, sopro) e axé (poder de realização).

O termo “afoxé” abriga uma reflexão de ordem filosófica e epistemológica profunda. Ou seja, a “palavra” enquanto “sopro” emissor da comunicação realizando o partilhamento cultural da vida humana. Sem respirar o homem não existe e ao expirar o ar da vida emite sons socializando e conspirando possibilidades do existir através de recepções múltiplas. Ao “soprar” na direção dos outros os homens viabilizam o caminho da emissão e do significado concretizando a existência em linguagem e comunicação. Exu que o diga.

Paradoxalmente, o termo “Afoxé” passaria a representar, historicamente, significados tantos para além de sua rica etimologia. Afoxé hoje é sinônimo do ritmo do ijexá, do instrumento musical xequeré e, principalmente, das agremiações afro-carnavalescas homenageadas enquanto tema do Carnaval de 2009. Importante informar que a formatação dessas agremiações afro-carnavalescas constituídas entre os séculos XIX e XX, jamais existiriam sem a presença matricial dos desfiles dos Reinados de Congo no Brasil escravista da Colônia e do Império. Nessa passagem os africanos, aparentemente iguais, dão prova da complexa diversidade humana.

Sem dúvidas a presença afro-carnavalesca no carnaval moderno baiano tem no pioneirismo dos Clubes Embaixada Africana (1895) e, Pândegos da África (1896), uma referência de história e continuidade. Tudo então começou e se proliferou. Desdobrou-se em batucadas, afoxés, escolas de sambas, blocos de índios e blocos afros. Multiplicou-se em presenças, comportamentos, estéticas e sonoridades mudando as cenas baianas e contemporâneas. [1]

Afora essa manifestação de raízes autênticas de nossa matriz negra, o que se passa nas avenidas, circuito Barra – Ondina, principalmente, é resultado da entrada da poderosa indústria de entretenimento, com sua capacidade de sedução e do seu poder de persuasão.As indústrias que mais faturam no mundo neste momento são, nessa ordem, a indústria bélica e a indústria do entretenimento, seguidas de perto pela indústria automobilística.

Quais as expressões culturais que devem ser prestigiadas, recomendadas e financiadas como “representantes” da cultura brasileira no exterior, para começar a discussão de uma possível identidade? Seria melhor abandonar o estereótipo de sermos o país do Carnaval, do samba e das mulatas, incorporando na representação de nação brasileira a nossa multiplicidade cultural, pluriculturalismo que abrange as manifestações de cultura do erudito ao popular.

Nos anos 90 do século passado, o grupo É o Tchan! foi acusado de explorar o bumbum de suas esculturais dançarinas em músicas com letras  e coreografia buliçosos.O grupo foi muito bem sucedido em termos de marketing,  diga-se de passagem, uma vez que as dançarinas tornaram-se sucessos midiáticos da década de 1990, inclusive vendendo desde revistas Playboy até kits de produtos infantis.

A “autenticidade cultural” é uma questão de estratégia política e de reforço de um projeto. No caso da cultura afro-baiana, o projeto de construção da identidade passa necessariamente pela questão da música popular, que tem sido considerada pelos pesquisadores pela riqueza e sofisticação com que tematiza e constrói relações de sociabilidade dentro da cultura brasileira.

Nossas raízes culturais não reportam apenas o que herdamos do passado. Numa sociedade saudável, consciente de sua identidade, status e papel no concerto das nações, as raízes se expandem e originam uma nova herança pelos dados novos entrelaçados aos da tradição constituída – desejavelmente dinâmica.

Hoje, há uma produção de visibilidade como base das investidas da indústria do entretenimento no carnaval. Um conjunto de setores compõe a mercadologia momesca: agências de publicidade, o trade turístico, a Internet, radares, satélites, emissoras de TV, transmissões incessantes de dados, impressos, o sistema da moda, a sedução de corpos femininos e masculinos, uso de cores, técnicas de iluminação, enfim, toda a parafernália midiática.

Um “voyeurismo” total nos atravessa num sistema pan-óptico. Câmeras nos acompanham, o olho do Big-Brother nos vigia incessantemente. Ser visto ou ver?

Nossa identidade individual e cultural está sob as lentes da telemática. Quanto mais visto (consumido), mais controlado. Por outro lado, enquanto estivermos atentos (visualizando tudo) nada nos acontecerá…

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SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Francisco Alves Editora, 1988. pp. 171 e ss.

LACAYO PARAJÓN, Francisco José. A new contract between culture and
society. In: INTERNACIONAL CONGRESS CULTURE AND DEVELOPMENT, 2., 2001, Havana. Disponível em: <http://www.unesco.org/
documents.htm> Acesso em: 15 jan. 2008.

 

[1] Antonio Godi, texto divulgado na Internet