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Crédito à morte: a crise sem fim do capitalismo

Anselm Jappe

Quem quer se lembrar agora? O grande medo de outubro de 2008 parece já mais distante do que “o grande medo” do início da Revolução Francesa. Mas naquele momento, tinha“-se a impressão de que grandes buracos davam entrada à água que levava a pique o navio. Tinha”-se até a impressão de que todo mundo, sem dizê-lo, já esperava por isso há muito tempo. Os experts se interrogavam abertamente sobre a solvência até dos Estados mais fortes, e os jornais estampavam em primeira página a possibilidade de uma falência em cadeia das cadernetas de poupança na França. Em reuniões de família, discutia“-se acerca da necessidade de se retirar todo o dinheiro do banco e guardá”-lo em casa; usuários dos trens se perguntavam, comprando um bilhete com antecedência, se ainda poderiam pegá”-los. O presidente americano George Bush se dirigia à nação para falar da crise financeira em termos semelhantes àqueles empregados depois do 11 de setembro de 2001, e o Le Monde trazia como título em sua revista de outubro: “O fim de um mundo”. Todos os comentadores estavam de acordo para estimar que o que estava acontecendo não era uma turbulência passageira dos mercados financeiros, mas a pior crise desde a Segunda Guerra Mundial, ou desde 1929.

Foi bem surpreendente constatar que os mesmos, do top manager aos que recebem as bolsas do governo — que, até a crise, pareciam convencidos de que vida capitalista ordinária continuaria a funcionar durante um tempo indefinido —, poderiam com tanta rapidez se dar conta de que se tratava de uma crise de maior envergadura. A impressão geral de se sentir à beira de um precipício foi algo surpreendente considerando que, em princípio, não se tratava de nada mais do que uma crise financeira da qual o cidadão médio somente tinha conhecimento pelas mídias. Nada de demissões em massa, nada de interrupções na distribuição de produtos de primeira necessidade, nada de caixas automáticos sem dinheiro, nada de comerciantes recusando os cartões de crédito. Nada ainda de crise “visível”, portanto. Mas uma atmosfera de fim de reinado. O que apenas se explica supondo que, já antes da crise, todo mundo sentia vagamente, mas sem querer inteiramente dar“-se conta disso, que estava caminhando em cima de uma fina camada de gelo ou de uma corda bem esticada. Quando a crise rebentou, nenhum indivíduo contemporâneo parecia, no fundo de si, mais surpreso do que um fumante inveterado ao saber que tem um câncer. Mesmo sem aparecer claramente, a sensação de que não dava mais para continuar “desse jeito” já estava difundida amplamente. Mas talvez aquilo que cause mais espanto seja a celeridade com a qual a mídia jogou para escanteio o apocalipse, para voltar a se dedicar aos pescadores de ostras ou às extravagâncias de Berlusconi; ou os economistas que anunciam com certa segurança que já passou e que tudo vai ficar de novo às mil maravilhas; outra coisa que também causa espanto são os poupadores chegarem perto de seus bancos sem o menor temor de encontrá”-los fechados; ou o cidadão médio para quem a crise se resume a férias mais curtas neste ano… Até mesmo os experts que nos explicam cheios de manha que nada aconteceu nem nada de desagradável vai acontecer, deveriam ficar preocupados e desconfiar de um alívio e de um esquecimento tão súbitos. Mas eles também continuam a fazer como um doente de câncer que fuma ostensivamente para mostrar a si mesmo que sua saúde está excelente. Eles também já se acostumaram a viver assim. Durante décadas, uma taxa de crescimento insuficientemente elevada era algo considerado uma catástrofe nacional — em 2009 o crescimento foi, pela primeira vez em 60 anos, realmente negativo em muitos países. Sem problemas: o crescimento estará de volta logo no próximo ano, asseguram os imperturbáveis economistas, e cada número positivo, por mais que seja limitado a um pais, a um setor produtivo ou a um trimestre, e mesmo que seja apenas o resultado modesto dos gigantescos “programas para aquecer a economia” financiados a crédito pelos governos, é imediatamente apresentado como prova da saída definitiva da crise.

Nada de novo sob a esburacada camada de ozônio: nem a ciência oficial nem a consciência cotidiana conseguem imaginar alguma coisa de diferente daquilo que já conhecem — capitalismo agora e sempre. Ele pode atravessar uma tempestade, pode haver “excessos”, talvez os tempos vindouros sejam duros, mas os responsáveis tirarão as devidas lições: os americanos, aliás, finalmente elegeram um presidente provido de razão, e as reformas necessárias vão ser adotadas — depois da tempestade, a bonança! Não é surpreendente que os otimistas a soldo, os únicos normalmente autorizados a se expressar nas instituições e na mídia, anunciem o retorno da primavera cada vez que veem uma andorinha. O que mais poderiam dizer?

Mas no auge da crise de 2008, a mídia se sentiu obrigada a dar de vez em quando a palavra àqueles que tinham uma interpretação “anticapitalista”; portanto, àqueles que apresentavam essa crise como o signo de uma disfunção mais profunda, e eles não perdiam a oportunidade de fazer chamados a “mudanças radicais”. Enquanto o “Novo partido anticapitalista”[1] e seus congêneres proclamavam, evidentemente, “nada de pagar pela crise deles”, tirando de seus sótãos panfletos que tinham sobrado das manifestações de dez, vinte ou trinta anos antes, os representantes mais conhecidos do que é hoje considerada uma crítica implacável da sociedade contemporânea — isto é, Badiou, Zizek, Negri — tiveram direito a palanques maiores que de costume na imprensa ou, de qualquer maneira, sentiram que suas análises estavam indo de vento em popa. Não deixa de ser um pouco surpreendente que a possibilidade de uma crise de maior envergadura do capitalismo, provocada não por uma resistência dos “explorados” ou da “multidão”, mas por um entrave na máquina, não esteja em absoluto prevista em suas análises. E de fato, também explicaram, à sua maneira, que é preciso circular e que não tem nada a ver; que é uma crise como qualquer outra, que passará como as outras passaram, porque a crise é o fundamento normal do capitalismo. Mas o que eles chamam de crise — o desabamento das bolsas, a deflação mundial — não passa, na verdade, de um conjunto de fenômenos secundários. São manifestações visíveis, a expressão na superfície, da crise verdadeira em que eles próprios não conseguem pensar. Os adversários declarados do capitalismo — esquerda “extrema” ou “radical”, marxistas de diversas obediências, “inimigos do crescimento” ou ecologistas “radicais” — são quase todos radicais na crença da eternidade do capitalismo e de suas categorias, por vezes até mais do que alguns de seus próprios apologistas.

Esta crítica do capitalismo só se levanta contra a finança, considerada a única responsável pela crise. A “economia real” gozaria de sua sanidade em perfeito estado, e seria apenas aquele tipo de finança já fora de qualquer controle que colocaria em perigo a economia mundial. É por isso que a explicação mais despachada, e também a mais difundida, atribui a culpa de tudo isso à “avidez” de um punhado de especuladores que teriam jogado com o dinheiro de todos como se estivessem num cassino. E, com efeito, considerar os arcanos da economia capitalista, quando ela não está bem, como estando nas ações de uma conspiração de malvados é algo que se inscreve numa longa e perigosa tradição. Seria a pior das saídas possíveis querer designar como bodes expiatórios mais uma vez a “alta finança judia” ou outra qualquer, para despertar a vendeta do “povo honesto” trabalhador e dos poupadores. E não constitui prova de maior seriedade querer opor um “mau” capitalismo “anglo“-saxão”, predador e sem limites, a um “bom” capitalismo “continental”, tido por mais responsável. Vimos que não há quase mais nuanças para distingui”-los. Todos aqueles que fazem apelo agora a uma “maior regulação” dos mercados financeiros, da associação attac a Sarkozy, não veem nas loucuras das bolsas nada mais do que um “excesso”, uma excrescência sobre um corpo são.

O “anticapitalismo” da esquerda radical não passa de um “antiliberalismo”. A única alternativa ao capitalismo que alguma vez ela pôde conceber era constituída das ditaduras de economia dirigida no leste e no sul do mundo; desde que estas entraram em bancarrota, mudaram de rumo ou se tornaram completamente indefensáveis, a única escolha que ainda vislumbram esses anticapitalistas é entre diferentes modelos de capitalismo: entre liberalismo e keynesianismo, entre modelo continental e modelo anglo“-saxão, entre turbo”-capitalismo financeirizado e economia de mercado social, entre o júbilo das bolsas e a “criação de empregos”. Podem existir diferentes modos de valorização do valor, de acumulação do capital, de transformação de dinheiro em mais dinheiro; e é sobretudo a distribuição dos frutos desse modo de produção que pode mudar, o que significa que certos grupos sociais tirariam mais proveito do que outros, certos países mais do que outros. A crise até que será útil ao capitalismo, preveem: os capitais em excesso serão desvalorizados, e já é de conhecimento de todos, desde Joseph Schumpeter, que a “destruição criadora” é a lei fundamental do capitalismo. Impossível imaginar — se quisermos evitar ser taxados de utopistas meio tolos, ou de emuladores de Pol Pot, isto é, de partidários das únicas alternativas ao capitalismo que a consciência dominante ainda sabe evocar — a possibilidade de a humanidade viver de outra forma que não seja com a valorização do valor, a acumulação do capital e a transformação de dinheiro em mais dinheiro. Pode haver um limite externo ao crescimento do capitalismo, sob forma de esgotamento dos recursos e de destruição das bases naturais; mas enquanto forma de reprodução social, o capitalismo seria insuperável. Aquilo que o Le Figaro declara abertamente, os neomarxistas, os bourdieusianos e os altermundialistas o dizem com perífrases: o mercado é natural aos homens. Os anticapitalistas”-antiliberais propõem simplesmente um retorno ao capitalismo “social” dos anos 1960 (indevidamente idealizado, é óbvio), ao pleno emprego e aos salários elevados, ao Estado social e à escola como “elevador social”; alguns bem que gostariam de acrescentar um pouco de ecologia, de voluntariado ou de “setores sem fins lucrativos”. Em verdade, eles precisam esperar que o capitalismo recobre os sentidos sem mais tardar e recomece a funcionar a todo o vapor para poder realizar esses belos e onerosos programas.

Para eles, a crise atual representa a ocasião sonhada de enfim encontrar ouvidos atentos às propostas que alimentam há muito tempo. A crise será salutar: constituirá certamente uma pequena sangria para alguns, mas não deixará também de forçar os homens e as instituições a reverem seus hábitos nocivos. Assim, cada um desses benevolentes críticos espera puxar a brasa para sua própria sardinha: regulação dos mercados financeiros, limitação dos prêmios dos managers, abolição dos “paraísos fiscais”, medidas de redistribuição e, principalmente, um “capitalismo verde” como motor de um novo regime de acumulação e como gerador de empregos. Dessa forma, o negócio fica entendido: a crise é a ocasião para melhorar o capitalismo, não para romper com ele.

Mesmo sob este prisma, eles correm o risco de se decepcionar. No contexto da crise, reações bem opostas estão vindo a lume. Assim, para superar a crise, podem”-se pregar medidas ecológicas (como prometem Obama ou Sarkozy) ou, pelo contrário, atacar as próprias proteções sociais existentes em nome da “retomada do crescimento” e da “criação de postos de trabalho” (como faz Berlusconi, como querem as indústrias, principalmente as do setor da construção civil e do setor automobilístico, e uma parte considerável do público).[2] E o que dizer quando os operários demitidos, para obterem melhores condições indenizatórias, ameaçam derramar produtos tóxicos em um rio, como já aconteceu várias vezes na França? Será que veremos ecologistas se acotovelarem com os ouvriéristes?[3] A esquerda “radical” terá agora que se decidir: ou passa a uma crítica do próprio capitalismo, embora ele não mais se proclame neoliberal, ou participa da gestão de um capitalismo que incorporou uma parte das críticas contra seus “excessos”.

Certos observadores parecem ir mais longe, falando até de um capitalismo que destrói o mundo e que está em vias de se autodestruir. Esses gritos de alarme não parecem denotar uma tomada de consciência em face dos desastres do capitalismo, causados tanto em períodos em que está funcionando “normalmente” quanto naqueles em que se encontra em crise? No entanto, esses ataques não se dirigem, na maior parte dos casos, senão contra a recente fase “desregulada” e “selvagem” do capitalismo, a fase neoliberal, e de modo algum contra o regime de acumulação capitalista como tal, contra a lógica tautológica que manda transformar um real em dois consumindo o mundo concreto como simples matéria“-prima para esse crescimento da forma”-valor. Para eles, um retorno ao capitalismo “ajuizado”, posto que “regulado” e submetido à “política”, já deve logicamente resolver o problema.

Será, então, que o discurso “antineoliberal” nega a existência de uma crise na atualidade? Não; mas a única coisa que se quer é curar os sintomas da doença. Aliás, a incapacidade geral de imaginar a possibilidade de a crise desembocar em outra coisa que não seja de novo no capitalismo forma um contraste patente com a percepção vaga, embora persistente e universal, de viver numa crise permanente. Depois de décadas, a atmosfera está pessimista. Os jovens sabem e aceitam com resignação que viverão pior que seus pais e que as necessidades básicas — trabalho, moradia — serão cada vez mais difíceis de serem obtidas e mantidas. A impressão geral é de estar“-se escorregando ao longo de uma encosta. E a única esperança é a de não escorregar rápido demais, e não a da possibilidade de realmente subir outra vez. Há a sensação difusa de que a festa acabou e que os anos de vacas magras vão começar; uma sensação com frequência acompanhada da convicção de que a geração precedente (a dos “babyboomers”) devorou tudo, deixando pouco a suas crianças. A maior parte dos jovens na França, pelo menos entre aqueles que conseguem obter algum diploma, ainda estão convencidos de que conseguirão encontrar algum canto para poder sobreviver do ponto de vista econômico: mas nada além disso. Não se pode mais falar de uma crise própria de alguns setores em proveito de outros que, por sua vez, estariam em progressão: o desabamento das bolsas da “nova economia” em 2001, mesmo esta tendo sido apresentada durante anos como o novo motor do capitalismo, demonstra tudo isso. E nós não estamos assistindo à desvalorização de algumas profissões em proveito de outras, como quando os ferradores de cavalos foram substituídos pelos mecânicos de automóveis, algo em que a mania das “requalificações” ainda gostaria de nos fazer crer. Agora, trata”-se de uma desvalorização geral de quase todas as atividades humanas, algo visível no empobrecimento rápido e inesperado da “classe média”. Se a isso acrescentarmos a consciência, agora já bem ancorada em todas as cabeças, dos desastres atuais e aqueles por vir no meio ambiente, bem como do esgotamento dos recursos, é bem possível dizer que a grande maioria esteja olhando com temor para o futuro.

O que pode parecer estranho é o fato de que a impressão tão difundida de um agravamento geral das condições de vida venha não raro acompanhada da convicção de que o capitalismo está indo de vento em popa, de que a globalização está com fogo em todas as caldeiras e de que nunca houve tanta riqueza. O mundo estaria em crise, mas o capitalismo não; ou, como afirmam Luc Boltanski e Ève Chiapello no início de sua obra O novo espírito do capitalismo, publicada em 1999: o capitalismo está em expansão, é a situação social e econômica de grande quantidade de pessoas que está se degradando. Assim, o capitalismo é percebido como uma parte da sociedade em oposição ao resto, como o conjunto dos homens que detêm o dinheiro acumulado, e não como uma relação social que engloba todos os membros da sociedade atual.

Alguns, que se acham mais avisados, veem no discurso da crise uma simples invenção: seja da parte dos industriais que estão por trás a fim de baixar salários e aumentar os lucros, ou da própria “dominação” para com isso justificar o estado de urgência planetário e permanente. É verdade que as crises, tanto as passadas quanto as atuais, serviram e servem amiúde à legitimação do Estado, sobretudo depois que este não apresenta mais projeto “positivo” e se limita a administrar as urgências, colocando ele próprio em destaque tudo aquilo que não funciona bem (menos a propaganda do passado, voltada ao “todo mundo é feliz graças à sabedoria do governo”). Sua tarefa é criar as condições“-de”-base para o único objetivo admitido, a única finalidade reconhecida da sociedade mundial contemporânea, onde quer que seja (salvo para os ideólogos em vigor na Coreia do Norte, no Irã e em alguns outros países muçulmanos): permitir aos indivíduos um máximo de consumo de mercadorias e de “desenvolvimento pessoal”. Se não existissem crises, os Estados as inventariam, isso é verdade. Mas somente poderiam inventar crises secundárias, não aquelas que ameaçam seus próprios fundamentos. Durante esta crise, nunca se teve tanto a impressão de que as “classes dominantes” não dominavam muita coisa, e de que elas próprias estavam, pelo contrário, dominadas pelo “sujeito autômato” (Marx) do capital.

“Crise” não traz a reboque uma “emancipação” garantida

Uma crítica do capitalismo contemporâneo bastante diferente das evocadas até aqui pôde, contudo, ser trazida à cena. Essa crítica coloca a seguinte questão: e se a financeirização, longe de ter arruinado a economia real, tiver, ao contrário, a ajudado a ter condições de sobreviver para além de sua data de perempção? E se a financeirização tiver dado fôlego a um corpo moribundo? Por que estamos tão certos de que o capitalismo pode escapar ao ciclo do nascimento, crescimento e morte? Será que ele não poderia conter limites intrínsecos a seu desenvolvimento, limites que não residem somente na existência de um inimigo declarado (o proletariado, os povos oprimidos), nem unicamente no esgotamento dos recursos naturais?

Durante a crise, citar Marx voltou à moda. Mas o pensador alemão não falou somente de luta de classes. Ele também previu a possibilidade de um dia a máquina capitalista parar por si só, de sua dinâmica se esgotar. Por quê? A produção capitalista de mercadorias contém, desde sua origem, uma contradição interna, uma verdadeira bomba”-relógio situada em seus próprios fundamentos. Só pode fazer com que o capital dê frutos, só se pode acumular capital, através da exploração da força de trabalho. Mas o trabalhador, para engendrar um lucro para seu empregador, deve ser equipado das ferramentas necessárias, e hoje isso significa tecnologias de ponta. Disso resulta uma corrida contínua — a concorrência é quem obriga — ao emprego das tecnologias. Cada vez, o primeiro empregador a ter acesso a novas tecnologias ganha essa corrida, porque seus operários passam a produzir mais do que aqueles que não dispõem desses instrumentos. Mas o sistema como um todo perde com isso, porque as tecnologias substituem o trabalho humano. O valor de cada mercadoria singular contém, assim, partes sempre menores de trabalho humano — que é, contraditoriamente, a única fonte de sobrevalor e, portanto, de lucro. O desenvolvimento da tecnologia diminui os lucros em sua totalidade. No entanto, durante um século e meio, a expansão da produção de mercadorias em escala global pôde compensar essa tendência à diminuição do valor de cada mercadoria particular.[4]

Desde os anos 1960, esse mecanismo — que já não era outra coisa senão uma contínua fuga para frente — entravou. Os ganhos de produtividade permitidos pela microeletrônica puseram, paradoxalmente, o capitalismo em crise. Investimentos cada vez mais gigantescos eram necessários para se fazer com que os poucos operários restantes trabalhassem segundo os padrões de produtividade do mercado mundial. O acúmulo real de capital ameaçava parar. Foi nesse momento que o “capital fictício”, como denominou Marx, alçou voo. O abandono da convertibilidade do dólar em ouro, em 1971, eliminou a última válvula de segurança, o último ancoradouro da acumulação real. O crédito é somente uma antecipação dos ganhos esperados no futuro. Mas quando a produção de valor, portanto, de sobrevalor, estagna na economia real (o que não tem nada a ver com uma estagnação da produção de coisas — o capitalismo gira em torno da produção de valor e não de produtos enquanto valores de uso), não há nada que possa permitir aos proprietários do capital obter lucros além da finança. E esses lucros se tornaram impossíveis de serem obtidos na economia real. O avanço do neoliberalismo a partir de 1980 não era um jogo sujo dos capitalistas mais ávidos, um golpe de Estado montado com a cumplicidade dos políticos mais complacentes, como insiste em acreditar a esquerda “radical”. O neoliberalismo era, pelo contrário, a única maneira possível de prolongar por um pouco mais de tempo o sistema capitalista. Grande quantidade de empresas e de indivíduos puderam alimentar por muito tempo a ilusão de prosperidade graças ao crédito. Agora, essa bengala também se quebrou. Mas o retorno ao keynesianismo, evocado um pouco por todo lado, é algo de todo modo impossível: não há mais dinheiro “real” o bastante à disposição dos Estados, ou seja, não há mais dinheiro que não seja criado por decreto ou pela especulação, do dinheiro que é fruto de uma produção de mercadorias de acordo com os padrões de produtividade do mercado mundial. No momento, “os que decidem” conseguiram adiar um pouco o Menê, Tequel, Perês, acrescentando mais um outro zero aos números fantasiosos escritos nas telas e que não correspondem mais a nada. Os empréstimos concedidos para salvar os bancos são dez vezes superiores aos rombos que há vinte anos causavam calafrios nos mercados — mas a produção real (digamos, banalmente, o pib) aumentou em torno de 20–30%! O “crescimento econômico” dos anos 1980 e 1990 não tinha mais uma base autônoma, era fruto das bolhas financeiras. E quando essas bolhas estourarem, não haverá um “saneamento” depois do qual uma nova retomada terá lugar.

Por que esse sistema ainda não desabou completamente? A quem ele deve sua sobrevivência provisória? Essencialmente, ao crédito. Em face das dificuldades crescentes ao longo do século para financiar a valorização da força de trabalho, portanto para investir em capital fixo, recorrer ao crédito cada vez mais massivo não constituía uma aberração; era inevitável. Mesmo durante o reinado dos monetaristas neoliberais, o endividamento aumentou fortemente. Que esse crédito seja privado ou público, interno ou externo, não muda o caráter do problema. A evolução contínua e irreversível da tecnologia vai cavando em permanência o fosso entre o papel da força de trabalho — que, é bom repetir, é a única fonte de valor e de sobrevalor — e o papel cada vez mais importante dos instrumentos de trabalho, que devem ser pagos com o sobrevalor obtido na exploração da força de trabalho. Consequentemente, o recurso ao crédito só pode aumentar no decorrer dos anos e evoluir até um ponto sem volta. O crédito, que é um lucro consumido antes de ter sido realizado, pode adiar o momento em que o capitalismo vai atingir seus limites sistêmicos, mas não abolir esse limite. Mesmo a mais bela obstinação terapêutica um dia tem que terminar.

O crédito não prolonga somente a vida do sistema enquanto tal, mas também a dos consumidores. Sabe“-se que o endividamento privado atingiu cifras enormes, principalmente nos Estados Unidos. E aumenta rapidamente. Pode”-se ter uma ideia do futuro desse tipo de vida num país como o Brasil, onde é possível comprar um celular em dez pagamentos e onde a manutenção do carro pode ser paga em três vezes…

Alguns chegam a se extasiar diante dessa “virtualização” do mundo e prognosticam“-lhe um grande futuro. Mas somente uma consciência inteiramente pós”-modernizada é capaz de crer que uma virtualização sem bases reais poderá durar para sempre. Alguns quiseram colocar em discussão e “desconstruir” o conceito mesmo de “economia real”. É certo que cairia como uma luva para muita gente a demonstração de que a ficção vale tanto quanto a realidade, além de ser mais aberta a nossos desejos. Não é preciso, entretanto, ser um grande profeta para prever que as “denegações da realidade”, pronunciadas com sorrisos de orelha a orelha há trinta anos, não têm mais muito futuro numa época de crises “reais”. O editorial do Le Monde já citado está com a razão: “Retorno ao real pela casa do desastre”.

Mesmo sob o plano estritamente econômico, a crise está apenas começando. Continuam a existir numerosos bancos e grandes empresas que escondem sua situação desastrosa falsificando seus balanços, e se fala, entre outras falências que estão por vir, de um próximo desabamento do sistema de cartões de crédito nos Estados Unidos. As quantias astronômicas jogadas pelos Estados na economia, abandonando de um dia para o outro a dogmática monetarista em nome da qual se tinham empurrado milhões de pessoas à miséria, e os anúncios de uma regulação maior não têm nada a ver com um retorno do keynesianismo e do Estado social de antanho. Não se trata de investimentos nas infraestruturas, do tipo “New Deal”, nem da criação de um poder de compra popular. Essas quantias, por sua vez, aumentaram a dívida pública dos Estados Unidos em 20%, apesar de só terem servido para evitar o desabamento imediato do sistema de crédito. Para um verdadeiro “reaquecimento da economia”, seriam necessárias quantias muito mais gigantescas e que, no estado de coisas atual, não poderiam ser obtidas senão criando dinheiro por decreto — o que acabaria numa hiperinflação mundial. Um breve crescimento alimentado pela inflação desembocaria numa crise ainda maior, visto que não se veem em nenhuma parte novas formas possíveis de acumulação que, depois de uma “simulação” inicial feita pelo Estado, estejam na condição de produzir um crescimento que continue em seguida por conta própria.

Mas a crise não é apenas econômica. Quando não há mais dinheiro, nada mais dá certo. Ao longo do século xx, o capitalismo incluiu, para estender a esfera da valorização do valor, setores cada vez mais amplos da vida: da educação de crianças ao cuidado de idosos, da cozinha à cultura, do sistema de aquecimento aos transportes. Nesses campos, viu”-se um progresso em nome da “eficácia” ou da “liberdade dos indivíduos” libertos dos laços familiares e comunitários. Agora, estamos vendo as consequências: tudo desmorona se não for “financiável”. E não é só do dinheiro que tudo depende, pior ainda: é do crédito. Quando a reprodução real está a reboque do “capital fictício” e as empresas, as instituições e os Estados inteiros apenas sobrevivem graças a suas cotações na bolsa, cada crise financeira, bem longe de dizer respeito somente àqueles que jogam na bolsa, acaba por afetar inumeráveis pessoas em sua vida mais cotidiana e íntima. Os numerosos americanos que tinham aceitado suas aposentadorias em ações e que se encontraram depois dos cracks sem nada para a velhice estiveram entre os primeiros a provar dessa morte a crédito. É só o começo; quando a crise repercutir efetivamente na realidade — quando um brutal aumento do desemprego e da precarização chegar trazendo uma forte queda nas receitas do Estado —, veremos setores inteiros da vida social abandonados à arte de sobreviver ao dia a dia.

As diferentes crises — econômica, ecológica, energética — não são simplesmente “contemporâneas” ou “ligadas”: são a expressão de uma crise fundamental, a da forma“-valor, da forma abstrata, vazia, que se impõe a todo e qualquer conteúdo em uma sociedade baseada no trabalho abstrato e em sua representação no valor de uma mercadoria. É todo um modo de vida, de produção e de pensamento, já com a idade de pelo menos uns duzentos e cinquenta anos, que não parece mais capaz de assegurar a sobrevivência da humanidade. Talvez haja uma “sexta”-feira negra”, como em 1929, um “dia do julgamento”. Mas há boas razões para pensar que estamos vivendo o fim de uma longa época histórica.[5] A época em que a atividade produtiva e os produtos não servem para satisfazer necessidades, mas para alimentar o ciclo incessante do trabalho que valoriza o capital e do capital que emprega trabalho. A mercadoria e o trabalho, o dinheiro e a regulação estatal, a concorrência e o mercado: por trás das crises financeiras que se sucedem há mais de vinte anos, e cada vez mais graves, perfila“-se a crise de todas essas categorias. Categorias estas que — é sempre bom lembrar — não participam da existência humana desde sempre e por toda parte. Elas tomaram posse sobre a vida humana no decurso dos últimos séculos, e poderão dar lugar a algo diferente: melhor ou ainda pior. Talvez haja uma pequena retomada durante alguns anos.[6] Mas o fim do trabalho, do vender, do vender”-se e do comprar, do mercado e do Estado — todas essas categorias que não são de forma alguma naturais e que desaparecerão um dia, do mesmo modo que elas próprias substituíram outras formas de vida social — é um processo de longa duração. A crise atual não é nem o começo, nem a conclusão, mas é uma etapa importante.

Mas por que essa análise, que é em certa medida a única que se vê confirmada pela crise recente, suscita tão pouca atenção? Ora, essencialmente porque ninguém pode verdadeiramente imaginar o fim do capitalismo. Só de pensar já dá frio na espinha. Todo mundo acha que tem muito pouco dinheiro; mas cada indivíduo se sente ameaçado em sua própria existência, até no plano psíquico, se o dinheiro der algum sinal de se desvalorizar e perder seu papel na vida social. Na crise, os sujeitos se agarram mais do que nunca às únicas formas de socialização que conhecem. Existe um acordo geral pelo menos com relação a uma coisa: sempre vai ser preciso continuar a vender, a se vender e a comprar. É por isso que é tão difícil reagir a essa crise ou se organizar para fazer frente a ela: porque não se trata do eles contra nós. Seria necessário combater o “sujeito autômato” que é o capital, que habita igualmente em cada um de nós e, consequentemente, é uma parte de nossos hábitos, gostos, preguiças, inclinações, narcisismos, vaidades, egoísmos… Ninguém quer olhar o monstro nos olhos. Quantos delírios nós propomos, em vez de colocar em questão o trabalho e a mercadoria, ou simplesmente o carro! “Grandes cientistas” desembestam a divagar sobre satélites gigantes capazes de desviar uma parte dos raios solares ou sobre aparelhos capazes de resfriar os oceanos. Há a proposta da “produção de legumes em estufas hidropônicas ou até mesmo aeropônicas” e da fabricação de carne “diretamente a partir de células”-tronco”; além da busca por mais recursos que vai até, literalmente, a lua: “Ela guarda, entre outros, um milhão de toneladas de hélio 3, o combustível ideal para a fusão nuclear. Uma tonelada de hélio 3 deveria valer em torno de 6 bilhões de dólares, tendo em vista a energia que pode fornecer. E essa é apenas uma das razões pelas quais tantos países se concentram num retorno à lua”.[7] Dentro do mesmo espírito, propõe“-se que as pessoas se “adaptem” às mudanças climáticas em vez de combatê-las.[8] Em vez de sair do “terror econômico”, duplica”-se a ameaça: “Mais do que nunca as organizações e os humanos que souberem, quiserem e puderem se adaptar terão um futuro econômico e social. Os defensores do imobilismo poderão perder toda sua empregabilidade”[9] e, assim, desaparecer do mundo. Malthus já tinha dito isso: a fome é o melhor educador para o trabalho. Tudo o que não serve à valorização do capital é um luxo e, em tempos de crise, o luxo não convém muito. Não se trata de uma perversão, mas de algo bem lógico numa sociedade que alçou a transformação do dinheiro em mais dinheiro à condição de princípio vital.

Quadro apocalíptico, poderão nos retorquir: já nos anunciam o fim do capitalismo desde que nasceu e cada vez que esbarra em alguma dificuldade. Apesar disso, ele ressurge depois de cada crise como a fênix renasce de suas cinzas. Ao mesmo tempo, sai diferente de cada uma dessas crises, sendo muito diferente hoje em relação ao que era em 1800, ou em 1850, ou em 1930. Não estaríamos assistindo a uma nova mutação desse tipo, através da qual o capitalismo muda para trilhar melhor seu caminho? Por que essa crise seria mais grave do que todas as outras nesses mais de duzentos anos? Não poderia o capitalismo continuar a existir sob formas atípicas, entre catástrofes e guerras? Não seria a crise sua eterna forma de existência, como seria também a das sociedades históricas em geral? Fazer a lista de todos os disfuncionamentos do capitalismo atual só pode constituir — a objeção prossegue sua argumentação — a prova de sua crise final quando o breve período fordista de estabilidade é tomado como o único funcionamento possível do capitalismo, todas as suas outras formas de existência sendo consideradas desvios. As guerras civis na África e a refeudalização na Rússia, o fundamentalismo islâmico e a precarização na Europa demonstrariam somente a impossibilidade de estender o modelo fordista ao mundo todo, e não a falência do capitalismo, que, enquanto sistema mundial, consistiria justamente na coexistência de todas essas formas; cada uma, em seu contexto, sendo útil ao sistema mundial. O capitalismo poderia também funcionar muito diferentemente de como funcionou na Europa dos anos 1960: isso só demonstra sua flexibilidade. As devastações causadas por ele, da atomização dos indivíduos, dissolução da família às doenças psíquicas, físicas e à poluição, não seriam um sintoma de desmoronamento — elas criariam necessidades e setores de mercado sempre novos, o que torna possível a acumulação do capital.

Mas essa objeção não se sustenta: o que ela descreve é o nascimento e a perpetuação de formas mutantes de dominação e de exploração, e não a emergência de novos modelos de acumulação capitalista. As formas “não clássicas” de criação de lucro só podem funcionar sob a forma de participação indireta no mercado mundial; logo, parasitando os circuitos globais de valor (por exemplo: vendendo drogas aos países ricos, certos países do “sul” atraem uma parte do “verdadeiro” sobrevalor obtido nos países ricos). Se a criação de valor nos centros industriais se extinguisse, o mesmo aconteceria com os barões da droga e os traficantes de crianças. Até que poderiam forçar seus subalternos a criarem novamente para seus patrões um excedente agrícola, material. Mas nem os defensores mais convencidos da eternidade do capitalismo ainda ousariam nomear isso como um novo modelo de acumulação capitalista.

Geralmente, é preciso sempre se lembrar que os serviços, em vez de serem um trabalho que reproduz o capital, dependem dos setores produtivos. Não é somente a teoria de Marx que diz isso (e sobre esse ponto específico, ainda mais que sobre outros, ela não chegou até os marxistas), mas até a experiência de todos os dias deixa claro: em tempos de recessão, cultura e educação, preservação da natureza e saúde, financiamentos de associações e defesa do patrimônio, longe de poderem servir de “motor de crescimento”, são os primeiros a ser sacrificados pela “falta de finanças”. Decerto não se pode “demonstrar” abstratamente que estamos assistindo ao fim da sociedade mercantil plurissecular. Mas certas tendências recentes são efetivamente novas. Um limite externo foi atingido, tanto com o esgotamento dos recursos — principalmente do recurso mais importante e o menos substituível: a água potável —, quanto com as mudanças irreversíveis do clima, a extinção de espécies naturais e o desaparecimento de paisagens. Mas o capitalismo também se dirige a um limite interno, porque sua linha de desenvolvimento é linear, acumulativa e irreversível, e não cíclica e repetitiva como outras formas de produção. Essa é a única sociedade já existente que contém em sua base uma contradição dinâmica, e não somente um antagonismo: a transformação do trabalho em valor está historicamente destinada ao esgotamento por causa das tecnologias que substituem o trabalho.

Os sujeitos que vivem nessa época de crise externa e interna sofrem também um desarranjo das estruturas psíquicas que por muito tempo definiram o que é o homem. Esses novos sujeitos imprevisíveis se encontram ao mesmo tempo na posição de gerir potenciais de destruição impressionantes. Finalmente, a redução da criação de valor em todo o mundo traz consigo o fato de que, pela primeira vez, existem — e em todo canto — populações em excesso, supérfluas, que não servem nem mais a serem exploradas. Do ponto de vista da valorização do valor, é a humanidade que começa a ser um luxo supérfluo, um gasto a ser eliminado, um “excedente” — e aqui pode”-se dizer que se trata de um fator um tanto novo na história!

Infelizmente, a “crise” não traz a reboque uma “emancipação” garantida. Existem muitas pessoas encolerizadas por terem perdido seu dinheiro, ou sua casa, ou seu trabalho. Mas essa raiva, diferentemente do que sempre acreditou a esquerda radical, não tem nada de emancipatório em si mesma. A crise atual não parece propícia à emergência de tentativas emancipatórias (pelo menos numa primeira fase), mas ao salve”-se quem puder. Aliás, também não parece muito propícia às grandes manobras de restabelecimento da ordem capitalista, aos totalitarismos, aos novos regimes de acumulação à base de palmatória. O que se anuncia tem antes de qualquer coisa ares de uma barbárie em fogo baixo e nem sempre evidente. Em vez do grande clash, podemos esperar uma espiral descendente ao infinito, uma morosidade perpétua deixando o tempo para que o hábito vá criando raízes. Assistiremos seguramente a uma difusão espetacular da arte de sobreviver de mil maneiras e se adaptar a tudo, em vez de um vasto movimento de reflexão e de solidariedade, no qual todos colocam de lado seus interesses pessoais, esquecem os aspectos negativos de sua socialização e constroem juntos uma sociedade mais humana. Para que tal coisa tivesse lugar, primeiramente seria preciso acontecer uma revolução antropológica. É difícil afirmar que as crises e os desmoronamentos em curso facilitarão uma revolução dessa envergadura. E embora a crise comporte um “decrescimento” forçado, não necessariamente ele vem no bom sentido. A crise não atinge em primeiro lugar os setores “inúteis” do ponto de vista da vida humana, mas os setores “inúteis” para a acumulação do capital. Não serão os armamentos a serem reduzidos, mas os gastos com saúde — e uma vez que aceitamos a lógica do valor, é bastante incoerente protestar contra isso. Então, vamos começar com pequenas coisas, a ajuda entre vizinhos, os sistemas locais de troca, a horta no quintal, o voluntariado nas associações, os “amap”?[10] Às vezes, até pode ser simpático. Mas querer barrar a derrocada do sistema mundial com esses meios equivale a querer esvaziar o mar com uma colher.

Mas aonde podem chegar essas considerações cheias de desilusão? Pelo menos a um pouco de lucidez. Dessa forma, pode”-se evitar engrossar o coro dos populistas de toda cor que se limitam a resmungar contra os bancos, as finanças e as bolsas, bem como contra aqueles considerados os que controlam. Esse populismo desembocará facilmente na caça “aos inimigos do povo”, na parte de baixo (os imigrantes, no caso da França) e na parte de cima (os especuladores, também no caso da França),[11] evitando toda e qualquer crítica dirigida contra as verdadeiras bases do capitalismo, que aparecem, ao contrário, como sinônimo da civilização a ser salva: o trabalho, o dinheiro, a mercadoria, o capital, o Estado.

Efetivamente, dá vertigem encarar o fim de um modo de vida em que todos estamos afundados até o pescoço e que agora está naufragando sem que ninguém tenha decidido, deixando”-nos numa paisagem de ruínas. Todos os pretensos antagonistas de antanho, o proletariado e o capital, o trabalho e o dinheiro acumulado correm o risco de desaparecer em conjunto, atados a sua agonia: é a base comum de seus conflitos que está em vias de desaparecimento.

Para sair dessa situação, é necessário um pulo grande demais no desconhecido, e — o que é compreensível! — todo mundo se recusa a isso de antemão. Mas o fato de vivermos um tal ocaso de época é também uma prodigiosa sorte, apesar de tudo. Logo: que a crise se agrave![12] Não se trata de salvar “nossa” economia e “nosso” modo de vida, mas de empurrá”-los ao desaparecimento o mais rapidamente possível, dando lugar nesse ínterim a algo melhor. Tomemos o exemplo dos longos conflitos recentes na educação e na universidade: em vez de se queixar dos créditos reduzidos para a educação e a pesquisa, não seria melhor colocar em questão o próprio fato de a educação e pesquisa estarem condicionadas à “rentabilidade”? Será que é preciso renunciar à vida só porque a acumulação de capital não está mais funcionando?

Enfim, a saída! é o titulo de um quadro de Paul Klee. Já durante a breve crise de outubro de 2008, tinha“-se um pouco a impressão de que a tampa não estava aguentando a pressão: começava”-se a discutir abertamente acerca das maldades e dos limites do capitalismo. Então, pode“-se esperar que durante uma grave crise prolongada as línguas vão se desamarrar, os tabus e os interditos cair por terra, que grande numero de pessoas vão questionar espontaneamente o que consideravam até a véspera como “natural” ou “inevitável” e começar a levantar as questões mais simples e as menos frequentemente levantadas: por que há crise se só o que há são meios de produção? Por que morrer de aflição se tudo que é necessário (e até muito mais) está aí? Por que aceitar que tudo aquilo que não serve à acumulação pare de funcionar? Deve”-se renunciar a tudo aquilo que não é pagável? Pode ser que, apesar de tudo, como nas fábulas, seja dita a palavra que vai quebrar o encanto.

[1]Partido trotskista na França cujo principal representante político é Olivier Besancenot. [N. d.T.]

[2]“Pregam“-se as ‘reconversões’ (mudar de crença para mudar de atividade) com o intuito de alcançar uma maior sobriedade, acusa”-se o ‘reinado do carro’, o desperdício dos recursos, a invasão da vida pelo trabalho alienado, a maldição do progresso. Porém, basta que a máquina pegue uma gripe, que o setor automobilístico entre em crise, que a publicidade deserte dos jornais e ameace sua saúde financeira, que o desemprego atinja um número razoável de assalariados, para que o tom de voz mude e as velhas certezas voltem à tona ”, escreveu Gilbert Rist no dia 26 de novembro de 2008 em um blog próximo do “declínio”.

[3]O ouvriérisme é a defesa da preeminência dos operários considerados como aqueles que devem organizar a sociedade e a economia. [N.d.T]

[4]Uma explicação mais detalhada desse fenômeno pode ser encontrada no ensaio “Decrescentes, só mais um esforço…!”. Cf. p. .

[5]O sociólogo Immanuel Wallerstein foi quase o único a ter afirmado nas grandes mídias que o capitalismo tinha chegado, quinhentos anos depois, à sua última etapa e que algo novo ia se colocar no lugar (ver seu artigo “O capitalismo chega ao seu fim” no Le Monde de 11 de outubro de 2008). Apesar disso, esse autor não vê na crise atual nada mais do que o estouro de uma bolha especulativa, que vem dos anos 1970; ele a compara a outras crises do passado. Ao prever uma “fase de caos político”, de “crise sistêmica” e o fim do capitalismo nas próximas décadas, encontra a causa disso na relação entre “centro” e “periferia”, que não é mais a mesma. Logo, sua interpretação é muito diferente daquela que propomos aqui.

[6]Durante as últimas décadas, depois de cada crise assistimos a uma “retomada” — principalmente dos índices das bolsas — que parece demonstrar que tudo isso não passa de uma questão de ciclos, de altos e baixos. Mas nenhuma dessas “retomadas” foi fruto de um novo modo de produção utilizando massivamente o trabalho de maneira rentável. Tratava”-se apenas de crescimentos fictícios de valor, obtidos por meio da venda e da compra de títulos cujo capital fictício foi investido por vezes no setor imobiliário, no consumo ou na compra de serviços — o que criou a cada vez bolhas financeiras ainda maiores e ainda mais desprovidas de fundamento.

[7]À guisa de punição, vamos entregar ao público o nome do autor dessas opiniões: “Existe mais crescimento em nós”, de Xavier Alexandre, Le Monde de 30 de novembro de 2008, “Crônicas dos assinantes”.

[8]“Adaptar“-se à mudança climática em vez de limitá”-la?”, Le Monde de 21 de agosto de 2009, sobre o estudo que o “Centro de consenso” [!] de Copenhague confiou à fundação científica italiana “Enrico Mattei”, ligada ao grupo petroleiro italiano eni.

[9]Mesma punição que atribuímos ao outro: “O previsível declínio do assalariado”, de Camille Sée, Le Monde de 09 de agosto de 2009, “Crônica dos assinantes”.

[10]Associação de apoio à agricultura camponesa. [N.d.T.]

[11]Tanto a esquerda como uma certa direita protestaram (pelo menos nos Estados Unidos) contra o salvamento dos bancos.

[12]F. Partant, Que la crise s’aggrave [Que a crise se agrave]. Paris: Solin, 1978.


 Sobre Anselm Jappe

É autor de Guy Debord e ex-colaborador da revista Krisis, dirigida por Robert Kurz.