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Internacionalização cultural comunista no Pós II Guerra Mundial

Apresento aos leitores de Sibila um breve tópico de meu livro recém editado O segredo das senhoras americanas – intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra fria cultural (Ridenti, 2022). A obra trata de intelectuais – no sentido amplo que abarca também certos artistas e estudantes – que atuaram nas circunstâncias da Guerra Fria buscando o desenvolvimento pessoal e coletivo em sua atividade, com destaque no espaço público. Participando, por exemplo, do círculo internacional comunista, caso de Jorge Amado e seus camaradas da América Latina. Ou, ao contrário, recorrendo a meios fornecidos pelo lado ocidental, como nos vínculos com o Congresso pela Liberdade da Cultura (CLC), sediado em Paris, patrocinador da revista Cadernos Brasileiros com fundos dos Estados Unidos. E ainda pela oportunidade dada a estudantes para conhecer gratuitamente a Universidade Harvard e o modo de vida americano em plenos anos rebeldes. Essas três passagens foram analisadas, uma em cada capítulo. Apesar de aparentemente secundárias e ainda pouco estudadas, permitem compreender o lugar do intelectual e a totalidade do processo que envolvia sua internacionalização e seu financiamento em meio à rápida modernização da sociedade brasileira. O breve tópico do livro destacado a seguir trata de aspectos da internacionalização sobretudo de escritores e outros artistas comunistas.

A experiência do exílio de autores latino-americanos em Paris no fim dos anos 1940 e início dos 1950, como Jorge Amado e Pablo Neruda, bem como sua participação no movimento pela paz mundial, expressaram a importância cultural e política dos comunistas. Deram mostra também de seu impacto para além dos círculos comunistas, significativo pelo menos dos anos 1930 aos 1970 na América Latina em geral, e no Brasil em particular. Há vários fatores envolvidos para explicar esse fenômeno. Um deles, talvez ainda pouco explorado, é a implicação cultural da análise econômica e social realizada pelos comunistas na época. Ela se centrava na necessidade de desenvolvimento das forças produtivas, no caminho da revolução nacional e democrática contra o imperialismo, buscando superar as relações pré-capitalistas com forte sobrevivência nos países da região. Apoiava-se o crescimento de indústrias nacionais, o que valia também para a área da cultura, a encorajar a produção nacional para atingir o conjunto do povo. Isso não era incompatível com o desenvolvimento de uma cultura nacional de massas, antes ajudou a constituir e consolidar a indústria cultural em diversos países, na qual os artistas comunistas buscavam se destacar, além de se integrar ao sistema soviético de difusão cultural em larga escala, constituindo um star system alternativo ao irradiado pelos Estados Unidos, sobretudo durante a Guerra Fria.

Desde o Congresso de 1928 da Internacional Comunista, estabeleceu-se nos partidos comunistas latino-americanos a interpretação de que suas sociedades estariam na etapa democrático-burguesa da revolução, pois seriam dependentes, com resquícios feudais expressivos no campo, a exemplo das chamadas sociedades coloniais e semicoloniais, como já apontava Caio Prado Jr (1966). Ainda não haveria condições objetivas para realizar uma revolução socialista. As lutas de classes e a contradição entre capital e trabalho ficavam em segundo plano diante da tarefa prioritária de juntar as forças progressistas para o desenvolvimento nacional, entravado pelos interesses associados do imperialismo e dos grandes proprietários rurais. Então, operários, camponeses, estudantes e setores pequeno burgueses deviam aliar-se à burguesia nacional para construir povos e nações independentes e livres para liberar o crescimento de suas forças produtivas. Só numa segunda etapa viria a possibilidade de revolução propriamente socialista.

Caio Prado Jr
Caio Prado Jr

Portanto, num país como o Brasil, a revolução teria um caráter antiimperialista e antifeudal, nacional e democrático, podendo ser conseguida pacificamente, ou pelas armas, se necessário. Artistas e intelectuais ligados ao Partido deveriam ter papel relevante na conscientização e organização popular, além de ocupar espaços em seus campos profissionais e na produção cultural, em prol do desenvolvimento nacional. Não seria o caso de discutir aqui a pertinência dessa interpretação sobre o caráter da revolução, mas sim de constatar que teve repercussões relevantes no mundo da cultura. Por exemplo, a despeito das intenções revolucionárias, a ação cultural dos comunistas viria a tornar-se fundamental para a consolidação de um campo intelectual e de uma indústria cultural, particularmente no Brasil. Tudo isso em condições políticas institucionais adversas no contexto da Guerra Fria; em casos como o brasileiro, a regra foi a atuação clandestina do Partido Comunista, que em raros momentos pôde atuar legalmente.

A proposta estratégica de revolução nacional e democrática manteve-se até nos momentos em que o Partido colocou como objetivo “a derrubada do governo de latifundiários e grandes capitalistas” pela força, conforme o Manifesto de agosto de 1950, cujas determinações foram reiteradas no IV Congresso do PCB em 1954. Essa linha de enfrentamento não impedia que o Partido continuasse atuando pelo desenvolvimento da cultura e da indústria nacional com apoio do Estado num país considerado semicolonial e semifeudal. Por exemplo, o PCB ajudou a realizar célebres Congressos de Cinema entre 1951 e 1953, com a participação de inúmeras empresas produtoras de filmes, das pequenas às mais empenhadas num projeto industrial. O objetivo era viabilizar o cinema brasileiro e contrapor-se ao que se considerava o imperialismo de Hollywood e seus padrões, assumindo linguagens e temáticas nacionais. Buscava-se sobretudo a criação de uma política cinematográfica com regulação e proteção estatal. A presença influente de cineastas comunistas nesses congressos, como Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, expressa sua luta por ocupar um lugar no campo cinematográfico como representantes dos interesses nacionais do povo brasileiro.

Outro exemplo de envolvimento de cineastas com o Partido Comunista é o de Rodolfo Nanni. Bem jovem, em 1948, foi morar com a mulher em Paris. Ele não era propriamente politizado antes da estada na França, mas pertencera a um meio de artistas e intelectuais, alguns deles engajados. Também pintor, primo de Brecheret, estudara com Candido Portinari, deixando as aulas quando o célebre artista se autoexilou na Argentina e no Uruguai de 1947 a 1952, devido à perseguição do governo Dutra aos comunistas. Nanni fora próximo ainda do grupo da revista Clima, composta por intelectuais socialistas, rivais dos comunistas. Em Paris, esteve com pintores e artistas comunistas que fundaram uma associação latino-americana de que participaram “o Mário Gruber, o Octávio Araújo, o Luisinho Ventura, e depois o Enrico Camerini”. Nanni foi aceito como aluno no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), onde integrou uma célula do Partido Comunista Francês, algo raro para um estrangeiro, conforme me declarou (Nanni, 2014). Ele seria muito bem recebido ao retornar a São Paulo. Angariara prestígio por ter-se integrado a atividades do Partido Comunista Francês e do círculo de exilados comunistas, o que lhe rendeu o convite de Ruy Santos para trabalhar como continuísta no filme Aglaia, rodado mas não concluído, com vários comunistas envolvidos na realização. Em seguida foi convidado para dirigir O saci, conhecido como o primeiro filme infanto-juvenil brasileiro, de que participaram também outros artistas comunistas ou simpatizantes. A trilha sonora ficou a cargo de Cláudio Santoro, que montou uma pequena orquestra para gravar as músicas, com a participação de artistas do Partido, como os irmãos Duprat. Nelson Pereira dos Santos foi assistente de direção e Alex Viany, diretor de produção.

Havia razões específicas aos meios intelectuais e artísticos para simpatizar com o Partido Comunista ou até militar nele, especialmente no contexto do pós-Segunda Guerra. A começar porque a inserção partidária daria à solidão do trabalho intelectual um sentido coletivo, de solidariedade e importância social, a busca comum de um objetivo entre os pares organizados de cada campo e também entre o conjunto do Partido e de seus simpatizantes. A agremiação também poderia ajudar a dar legitimidade a certos grupos e indivíduos que encontravam –  nas redes de sociabilidade comunistas e na sua imprensa –  a possibilidade de produção, publicação e disseminação de obras (artigos, livros, pinturas, filmes, peças de teatro). Elas eram comentadas e debatidas por críticos e pares do meio, atingindo um determinado público cativo, consolidado no âmbito de influência do Partido, e buscando ampliá-lo, atuando até mesmo em programas de rádio e televisão. Especialmente artistas e intelectuais fora dos círculos estabelecidos e consagrados encontravam oportunidade de projeção e de organização coletiva por intermédio das redes partidárias. Os comunistas tinham acesso a contatos nacionais e internacionais de amplo alcance: jornais, revistas, cursos, viagens, premiações, festivais. Eram redes não só de organização, difusão e projeção, mas também de proteção e solidariedade entre os camaradas em cada país e no exterior, pois em situações extremas os comunistas corriam risco de perseguição, prisão e até de morte. Não raro eram forçados ao exílio, onde eram recebidos pelos companheiros, solidários.

Assim, interpretar a militância comunista de artistas e intelectuais exige compreender tanto as utopias coletivas como as lutas por prestígio, poder, distinção e consagração nos meios culturais, o que não implica desconsiderar as desvantagens e riscos dessa opção política, particularmente em sociedades autoritárias. Isso incluía sofrer o preconceito social generalizado contra o comunismo, além da certa perda de autonomia com a disciplina e a obediência envolvidas na militância, particularmente para artistas e intelectuais ainda não consagrados, enquanto se abria espaço de relativa autonomia criativa sobretudo para os já conhecidos e aclamados, até mesmo alguns críticos da linha oficial do realismo socialista.

Havia um jogo complexo de reciprocidade que, de um lado, viabilizava a projeção local e internacional dos beneficiários da chancela comunista, mas de outro reforçava a legitimidade política e simbólica da própria entidade partidária, num contexto político institucional desfavorável aos esquerdistas na América Latina, sobretudo nos anos 1950. O vínculo de artistas e intelectuais com o movimento comunista não poderia ser resumido em equações simples, como supor que se tratava de mero desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco se tratava do uso de inocentes úteis pelo Partido, presumindo que artistas e intelectuais seriam idealistas manipulados e vigiados pelos dirigentes comunistas, com o uso indevido e despótico da arte para fins que lhes seriam alheios. Havia uma relação intrincada – material e simbólica, objetiva e subjetiva – entre todos os sujeitos envolvidos, conforme já se explicitou em pesquisa anterior (Ridenti, 2010).

Se os partidos comunistas buscavam-se legitimar atraindo intelectuais e artistas que pouco ou nada influenciavam sua atuação política, impondo a eles tarefas e uma disciplina dura, ao mesmo tempo estes faziam uso da capacidade organizacional e de prestígio do Partido para se firmarem em seus respectivos campos culturais, muitos dos quais em processo de constituição em sociedades ainda pouco desenvolvidas. Sem contar a busca para se comunicar com “as massas” populares, que implicava sair dos círculos eruditos e envolver-se – conscientemente ou não – com a indústria cultural. Nos termos de Jorge Amado, seria preciso “colocar o conteúdo numa forma simples e pura, mais próxima e acessível à grande massa, ávida de cultura” (Amado, Pomar, Pablo Neruda, 1946, p.28). Vê-se que o termo massa aqui tem sentido complementar ao de vanguarda, o conjunto do povo que desejaria cultura e deveria ser atendido didaticamente pelos intelectuais do Partido dirigente.

A posição dos comunistas, ao enfatizar a necessidade do crescimento nacional das forças produtivas nos países da América Latina, levava à necessidade de organizar o mundo das artes e da cultura num sentido nacional e profissionalizante, que não contestava propriamente o caráter mercantil da produção cultural, antes o via como parte do desenvolvimento de cada nação. Não havia uma contestação radical do campo intelectual, tampouco da indústria cultural que se estabelecia. Os comunistas tentavam-se integrar a eles, buscando influenciá-los no sentido de romper com o subdesenvolvimento e de popularizar a cultura e as artes, a expressar a vida de pessoas simples do povo que deveriam ter acesso a essa produção e colaborar com ela, sempre valorizando as supostas raízes nacionais e populares, em contraposição ao imperialismo cultural dos Estados Unidos.

Na prática, havia forte aproximação entre o ideário comunista e o nacionalista. A questão imediata para os comunistas era defender e propagar a cultura de cada país, intervir para consolidar a música, o cinema, o teatro, a literatura, a pintura, enfim, artes nacionais independentes do imperialismo, como parte do processo da revolução nacional e democrática. Isso valia também para o rádio e a televisão, que teriam a vantagem de ampliar o acesso popular à cultura. Ainda não era muito difundida a concepção crítica da sociedade de massas, análise que começava a se difundir no fim da década de 1940, embora só fosse ganhar espaço intelectual e político maior no Brasil a partir dos anos 1960 e 1970, em particular no Brasil.

Segundo essa concepção, também de inspiração marxista, sobretudo a partir dos estudos de Adorno e Horkheimer, o exemplo dos Estados Unidos atestava que a cultura contemporânea estaria submetida ao poder do capital. Constituía-se um sistema a englobar o rádio, o cinema, as revistas e outros meios – como a televisão, a novidade daquele momento – que tenderiam a conferir a todos os produtos culturais um formato semelhante, padronizado, num mundo em que tudo se transformava em mercadoria descartável, até mesmo a arte, que assim se desqualificaria como tal. Surgiria uma cultura de massas, caracterizada como um negócio de produção em série de mercadorias culturais, em geral de baixa qualidade. A cultura passaria ao domínio da racionalidade administrativa, com o fim de preencher todo o tempo e os sentidos dos trabalhadores de modo útil ao capital, fosse em escala nacional ou internacional. A indústria cultural produziria, dirigiria e disciplinaria as necessidades dos consumidores na era da propaganda universal, convertendo-se em instrumento de controle social no processo de uniformização das consciências (Adorno, Horkheimer, 1985 [1947], p.113-156).

Esse tipo de análise praticamente não influenciou os comunistas no auge da Guerra Fria. Eles estavam voltados a ampliar o acesso popular ao mundo da cultura, somando esforços com os interessados em construir culturas populares e nacionais, em contraposição ao imperialismo americano, parte de um processo longo de lutas que finalmente levaria ao socialismo. Ou seja, a atuação cultural dos partidos comunistas, a partir do fim dos anos 1940, não destacava as distinções entre democratização e massificação da cultura, isto é, entre o acesso popular crescente ao mundo da educação e da cultura e seu caráter de massas, que envolve a submissão à racionalidade da sociedade produtora de mercadorias, por mais que se empenhassem no combate ao imperialismo.

Chega-se a um certo paradoxo: não foi a análise marxista especificamente voltada à compreensão da cultura, mas aquela tida como economicista – centrada no crescimento das forças produtivas – que possibilitou a ação relevante de artistas e intelectuais comunistas na construção institucional do campo intelectual e da indústria cultural, nas universidades, na imprensa, no cinema, no teatro, nas artes plásticas. Sem falar no rádio e na televisão, não só no Brasil e na América Latina. Os acordos e as conveniências geopolíticas das grandes potências durante a Guerra Fria também impediam de pensar qualquer ruptura revolucionária socialista na Europa Ocidental, o que levava os partidos comunistas a atuar dentro da ordem, institucionalizando-se, valorizando a produção cultural nacional e de alcance popular, que na prática se entrelaçava com a cultura de massas.

Na França, por exemplo, no pós II Guerra, o Partido Comunista abriu-se aos intelectuais e artistas como guardião da herança moral e intelectual francesa, diante do imperialismo cultural americano (Berthet, 1990). Isso levava à afinidade com as posições dos comunistas da América Latina abrigados em Paris, em sintonia também com a proposta soviética de valorização das culturas nacionais e de convivência pacífica com o capitalismo no Ocidente em geral, e na América Latina em particular. Era o tempo de maior atuação do Conselho Mundial da Paz durante a Guerra Fria cultural, que ao mesmo tempo usava a imagem dos artistas e lhes dava projeção no cenário internacional.

Em suma, artistas comunistas latino-americanos atuaram para promover as culturas nacionais de seus respectivos países, inclusive com forte participação na indústria cultural que se organizava, como parte da proposta dos partidos comunistas de desenvolvimento das forças produtivas de cada nação, na etapa da revolução nacional e democrática. Além disso, envolveram-se no trabalho de agitação e propaganda pela paz mundial, promovido pela União Soviética, que alçava alguns deles à condição de verdadeiras celebridades, a concorrer com o star system dos Estados Unidos em âmbito mundial. Estava ampliado o caminho para a projeção em primeiro plano especialmente de Neruda e Amado nos meios comunistas internacionais. Eram autores já reconhecidos, que tiveram a difusão de seus nomes e de suas obras imensamente aumentados pela inserção como dirigentes e ativos participantes do Conselho Mundial da Paz.

Isso permitiria pensar a cultura comunista nos moldes soviéticos como uma espécie de espelho invertido da cultura capitalista ocidental, sobretudo norte-americana, a produzir suas próprias celebridades, sem contestar a fundo a cultura de massas e a indústria cultural. Antes busca a seu modo produzir, dirigir e disciplinar as necessidades das pessoas, fazendo uso da propaganda como instrumento de controle e construção de consciências afinadas com os interesses soviéticos. Ao analisar a sociedade do espetáculo, Guy Debord (1967) viria a chamar essa tendência de espetáculo concentrado, em oposição ao espetáculo difuso, disseminado nas sociedades ocidentais. Seria, entretanto, demasiado simplificador negar qualidade a qualquer produção cultural de massas, a seus espetáculos que, afinal, mobilizam “as mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade, às quais devemos reconhecer que deram voz, não importa se de forma distorcida”, nos termos de Jameson (1995).

A aproximação entre o ideário comunista e o nacionalista seria reforçado pela vitória da revolução chinesa em 1949, e pela cubana dez anos depois, assim como outras, caso da tardia libertação das colônias portuguesas na África nos anos 1970, encabeçadas por movimentos que se consideravam marxistas-leninistas. A concepção de revolução nacional e democrática dos comunistas trazia elementos para pensar o conjunto de nações que os comunistas consideravam como coloniais ou semicoloniais, que viriam a ser chamadas de Terceiro Mundo.

Compartilhando essa concepção, no início da Guerra Fria, escritores latino-americanos foram incorporados pela imprensa comunista francesa, que os acolheu como perseguidos pelas tiranias oligárquicas de seus países. Como vimos, eles apareciam em suas páginas como autênticos representantes de culturas nacionais e populares oprimidas pelo imperialismo americano e seus aliados em cada nação. Eles logo em seguida viriam a desempenhar um papel no movimento pela paz mundial, que abriu possibilidades inéditas de construção de redes internacionais que não viriam a se conter nos limites da Guerra Fria, embora dela indissociáveis.

A publicação de escritores latino-americanos na imprensa comunista francesa, depois sua inserção no movimento pela paz que difundiria suas obras, reiteravam o internacionalismo e a solidariedade entre os comunistas. Demonstravam ao público que artistas e intelectuais da América Latina estavam afinados com as posições do PCF e da União Soviética no contexto internacional da guerra fria. Seu apoio comprovaria a justeza das posições do lado socialista, capaz de atrair os melhores corações e mentes.

Por seu lado, a experiência do exílio e da integração à rede cultural comunista, a partir de Paris, traria ganhos para a formação e a carreira profissional de artistas latino-americanos cuja obra era difundida, contribuindo para seu sucesso internacional. As recompensas, entretanto, colocavam dilemas para os artistas que testemunhavam as perseguições a militantes dissidentes em escala internacional. Além disso, eles se inseriam nas redes comunistas como reprodutores do pensamento e da política produzida no centro, não como formuladores originais. Reiterava-se a relação centro-periferia tão comum na relação de artistas e intelectuais latino-americanos com as metrópoles europeias. Aspecto que mudaria em parte após a revolução cubana e outras de libertação nacional que envolveram laços horizontais entre os próprios países do Terceiro Mundo e uma influência deles sobre a produção cultural, o pensamento social e a política na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, com os escritos de Fanon e Guevara, a teoria da dependência, o realismo fantástico da literatura latino-americana, movimentos como o novo cinema da região, em que o brasileiro tinha destaque. Os antigos parceiros da política cultural soviética fariam parte dessa nova vaga, caracterizada por maior autonomia cultural e política.

Escritores comunistas eminentes no pós II guerra e na primeira metade da década de 1950 constituíram uma espécie de pré-história dos ideais de Terceiro Mundo, que viriam a ganhar força na América Latina sobretudo após a vitória da revolução cubana. Muitos deles continuaram a atuar nesse período, talvez sem o mesmo protagonismo de antes, diante do surgimento de novas gerações. Para ficar apenas no exemplo dos três escritores da região mais empenhados no Conselho Mundial da Paz – que haviam sido exilados em Paris e destacados pela imprensa comunista – Guillén alinhou-se completamente com a revolução cubana, Neruda manteve-se fiel às posições soviéticas rearticuladas após a morte de Stalin, enquanto Jorge Amado se afastou delas, embora se mantivesse no campo dito progressista, assumindo posições moderadas e conciliadoras. Cada um deles procurou inserir-se a seu modo na onda terceiro-mundista de que foram precursores e que passaram a integrar.

Referências

Adorno, Theodor; Horkheimer, Max, “A indústria cul­tural”. In T. Adorno y M. Horkheimer, Dialética do es­clarecimento [1947], Río de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, pp. 113-156.

Amado, Jorge, Pomar, Pedro, Neruda, Pablo, O Parti­do Comunista e a liberdade de criação, Río de Janeiro, Horizonte, 1946.

Berthet, Dominique, Le P.C.F., la Culture et L´Art (1947-1954), París, La Table Ronde, 1990.

Debord, Guy, La société du spectacle, París, Buchet/Chastel, 1967.

Jameson, F., “Reificação e utopia na cultura de massa”, Crítica Marxista, São Paulo, vol.1, nº1, 1994, pp. 1-25.

Nanni, Rodolfo. Entrevista a Marcelo Ridenti e Ana Paula Sousa. São Paulo, 7 fev. 2014.

Prado Júnior, Caio, A revolução brasileira [2ª ed.], São Paulo, Brasiliense, 1966.

Ridenti, Marcelo, “Artistas e intelectuais comunistas no auge da Guerra Fria”. In M. Ridenti, Brasilidade revo­lucionária – um século de cultura e política, São Paulo, Unesp, 2010, pp. 57-83.

Ridenti, Marcelo. O segredo das senhoras americanas – intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural. São Paulo, Unesp, 2022.

[1] Professor Titular de Sociologia no IFCH da Unicamp. Autor de Em busca do povo brasileiro, artistas da revolução, do CPC à era da tv (2ª. ed., ed. Unesp, 2014), entre outros livros.


 Sobre Marcelo Ridenti

É professor titular do Departamento de Sociologia da UNICAMP. Foi professor na Universidade Estadual de Londrina (1983-1990), na Universidade Estadual Paulista, Araraquara (1990-1998). Graduou-se em Ciências Sociais (1982) e em Direito (1983) na Universidade de São Paulo, onde concluiu o doutorado em Sociologia (1989). Defendeu tese de livre docência em Sociologia na Unicamp (1999). Autor dos livros Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV (Record, 2000), O fantasma da revolução brasileira (Editora Unesp, 1993), Classes sociais e representação (Cortez, 1994), Professores e ativistas da esfera pública (Cortez, 1995), Política pra quê? Atuação partidária no Brasil contemporâneo (Atual, 1992). Organizador de História do Marxismo no Brasil, vol. 5 – Partidos e organizações dos anos 20 aos anos 60 (Editora Unicamp, 2002, em parceria com Daniel Aarão Reis); Intelectuais: sociedade e política – Brasil-França (Cortez, 2003, em parceria com Elide Rugai Bastos e Denis Rolland; obra publicada também na França, ed. L’Harmattan, 2003); O golpe e a ditadura militar, 40 anos depois, 1964-2004 (ed. Edusc, 2004, em pareceria com Daniel Aarão Reis e Rodrigo Patto Sá Motta). Desenvolve pesquisas sobre intelectuais e artistas, bem como sobre partidos e movimentos de esquerda.