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Donald Trump e o fascismo democrático global

Estava pensando na poesia francesa, em específico na poesia de uma peça de Racine, numa frase, por sinal, lindíssima: “C’était pendant l’horreur d’une pro¬fonde nuit.” Traduzindo: “Foi durante o horror de uma noite profunda”. Como se Racine estivesse pensando na eleição de Trump. Foi durante o horror de uma noite profunda. De modo que foi como que uma obrigação, para mim, discutir, falar dessa espécie de acontecimento num sentido negativo, uma vez que é impossível, para mim, ficar aqui diante de vocês e falar de alguma coisa interessante em termos acadêmicos. Creio que é necessário pensar, discutir aquilo que ocorreu durante o horror daquela noite. Sabem, para mim – para muita gente, acredito – foi, em um certo sentido, uma espécie de surpresa. E, nessa espécie de surpresa, ficamos muitas vezes sob a lei dos afetos: medo, depressão, raiva, pânico, e assim por diante. Mas sabemos que , filosoficamente, esses afetos não são realmente uma boa reação, uma vez que , de certa forma, os exageramos frente a um inimigo. Por isso, acho necessário pensar além dos afetos, além do medo, além da depressão, pensar no contexto qual ele é hoje, a situação do mundo hoje, quando foi possível que uma pessoa como Trump se tornasse o presidente dos Estados Unidos.

Por isso mesmo, o que tenho em mente é apresentar, não exatamente uma explicação, mas um possível esclarecimento de como uma possibilidade como essa possa ter ocorrido, e também algumas indicações, que submeto à discussão, do que deveríamos fazer depois disso, algo não precisamente sob o domínio da emoção, do afeto negativo, mas de algo no nível do pensamento, da ação, da determinação política, e assim por diante.

Então, irei começar por uma visão bem geral, não da situação dos Estados Unidos hoje, mas da situação do mundo, hoje. Que mundo é esse, hoje, em que um acontecimento como Trump foi possível? Acho que o ponto mais importante pelo qual começar é o da vitória histórica do capitalismo globalizado. Temos que olhar para isso de frente. Em certo sentido, é desde a década de 1980 – quase meio século – que estamos diante da vitória histórica do capitalismo globalizado, e isso por muitas razões.

Primeiro, naturalmente, o total fracasso dos governos socialistas – Rússia, China – e, falando de forma mais geral, o fracasso da visão coletivista das leis econômicas e sociais dos diferentes países. Não é um ponto trivial, esse.Trata-se de uma mudança, não apenas na situação objetiva do mundo, hoje, mas de uma mudança na própria subjetividade. Durante mais de dois séculos existiram sempre, na opinião pública, duas vertentes concernentes ao destino histórico dos indivíduos. A primeira, a do liberalismo, no seu sentido clássico. O liberalismo tem muitos significados, mas aqui vou tomá-lo em seu sentido primitivo que é, fundamentalmente, que a propriedade privada é a chave da organização social, ao custo de enormes desigualdades, mas esse custo é o preço. No fundo, para o liberalismo, a propriedade privada deve ser a chave da organização social.

A segunda razão é a do socialismo, do comunismo – há denominações diferentes — segundo as quais, no seu sentido abstrato, o fim das desigualdades deve ser a meta fundamental da atividade política humana. O fim das desigualdades mesmo a custo de uma revolução violenta. Assim, por um lado, vocês têm a visão pacífica da história como continuação de algo bem antigo, ou seja a propriedade privada como chave da organização social e, por outro, algo novo que – provavelmente – começou com a revolução francesa, como sendo a proposta de um caminho outro, segundo o qual a continuidade da existência histórica da humanidade deve aceitar a ruptura entre uma longuíssima sequência em que desigualdades e propriedade privada são a lei da existência coletiva, e uma outra visão do que viria a ser o destino humano, sendo que o que mais importa é a questão da igualdade/desigualdade e esse conflito entre liberalismo em seu sentido clássico e a nova ideia (seja ela anarquismo, comunismo, socialismo etc) é – provavelmente—o grande divisor de águas do século XIX e de grande parte do século XX.

Assim, durante quase dois séculos, nós tivemos algo como uma escolha estratégica que diz respeito não apenas a eventos locais de política, obrigações nacionais, guerras etc, mas diz respeito ao que realmente é o destino histórico dos indivíduos enquanto tais, o destino histórico da construção da humanidade enquanto tal. Em certo sentido, nossa época, da década de 1980 até hoje tem sido a do aparente fim dessa escolha, do progressivo desaparecimento dessa espécie de escolha. O que temos hoje, de fato, é a ideia dominante de que não existe escolha global, de que não há outra solução. Isso é o que dizia MargaretThatcher: não há outra solução, a não ser – naturalmente – o liberalismo, ou como dizemos geralmente hoje, o neoliberalismo. Nenhuma outra solução. Este ponto é muito importante porque Thatcher não está dizendo que esta seja uma boa solução. Este não é o problema, segundo ela. O problema é que esta é a única solução. Com isso você fica sabendo , na propaganda de nosso tempo, que não se trata de dizer que o capitalismo globalizado é excelente, pelo simples fato que ele não o é. Todo mundo concorda. Todo mundo sabe que as monstruosas desigualdades não podem ser a solução do destino histórico da humanidade, todo mundo o sabe. Mas o argumento é o seguinte: “ Certo, não é bom, mas é a única possibilidade real”. De modo que – na minha opinião – a definição de nosso tempo é a tentativa de impor à humanidade, em termos globais mesmo, a convicção de que só existe um caminho para a história da humanidade. Vejam bem: sem dizer que o caminho é bom, que é excelente, mas dizendo que não há outra solução, não há outro caminho.

Então, podemos definir nosso momento como sendo o momento da convicção primitiva do liberalismo enquanto dominante, na forma em que propriedade privada e o livre mercado constituem o único destino possível da humanidade. E isso também implica a definição do ser humano enquanto sujeito. Quem é ele, segundo essa visão? Um pedinte, um consumidor, um possuidor, ou nada mais. Esssa é a definição hodierna do ser humano enquanto sujeito. Essa é a visão geral, o problema geral e a lei geral do mundo contemporâneo.
Agora, quais são os efeitos políticos disso tudo, no nível da vida política? Quais são as consequências desta visão dominante de um mundo em que só se pode encontrar um caminho? Que todos os governos devem aceitá-lo; no mundo de hoje não podemos estar no governo de um país sem aceitar a unicidade do caminho. Não há governo, no mundo, que diga algo de diferente. E por quê? Pois bem, examinemos a posição do governo “socialista” francês, da ditadura do partido comunista na China, ou do governo dos Estados Unidos, ou do governo do Japão, da Índia, enfim. Todos dizem a mesma coisa – que o capitalismo globalizado é o único caminho para a existência dos seres humanos. Eu creio que toda decisão política, em nível de estado, hoje, encontra-se em dependência estrita do que eu chamo um “ monstro”: o capitalismo globalizado e suas desigualdades. Em certo sentido, não é verdade que um governo, hoje, seja livre.

Não tem nada de livre. Ele encontra-se dentro de uma determinação global, e deve afirmar que aquilo que ele faz está conforme esta interioridade na determinação global. E o monstro vai se tornando cada vez mais monstro. Temos que conhecer a situação real das desigualdades. Temos o fenômeno fundamental da concentração de capital; a concentração de capital é algo extraordinário, hoje. Devemos saber que hoje 264 pessoas têm como sua propriedade o equivalente ao que têm três bilhões de outros seres. Isso é muito maior do que aquilo que havia na existência primitiva das monarquias, ou algo no gênero. A desigualdade, hoje, é muito mais importante do que qualquer outra situação na história da humanidade. Isso significa que esta espécie de monstro histórico que é também o único caminho para a existência da humanidade está – de fato – na dinâmica de mais e mais desigualdades, e não na dinâmica de mais e mais liberdade.

Decomposição das oligarquias clássicas

E a posição do Estado, hoje, é a mesma em todo lugar. É a lei aceita pelo governo francês, pelo partido comunista chinês, pelo poder de Pútin, na Rússia, pelo Estado Islâmico, na Síria e, naturalmente, é também a lei do presidente dos Estados Unidos. E assim, progressivamente – e esta é a consequência mais importante da eleição de Trump –, progressivamente, toda oligarquia política, toda classe política torna-se o mesmo grupo, em nível mundial. Um grupo de pessoas que é apenas abstratamente dividido em republicanos e democratas, socialistas e liberais, esquerda e direita, e assim por diante. Qualquer tipo de divisão, hoje, é puramente abstrata e irreal, uma vez que todas elas se encontram no mesmo background político e econômico. Essa oligarquia política, no mundo ocidental de hoje está perdendo progressivamente o controle da máquina capitalista – a realidade é esta. Por meio de crises, falsas soluções, todos os governos clássicos criam em seus povos, em grande escala, frustração, incompreensão, raiva, e uma obscura revolta. Todos contra o que é o único caminho proposto por todos os membros da classe política, hoje, com algumas pequenas diferenças. O exercício das políticas, hoje, é o exercício de pequenas diferenças dentro do mesmo caminho global. Mas, isso tudo produz uma série de efeitos no povo em geral: efeitos de desorientação, total ausência de orientação ou diretriz de vida, nenhuma visão estratégica do futuro da humanidade, sendo que, nesse tipo de situação, uma grande parte das pessoas procuram , sem se dar conta, algum tipo de orientação nas falsas novidades, nas visões fora da realidade, na volta a tradições mortas, e assim por diante. Dessa forma, diante da oligarquia política, temos o surgimento de uma nova espécie de ativistas, de novos apoiadores da demagogia violenta vulgar, sendo que esses sujeitos estão muito mais próximos da máfia e dos gangsters do que dos políticos educados. Então, a escolha, aqui, tem sido a escolha entre esse tipo de sujeitos e o resto dos políticos educados, e o resultado acabou sendo a escolha legal de uma forma de vulgaridade política com algo de subjetivamente violento na sua proposta política.

Em certo sentido, esta nova figura política – Trump, mas muitos outros no mundo de hoje – encontra-se próxima do fascista dos anos 1930. Há algo de semelhante. Mas , infelizmente, sem seus inimigos doa anos 1930, que eram os partidos comunistas.Trata-se de uma espécie de fascismo democrático – uma conjugação paradoxal – uma espécie de fascismo democrático que assim se explicita: eles estão dentro do plano democrático, dentro do aparato democrático, mas eles desempenham algo diferente, uma outra música, nesse tipo de contexto. Creio não ser apenas o caso de Donald Trump, racista, machista, violento e, inclusive – e esta é uma característica fascista –, sem a menor consideração pela lógica ou pela racionalidade. Isso porque, o discurso, o jeito de falar dessa espécie de fascismo democrático é precisamente um tipo de deslocamento da linguagem, algo que lhe permite dizer alguma coisa e o contrário dessa alguma coisa – sem problema algum: a linguagem que emprega não é a das explicações, mas a de criar certos efeitos; é uma linguagem emocional que cria uma unidade falsa mas , ao mesmo tempo, prática. Temos isso com Donald Trump, mas o tivemos antes com Berlusconi, na Itália. Berlusconi – creio eu – foi a primeira figura dessa espécie de fascismo democrático, com exatamente as mesmas características: vulgaridade, certa relação patológica com o sexo feminino, e a possibilidade de dizer e fazer em público algumas coisas que são inaceitáveis para a maior parte da humanidade de hoje. Mas foi o caso também de Orbán, na Hungria de hoje, e – na minha opinião – foi o caso também de Sarkozy, na França. E é também , progressivamente, o caso na Índia, das Filipinas e mesmo no que se deu na Polônia e na Turquia. Portanto é realmente, em escala mundial, o surgimento de um novo tipo de determinação política que se encontra muito frequentemente dentro da constituição democrática mas, em certo sentido, também fora. E eu penso que se possam chamar fascistas – esse foi o caso dos anos de 1930: afinal, Hitler foi vitorioso nas eleições – e eu chamo fascistas a esses sujeitos que se encontram dentro do jogo democrático, mas também, em certo sentido, fora: dentro e fora. Dentro para, finalmente, estar fora. De modo que se trata realmente de uma novidade, mas uma novidade que está inscrita dentro da configuração geral do mundo de hoje. Isso porque é – para muitas pessoas – não uma solução, mas uma nova forma de estar dentro do jogo democrático onde, no que diz respeito à oligarquia clássica, não existe nenhuma diferença. Em certo sentido, o efeito principial de Trump é o efeito de algo novo. Entretanto, nos detalhes, nada há de novo: é impossível achar-se que haja algo novo em ser racista, machista etc – são coisas velhas, coisas bem velhas. Mas, no contexto da oligarquia clássica, esse velho bem velho aparece como algo novo. Assim Trump encontra-se na posição de dizer que a novidade é “ Trump” exatamente no momento em que ele está dizendo coisas que são absolutamente obsoletas, primitivas, fora de moda. Por isso estamos também no momento em que algo como a volta ao velho modo de algo existir pode parecer coisa nova. E esta conversão do velho em novo é também uma característica desta espécie de novo fascismo. Tudo isso, a meu ver, descreve nossa situação atual em nível de política. Devemos considerar o fato de nos encontrarmos numa dialética fatal de quatro termos.

Resistência e invenção

Primeiro, a total brutalidade e violência cega do capitalismo contemporâneo. Mesmo que não a estejamos vendo completamente no mundo ocidental, podemos vê-la na África, no Oriente Médio e na Ásia, também. Trata-se de um traço, um traço fundamental, de nosso mundode hoje. É o retorno do capitalismo ao seu sentido primeiro, ou seja, o da conquista selvagem, da luta selvagem de todos contra todos, com vistas à dominação. De modo que o primeiro termo é este: brutalidade total e violência sanguinária do capitalismo selvagem de hoje.

Segundo termo: a decomposição da oligarquia política clássica. Os partidos clássicos: Democrático, Republicano, Socialista, etc se decompõem no sentido do surgimento de uma espécie de novo fascismo. Não sabemos qual será o futuro desta espécie de aparecimento: qual será o futuro de Trump? Não sabemos, e pode ser que Trump não tenha ideia de seu próprio destino. Foi visível durante a noite: vocês viram o Trump de antes do poder e, depois, no poder, do qual ele é, de certa forma, temeroso: ele sabe que ele não pode falar tão livremente como dantes e não está completamente satisfeito, pois falar livremente era justamente a força de Trump, mas agora, com o governo, a administração, as forças armadas, os economistas, os banqueiros etc , a história é outra. Assim , durante a “noite”, vimos Trump passar de um papel a outro, de uma peça a outra, e nessa segunda peça ele não estava tão bem como na primeira. Nós não sabemos, realmente não sabemos qual será a verdadeira possibilidade deste tipo de sujeito que se torna presidente dos Estados Unidos. De qualquer maneira, temos ali o símbolo da decomposição da oligarquia clássica e o nascimento de uma nova figura de um novo fascismo, de futuro desconhecido, mas eu acho que para o povo em geral não será certamente um futuro interessante.

Terceiro: temos a frustração popular, o sentimento de uma obscura desordem, na opinião de muitas pessoas, mas – principalmente – dos pobres, dos habitantes de estados provinciais, do campesinato de muitos países, e também dos trabalhadores desocupados e muitos outros – toda essa população que é gradativamente reduzida pela brutalidade do capitalismo contemporâneo a algo que é nada, algo que não tem existência possível, e que se encontra, em alguns lugares, sem trabalho, sem dinheiro. Sem rumo, sem orientação para sua vida. Este é o terceiro termo da situação global, hoje. A falta de orientação, de estabilidade, o sentido de destruição de seu mundo, sem a construção de outro: uma espécie de destruição vazia.

E o último termo, o quarto, é a falta, a falta total de um outro caminho estratégico. Existem muitas experiências políticas – não vou dizer que não haja absolutamente nada nesse sentido. Sabemos de novos levantes, de novas ocupações de lugares, de novas mobilizações, de novas determinações ecológicas etc. Portanto, não é a falta de de qualquer forma de resistência, de protesto – não, não estou dizendo isso. Mas estou falando da falta de um outro caminho estratégico, ou seja, de algo que esteja no mesmo nível da convicção contemporânea de que o capitalismo é o único caminho possível. A falta da força de afirmar que há outro caminho. E a falta daquilo que eu chamo uma Ideia, uma grande Ideia. Uma grande Ideia que é a possibilidade de uma unificação global, uma unificação estratégica de todas as formas de resistência e de invenção. Uma Ideia como forma de mediação entre o sujeito individual e a tarefa coletiva histórica e política, a possibilidade de ação entre e com subjetividades muito diferentes mas – num certo sentido – sob a mesma Ideia.

Esses quatro pontos – a dominação estratégica e geral do capitalismo globalizado, a decomposição da oligarquia política clássica, a desorientação e a frustração generalizada, e a falta de um outro caminho estratégico, — constituem, a meu ver, a crise atual. Podemos definir o mundo contemporâneo em termos de uma crise global que não pode ser reduzida à crise econômica dos anos passados, mas que é muito mais uma crise do sujeito, uma vez que o destino da humanidade é cada vez menos claro para cada um desses sujeitos.

Contradição não expressa

Dito isso, o que fazer? É a pergunta de Lênin. Eu penso que , em vista das eleição presidencial daqui, a eleição de Trump, eu penso que se deva afirmar que uma das razões do sucesso de Trump é que a verdadeira contradição, hoje, a contradição real, hoje, a contradição mais importante, não pode estar entre duas formas do mesmo mundo. O mundo do capitalismo globalizado, das guerras imperialistas, e da falta de qualquer Ideia que diga respeito ao destino da humanidade. Sei que Hillary Clinton e Donald Trump são diferentes – não estou dizendo que se deva identificar uma e outro, esta diferença é importante, existe um nível em que esta diferença, que é a diferença entre o novo fascismo e a velha oligarquia política – e qualquer oligarquia política é menos horrível que um novo fascismo, por isso compreendo perfeitamente que, no fundo, prefiríamos Hillary Clinton a Trump – mas não podemos esquecer que , em certo sentido, esta diferença está dentro do mesmo mundo.

Não é a expressão de duas visões de mundo estratégicas diferentes. Logo, eu penso que o sucesso de Trump foi possível justamente porque a verdadeira contradição do mundo não pode ser expressa, não pode ser simbolizada pela oposição Trump/Clinton pelo fato de os dois estarem no mesmo mundo – muito diferentes, mas muito diferentes no mesmo mundo.

Na verdade, durante toda a preparação da eleição, durante as primárias, a verdadeira contradição que eu vejo foi entre Trump e Bernie Sanders. Esta foi a contradição verdadeira. Podemos achar o que quisermos quanto aos dois termos da contradição. Podemos dizer que Trump é , digamos, excessivo, do lado de um novo fascismo e podemos dizer que Bernie Sanders é, em certo sentido, algo próximo do socialismo e, finalmente, que Sanders precisava ir para o lado de Clinton e, muito mais, mas eu digo que no nível da simbolização, que é importante, a verdadeira contradição de nosso mundo foi simbolizada pela oposição Trump e Bernie Sanders e não pela oposição Trump e Hillary Clinton. E isso porque nós temos em Bernie Sanders, na proposta de Bernie Sanders, alguma coisa, alguns pontos que vão além do mundo tal qual se apresenta hoje. Não temos isso na proposta de Hillary Clinton. Assim estamos diante de uma lição de dialética: a teoria das contradições.

Em certo sentido, a contradição entre Hillary Clinton e Trump era uma contradição relativa, não absoluta; ou seja, uma contradição dentro dos mesmos parâmetros, dentro da mesma construção de mundo. Mas a contradição entre Bernie Sanders e Trump era, de fato, o começo da possibilidade de uma verdadeira contradição: a contradição entre o mundo atual e algo além desse mundo. Em certo sentido, Trump estava realmente do lado da obscura subjetividade popular reativa, no interior desse mundo tal qual é, mas Bernie Sanders estava do lado da subjetividade popular clara, racional e ativa, orientada para além desse mundo tal qual é, mesmo sendo algo pouco claro – pouco claro mas além desse mundo tal qual é.

Assim, o resultado da eleição é de natureza conservadora, puramente conservadora, por ser resultado de uma falsa contradição, em certo sentido uma contradição que não é uma contradição verdadeira, e que também é, no processo todo da eleição, a continuação da crise de hoje, a crise dos quatro termos que propus acima.

Hoje, contra Trump, não temos que desejar Clinton ou alguém semelhante. Temos que criar um retorno – caso seja possível – a uma contradição verdadeira. Esta é a lição que tiramos deste evento terrível. Ou seja, temos que propor uma orientação política que vá além do mundo tal que é, mesmo que, no começo, de um modo não completamente claro. Toda vez que começamos alguma coisa não conhecemos o seu desenvolvimento completo. Temos que começar, este é o ponto. Depois de Trump, temos que começar. Não se trata apenas de resistir, de negar ou coisa parecida. Nós temos que começar alguma coisa, realmente, e esta questão de começar significa o começo do retorno à verdadeira contradição, à verdadeira escolha, à escolha estratégica real que diz respeito à orientação da humanidade. Temos que reconstruir a ideia de que contra as monstruosas desigualdades do presente capitalismo, contra também os novos gângsters da política clássica, como Trump, é possível criar – mais uma vez – um campo político com duas orientações estratégicas, e não apenas uma. A volta a algo que ocasionou o grande movimento político do século XIX e do começo do século XX. Temos que, se é que posso dizer algo de forma filosófica, temos que ir além do Um, em direção ao Dois. Não uma orientação, mas duas orientações. A criação de um novo retorno a uma nova escolha fundamental enquanto essência da política, por excelência. De fato, quando há apenas um caminho estratégico a política vai gradualmente desaparecendo e, de alguma maneira, Trump é o símbolo desta espécie de desaparição, porquê? Qual é a política de Trump? Ninguém sabe. É algo como que ligado a uma pessoa, e não à política. De modo que, o retorno à política é necesariamente o retorno à existência de uma escolha real. Então, finalmente, no nível das generalizações filosóficas, trata-se do retorno dialético ao Dois real, além do Um, e para esse tipo de retorno podemos propor vários nomes.

Coletivismo

O que tenho em mente é propor o nome corrompido de “Comunismo”. Corrompido, conforme vocês sabem, por experiências sangrentas e outras do gênero. O nome é apenas um nome, de modo que estamos livres para propor outros nomes, isso não é problema. Mas existe algo interessante no significado primitivo dessa velha palavra corrompida. E, com efeito, este significado é composto de quatro pontos, quatro princípios e essa espécie de princípios pode servir de apoio para a criação de um novo campo político em que existam duas orientações estratégicas.

O primeiro ponto é não ser necessário que a chave da organização social resida na propriedade privada e nas desigualdades monstruosas. Não é necessário. Temos que afirmar que isso não é necessário. E podemos organizar experiências limitadas capazes de demonstrar que isso não é uma necessidade, que não é verdade que a propriedade privada e as monstruosas desigualdades tenham que ser, para sempre, a lei do futuro da humanidade. Este é o primeiro ponto.

O segundo ponto é que não é necessário que os trabalhadores sejam separados em termos de trabalho nobre , como a criação intelectual, ou a direção, ou o governo, e – do outro lado – o trabalho manual, e a existência material comum. Portanto, a especialização do rótulo não é uma lei eterna, e –especialmente – a oposição entre trabalho intelectual e manual deve ser suprimida, a longo prazo. Este é o segundo princípio.

O terceiro é que não é uma necessidade dos seres humanos o fato de serem separados por barreiras raciais, religiosas ou sexuais. A igualdade deve existir no meio das diferenças, de modo que a diferença não seja um obstáculo para a igualdade. A igualdade deve ser, por si mesma, uma dialética da diferença, e nós temos que recusar que, em nome da diferença, a igauldade seja impossível. Portanto limites, recusa do Outro, tudo isso deve desaparecer. Não é uma lei natural.

Finalmente, o ultimo princípio é que não seja necessário que exista um Estado em termos de poder separado e blindado.

Assim, esses quatro pontos podem ser resumidos da seguinte forma: coletivismo contra a propriedade privada; trabalhador polimorfo contra a especialização; universalismo concreto contra identidades fechadas e livre associação contra o Estado. Trata-se apenas de um princípio, não de um programa. Mas, com esse princípio, podemos julgar todos os programas políticos, as decisões, os partidos, as ideias, justamente a partir do ponto de vista desses quatro princípios.

Tomem uma decisão: verifiquem se esta decisão estará ou não estará na direção desses quatro princípios. Os princípios são o protocolo do julgamento referente a todas as decisões, ideias, propostas. Se uma decisão, uma proposta está na direção dos quatro princípios poderemos dizer que ela é boa, poderemos examinar e verificar se ela é possível, e assim por diante. Se se opuser claramente aos quatro princípios, é uma má ideia, uma decisão má, um mau programa. Desse modo nós já temos um critério de julgamento no campo político e na construção do novo projeto estratégico. De certa maneira é a possibilidade de se ter uma visão verdadeira do que aponta realmente para a nova direção, a nova direção estratégica da humanidade enquanto tal.

Bernie Sanders propõe a construção de um novo grupo político, sob o título de “ Nossa Revolução”. O sucesso de Trump deve abrir uma nova chance para uma ideia dessa natureza. Pelo momento podemos acreditar em Sanders, podemos julgar se se trata realmente de uma proposta que vá além do mundo tal qual ele é agora, podemos julgar se há a proposta de algo que esteja em conformidade com os quatro princípios. Podemos fazer alguma coisa. E temos que fazê-lo porque, se não fizermos absolutamente nada, ficaremos apenas na fascinação , na estupidez da fascinação pelo sucesso deprimente de Trump. Nossa Revolução – por que não? – contra a reação deles, nossa revolução, ótima ideia. De qualquer forma, estou do lado dela.

Fala de Alain Badiou em 19 de novembro de 2016, na Universidade da Califórnia – Los Angeles – co-patrocinada pelo programa de Teoria Crítica Experimental e pelo Centro de Estudos Russos e Europeus.