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Chanceler afronta Cabral

Não foi, felizmente, das mais longas (cerca de 4.500 palavras) a peça de oratória com a qual o chanceler Ernesto Araújo brindou, no dia 22 de outubro passado, os formandos da Turma João Cabral de Melo Neto do Instituto Rio Branco, em Brasília. Mas não sendo especialmente longa, teve o condão de ser longamente equivocada. Na verdade, totalmente. Pois da longa lista de tópicos em que o chanceler se aventurou, nenhum saiu ileso.

Teceu o chanceler comentários temerários sobre a poesia, sobre a poesia de João Cabral, sobre a pessoa do poeta João Cabral, sobre o “comunismo” de João Cabral, sobre o comunismo, sobre a pandemia, sobre o patriotismo, sobre o ambientalismo, sobre o cristianismo, sobre o Brasil e o cristianismo, sobre Deus, sobre o Brasil e Deus e um longo etc. (além, obviamente, da diplomacia). Começando pelo final: nem todos os brasileiros creem em Deus; e nem todos os brasileiros ignoram a Constituição – que lhes protege tanto a crença quanto a descrença, ao contrário do que parece crer o crente Ernesto Araújo. Tampouco todos os brasileiros ignoram tão completamente o que sejam a poesia e a diplomacia – tópicos centrais, apesar de tudo, da aventurosa e desventurada peça em questão.

O chanceler, ao contrário – ao cometer a impropriedade de comparar poesia e diplomacia, apoiado tão somente no fato biográfico circunstancial de João Cabral ter sido poeta e diplomata, como poderia ter sido poeta e entomologista, se assim lhe aprouvesse –, aproveitou para soterrar a poesia em uma saraivada de platitudes tardorromânticas (sem sequer esbarrar em sua natureza estético-linguística), e para aplastar a diplomacia em uma torrente de nulidades apolíticas (sem ameaçar se aproximar da síntese da diplomacia como forma de poder estatal). Mas de tudo isso, que não é pouco, o pior sobrou para o próprio João Cabral, um dos maiores poetas da literatura mundial, reduzido a ter sido comunista. Além dessa redução mais do que brutal, há o problema de ela ser inverídica.

João Cabral jamais foi comunista, em qualquer sentido: ou filiado ao Partido, ou propagador da ideologia etc. Ele foi tão somente acusado pelo então ex-ditador Getúlio Vargas, sendo em seguida ilegitimamente afastado do Itamaraty em um ato arbitrário, em 1952, para ser legalmente reintegrado pelo STF em 1954 (aposentando-se afinal no posto de embaixador em 1990). Senão, leiam-se as palavras do próprio advogado de Cabral, Guimarães Menegale, na defesa vitoriosa de sua reintegraçã0 (junto ao STF):

João Cabral de Melo Neto não professa a ideologia comunista. Repele a acusação, não em som de ultraje pessoal, mas por figurar torpeza, com que a vilania dos intrigantes interesseiros o quer enlear, ferir e prejudicar na carreira que abraçou e em que já prestara ao Brasil os serviços de sua viva inteligência, de sua cultura política e artística, de seu singelo e fecundo patriotismo. Nem por atos anteriores à punição, nem por manifestação subsequente poderão inquiná-lo de tal.[1]

Documento que também serve para dirimir confusões outras, advindas de simpatias pessoais de Cabral durante sua longa estadia no Espanha franquista. Ser amigo de comunistas não basta para fazer de alguém um comunista. Pode-se, por exemplo, ser simplesmente antifranquista. O fato é que nada importa se Cabral tivera sido afinal comunista, marxista, groucho-marxista ou equilibrista. Parafraseando Martin Luther King, não se julga uma obra poética pela ideologia (ou falta de) do seu autor, mas pela qualidade de seus versos.

Ocorre que Ernesto Araújo, se é plenamente capaz de afirmar, à revelia de documentos oficiais, ter sido alguém algo que não foi,  atentando contra a verdade, além de, no mesmo ato, reiterar uma ilação inverídica, flertando com a ilegalidade, para, por fim, discorrer longamente sobre um fato falso, agredindo a inteligência e a paciência do público, não é capaz de tecer qualquer comentário meramente pertinente sobre poesia. Poderia, portanto, ter-se limitado a tal indigitação prosaica e ociosa de um dos maiores poetas brasileiros. Mas acontece que o chanceler também se crê poeta, como não nos poupa de explicitar: “Gostaria de parabenizar os formandos pela escolha do patrono da turma, João Cabral de Melo Neto, por ser um poeta e diplomata. Modestamente, considero-me também as duas coisas, diplomata e poeta”.[2] Apesar de não considerar o que seja a modéstia. Ou talvez sim. Porque o chanceler ainda é pregador, padre ou coisa parecida: “A liberdade do ser humano reside na sua espiritualidade. Sem ela o homem é escravo do ciclo inútil do viver e do morrer…”.[3] “Ciclo inútil do viver e do morrer”? Mas não será isso, afinal, filosofia?

Em todo caso, de tudo isso talvez se explique, ainda que não se justifique, as tantas platitudes sobre poesia com que foi soterrada a diplomática paciência dos ouvintes: “[Poesia é] libertação, exploração, aventura, sentimento, essência, criação, mistério…”.[3] Ou os muitos cometimentos contra a própria diplomacia, alvo de sensaborias verbais do mesmo naipe e calibre das assacadas contra a poesia: “A diplomacia pode e precisa ter sentimento e expressá-lo…”.[3] Por quê? Porque o poético chanceler acredita ser disso que se trata a poesia. Em suma, como poeta, o chanceler é um diplomata da verborragia. Ou, talvez, o contrário.

 

Leia a mais extensa entrevista de João Cabral de Melo Neto, publicada especialmente por Sibila

Entrevista inédita com João Cabral

 

[1] Acessível em <https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/12734/1/Fernanda%20Rorigues%20Galve.pdf>, p. 107.

[2]Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na formatura da Turma João Cabral de Melo Neto (2019-2020) do Instituto Rio Branco – Brasília, 22 de outubro de 2020”. Acessível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/21888-discurso-do-ministro-das-relacoes-exteriores-ernesto-araujo-na-formatura-da-turma-joao-cabral-de-melo-neto-2019-2020-do-instituto-rio-branco-brasilia-22-de-outubro-de-2020>.

[3] Ibidem.