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Karlheinz Stockhausen: o voo e a máquina de guerra

Helikopter-Streichquartett

À primeira vista, dado o quanto essa é uma peça icônica da música de vanguarda da segunda metade do século XX – e também do trabalho de Karlheinz Stockhausen (1928 – 2007) como um todo –, pode parecer que Helikopter-Streichquartett (Quarteto de cordas com helicópteros) seja uma criação absurdista e iconoclasta representante de uma espécie de frenesi de radicalismo. Uma expressão de um pensamento de vanguarda que cria tão somente para negar as práticas tradicionais e impor seu progressismo estético e sua necessidade incessante de renovação técnica que, assim, pode acabar se perdendo em si mesma por meio de ininterrupta autorreferência e do afastamento de uma escuta mais convencional. Não é nada disso.

Pelo contrário, essa é uma peça que foi escrita para um quarteto de cordas, uma das formações mais tradicionais da música ocidental, e integra – mesmo que como uma surpreendente intervenção – uma ópera chamada Mittwoch aus Licht (“Quarta feira de Luz”), composta entre 1992 e 1998, e caracterizada por uma cooperação cênica entre os personagens bíblicos Eva, Miguel e Lúcifer que é formada por quatro movimentos constituídos pela mistura de música orquestral, música eletrônica – projetada em forma de octaedro pelo teatro – e o quarteto com helicópteros em questão.

Mais ou menos no meio do espetáculo, em seu terceiro movimento, o público é levado a assistir uma transmissão televisiva, em várias telas simultâneas, da performance ao vivo que ocorre num local próximo às imediações do teatro. Esse evento consiste no voo de quatro helicópteros em campo aberto, cada um deles equipado com dispositivos de áudio e vídeo que transmitem a execução de cada um dos intérpretes entre si e para os cerca de dez aparelhos que estão às vistas do público no palco de ópera.

Pode-se dizer que o que há de mais interessante nesse trabalho é justamente a apropriação de formas e situações musicais muito caras à música clássica e à sua história, num contexto em que elas são fundidas aos meios de expressão artística da vanguarda dos anos 1960: o happening e os procedimentos eletrônicos de criação. Essa apropriação aproxima a obra do público, levando-o ao reconhecimento em diversos momentos da peça, o que é contraposto à introdução de uma concepção criativa ligada à experimentação e à tentativa de ampliar a sensibilidade auditiva e formal pelo uso de procedimentos de composição que propõem uma atualização das noções de tempo, espaço e material musical em relação ao pensamento científico contemporâneo e às questões ligadas à visão espiritual do compositor.

Karlheinz-Stockhousen

I. Helikopter-Streichquartett

A peça é organizada em momentos. É iminentemente lírica e tem uma forma circular. Começa com a operação de decolagem do helicóptero e termina com o seu pouso que, do ponto de vista sonoro, representa a inversão daquele primeiro momento. É, entretanto, durante o voo que o ruído produzido pelo helicóptero em suas diferentes altitudes passa a ser ouvido como música, justamente, pelos sons que estão sendo tocados pelo quarteto de cordas – exatamente o que determina as transições entre os momentos é a mudança de altitude, que faz com que as frequências vindas dos helicópteros fiquem mais graves ou mais agudas.

Essa música, inclusive, é feita inteiramente de técnicas de tremulação e vibração das cordas dos instrumentos do quarteto, que ressoam em fase e defasagem com as frequências emitidas pelas máquinas. Do ponto de vista musical, as partes instrumentais são estranhíssimas: os dois violinos, viola e violoncelo não produzem nenhuma melodia reconhecível, apenas emitem sons que transitam progressivamente pelas alturas do braço produzindo, com o arco e com as cordas, vibrações e tremulações cujas alturas são determinadas pela partitura. É como se os instrumentos buscassem os sons que estão no limite da audibilidade enquanto música para provocar uma espécie de compensação que leve o ruído dos helicópteros a (res)soar como música.

A peça foi feita por encomenda para o Festival de Salzburg. A princípio Stockhausen não manifestou interesse em compor um quarteto, até o momento em que, segundo seus próprios relatos, sonhou com o voo de helicópteros que transportavam os membros de um quarteto de cordas. Quando o compositor mandou seu projeto para o diretor do festival, obteve uma reação positiva e, a partir daí, teve início uma série de negociações entre a diretoria do festival, o exército austríaco e as redes de TV que fariam a transmissão da peça. Sua primeira gravação e execução foram programadas para o ano de 1994, em Salzburg, mas só se deram em 1995, em Amsterdam, por conta de protestos do Partido Verde austríaco que se posicionava contrário à poluição do ar da Áustria para os fins artísticos de Stockhausen.

II. Espaços híbridos e concepções eletrônicas

Pode-se dizer que Helikopter-Streichquartett sintetiza todos os aspectos mais centrais da poética musical de seu compositor – aí talvez resida o provável motivo de ela ser a peça mais famosa de Stockhausen, para além do sensacionalismo que seu aparato instrumental acaba provocando. Seu grande procedimento é o da mistura de linguagens e meios (happening + cena dramática + “cena” musical + música eletroacústica), por isso ela pode ser considerada uma obra conceitual: organiza aprioristicamente seus elementos de forma a retirar os objetos de arte e recolocá-los em contextos que transformem o seu valor. Esse é o próprio procedimento do ready made de Marcel Duchamp e é o que faz da fusão de meios um processo de criação caro à vanguarda dos anos 1960.

O que se dá nesse Quarteto com helicópteros é a interrupção da cena operística por um acontecimento (happening) que coloca um conjunto de música de câmara num contexto absolutamente deslocado do habitual, construindo assim metáforas para a arte como voo ou, ainda, como operação de risco: os instrumentistas se colocam em risco em termos físicos e instrumentais ao tocar, de dentro de uma aeronave em pleno ar, uma peça tão exigente tecnicamente – ela não se adapta à linguagem dos instrumentos de cordas, mas, ao contrário, os explora no sentido de adequá-los à “linguagem” do helicóptero.

Além disso, pode-se considerar que a música eletroacústica é também um dos meios de expressão fundamentais desse trabalho, pois, do ponto de vista compositivo, suas principais técnicas e concepções foram desenvolvidas por Stockhausen em obras eletrônicas. Ainda, o aparato eletrônico é essencial para a execução do Helikopter-Streichquartett pelo fato de ele ser transmitido ao público por meios televisivos e de os instrumentistas se comunicarem entre si exclusivamente por transmissões simultâneas de áudio e vídeo. São dois os princípios compositivos que norteiam a criação dessa peça e são resultantes de processos de invenção de obras de música eletrônica: (1) A decomposição do som e (2) a igualdade de tom e ruído.

O próprio Stockhausen define esses dois processos do seguinte modo: (1) “O som original é literalmente desmontado em seus seis componentes, e cada componente, por sua vez, está se decompondo perante nossos ouvidos, em seu ritmo individual de pulsos. No plano de fundo, um componente do som original continua até o fim da seção” (Stockhausen, pág. 84). Isso é feito eletronicamente com um único som isolado pelo computador. Nessa peça parte instrumental, parte eletrônica e parte composta pelo ruído das máquinas, a ideia de decomposição sonora é levada ao quarteto de cordas que vai decompondo as frequências emitidas por motor e hélices.

(2) “A igualdade de tons e ruídos já ficou clara ao discutir a transição contínua das formas de onda periódicas para mais ou menos aperiódicas […] qualquer som constante pode ser transformado em um ruído. Um ruído é determinado, como dizemos, por certa largura de banda, ou banda de frequências, a mais larga amplitude de banda cobrindo toda a região audível” (Stockhausen, pág. 91). Ora, é precisamente esse processo e o conhecimento desse fenômeno que permite ao compositor estabelecer os limites de audição entre quarteto de cordas e helicópteros e, em seguida, quebrá-lo, ou melhor, transcendê-lo, fazendo com que uma coisa se misture sonoramente à outra.

III. Stockhousen e a música do momento

A noção de forma-momento também é uma ideia essencial na obra de Stockhausen e está fortemente presente como elemento estruturador nesse quarteto. Nas conferências que realizou em Londres no início dos anos 1970, Stockhousen expôs uma série de conceitos que ilustram, em seu conjunto, as principais questões e princípios que norteiam sua poética. O decisivo dessa concepção é que, ao trabalhar com os materiais em sentido sincrônico, (simultâneo, presente) ao invés de colocá-lo sobre um prisma diacrônico de progressão no tempo (passado ou futuro), a atenção volta-se à perspectiva espacial e, assim, o próprio som realiza a forma musical.

Um som, como uma nota emitida por um trompete, por exemplo, que é caracterizado por um determinado volume, um timbre característico, uma frequência, etc. é ouvido no espaço acústico, ele mesmo, como um objeto que contém, em si, uma forma distribuída espacialmente numa sala ou num auditório. Assim, a música não tem mais uma forma determinada por seções progressivas ou sequenciais (ou narrativas: um tema A é apresentado, transposto para uma tonalidade mais tensa e seguido por um tema B… e assim por diante).

Esse conceito está subordinado a uma tipologia das formas e é, para o compositor em questão, uma entre três possibilidades de organização formal. Essas formas são: (1) a forma sequencial, ligada ao gênero épico e à somatória de fatos no tempo, (2) a forma direcional, ligada ao gênero dramático e ao desenvolvimento de personagens (ou figuras melódicas, por exemplo) submetidos a uma transformação pela experiência (também no tempo) e, por fim, (3) a forma momento que estaria ligada à subjetividade e à espacialidade, pois o sujeito lírico, num movimento de máxima concentração e brevidade, desloca-se da progressão temporal e vive exclusivamente o presente, apontando a atenção para os objetos que se deslocam no espaço.

Em Helikopter-Streichquartett os diferentes momentos são dados pela variação de altitude dos helicópteros, um fenômeno espacial que acarreta mudança na frequência dos sons que essas máquinas estão emitindo – a frequência é uma medida de vibração das ondas sonoras, ou seja, é a frequência com que uma onda, um objeto vibratório no espaço, completa sua fase. Essa mudança frequencial determina as diferentes partes da peça que, desse modo, se organiza sequencialmente a partir de variações provocadas por diferenças espaciais nos diversos momentos do voo.

IV. Intérpretes em risco: a vanguarda dos anos 1960

Essa peça é uma obra da maturidade de Stockhausen, foi escrita nos anos 1990, entretanto é possível afirmar que reúne em si os procedimentos resultantes das questões estéticas e composicionais a que chegou Stockhausen após a sua empreitada como um dos principais músicos da vanguarda europeia dos anos 1960. Seu contato com músicos chamados de experimentais ou de vanguarda como Pierre Boulez, Henri Pousseur, John Cage e Luciano Berio, entre alguns outros, se deu a partir da segunda metade dos anos 1950, nos festivais de música nova de Darmstadt, patrocinados em parte pelo Office of Military Government dos EUA (OMGUS) e, em parte, pela Rádio Alemã do Noroeste que inclusive construiu, em Colônia, um importante estúdio voltado ao desenvolvimento da música eletrônica.

Um dos conflitos mais relevantes que se apresentou entre esses compositores nos anos 1950 foi a questão que envolveu como figuras centrais John Cage e Pierre Boulez. O primeiro defendia um ponto de vista mais experimental e ligado à composição a partir de elementos aleatórios e livres da necessidade de um controle racional absoluto para a composição musical. Boulez, por outro lado, se colocava de maneira mais radical, prescrevendo para a música de seu tempo a necessidade de uma grande violência e aspereza em direção ao ouvinte, além do máximo controle racional do compositor sobre a obra musical.

Boulez assimilou a técnica serialista, criada por Schӧenberg e desenvolvida pela escola de Viena da primeira metade do século XX, e a conduziu ao nível de elemento estruturador integral de todas as dimensões da obra musical. Enquanto Schӧenberg com o método dodecafônico serializava as alturas musicais (as “notas”), Webern serializava as alturas e inventava a série de timbres (fazendo com que instrumentos diferentes tocassem a mesma nota um após o outro), Boulez o fazia com as alturas e igualmente com todos os outros elementos da notação musical (dinâmica, durações, timbres etc.), desenvolvendo um método que foi chamado de serialismo integral.

Diante desses dois polos que se estabeleceram em Darmstadt, na década de 1950, o experimentalismo libertário, aleatório e espiritualista de Cage e o estruturalismo violento e radical de Boulez, Stockhousen optou, nos anos 1960, por realizar uma síntese entre ambas as coisas. Adotou, como um bom germânico herdeiro da tradição vienense, o serialismo integral como ponto de partida, embora procurasse por concepções musicais muito mais vinculadas à liberdade e à transformação contínua da percepção e da escuta, aproximando-se mais de Cage do que da militância extremista de vanguarda de Boulez. Entretanto, compartilhou muito mais que um método inicial, tendo participado de diversas colaborações com Boulez, que chegou a reger uma das três orquestras que tocam simultaneamente na estreia de Gruppen de Stockhousen.

Alex Ross caracteriza o ambiente musical europeu dos anos 1960 da seguinte forma:

Por um tempo, a composição moderna ganhou a aparência do trabalho extremamente tecnológico e ultrassecreto realizado pela Guerra Fria. Os compositores se vestiam como cientistas, usando grandes óculos escuros e camisas de mangas curtas com canetas nos bolsos. Pierre Schaeffer, o inventor da música concreta, comentava com orgulho que a música se tornara mais um esforço de equipe do que um trabalho solitário, e chegou a comparar compositores franceses com físicos nucleares em trabalho conjunto de laboratório (Ross, p. 413).

Na década de 1960 surgem propostas de recepção da obra de arte que a fizeram deixar de ser entendida apenas como parte essencialmente encerrada em si de uma superestrutura histórica, fruto e essência de seu tempo, como a compreendiam os diferentes pensamentos do século XIX e da primeira década do século XX. Com isso a concepção própria de criação dessa geração passa a se refletir em problemas como, de acordo com Enrico Fubini:

A sua abertura ao intérprete através da evidência do momento aleatório, a sua abertura ao fruidor, convocando-o muitas vezes a uma espécie de colaboração criativa, solicitando as suas reacções como parte constitutiva da própria obra que, portanto, tende cada vez mais a desintegrar-se enquanto unidade criativa e a fragmentar-se nas formas em que é recebida e continuamente recriada ou criada (Fubini, p. 47).

Assim, como verdadeiro líder, Stockhousen, nos anos 1960, com o apoio das ideias tanto de Boulez quanto de Cage, e levando em conta os trabalhos de Claude Debussy, Anton Webern, Olivier Messiaen e Herbert Heimert, conduziu um projeto de invenção com elementos de um cientificismo (ou pseudocientificismo, como preferem alguns) que buscava na física moderna os elementos-chave para o pensamento musical. Esses conceitos pós-einsteinianos, entretanto, o conduziram a uma aproximação da música indiana e oriental – que por seu caráter extremamente religioso já trabalhavam desde a antiguidade com as ideias de pulsação e vibração (frequência) – e que, por sua vez, o levaram a uma chave de ideias ligadas ao ocultismo hermético ocidental.

Tudo isso fez com que a música de Stockhausen fosse de um extremo radicalismo de vanguarda até uma procura transcendente pela liberdade – o que não é nada surpreendente, pois tratamos aqui da década de 1960 – e pela busca da expansão da percepção humana resultante na constituição de uma poética espiritualista e crítica à sociedade capitalista e seus meios de produção. Mesmo assim é preciso levar em conta a contradição que há no fato de essa música ser ao mesmo tempo crítica e altamente espiritualizada, pretendendo, assim, ser livre dos modelos tradicionais da música europeia, e também ser dependente de um alto grau de desenvolvimento técnico-industrial e representar, nos dias de hoje, uma espécie de centro hegemônico da música experimental contemporânea.

V. Imagens do voo e a máquina de guerra

Em outras palavras: apesar dessa crítica ao modo de produção capitalista é preciso que se reconheça que a música de Stockhausen não teria sido possível sem a estrutura fornecida à sua existência por instituições hegemônicas que se interessavam politicamente por seu caráter ao mesmo tempo radicalmente inventivo, avesso às esquerdas e eminentemente progressista e tecnicista. É uma arte que pressupõe a pesquisa de ponta em função da invenção técnica, concebida como elemento que progride no tempo em relação ao passado e à tradição.

Para fazer uma leitura mais aprofundada do Helikopter-Streichquartett, portanto, seria preciso entender, para além de sua compreensão como obra musical, as imagens que o mesmo propõe enquanto obra de arte. Parece-me que são três as metáforas mais interessantes que se podem apreender dele: em primeiro lugar a imagem da composição como fruto de um sonho, em segundo, a ideia de fazer da experiência musical uma metáfora para o voo, que poderia nos levar a lugares desconhecidos, nunca antes experimentados e, por último, a apropriação de um aparato de guerra para os fins transcendentes e humanistas da música de seu compositor.

Mesmo que Stockhousen tenha, de fato, sonhado com essa composição, essa parece ser uma associação proposital entre seu trabalho e as propostas e modos de fazer da arte surrealista, que chegou até ele por diversas vias, uma delas a música de Olivier Messiaen, um de seus mestres nos anos 1950. A ideia mesma de fazer a fusão entre os sons de um helicóptero aos sons de um quarteto de cordas parece partir de um procedimento metonímico – muito utilizado pelo surrealismo em geral – que provoca o choque entre figuras, em si mesmas harmoniosas e pouco surpreendentes dentro de seus contextos próprios, entretanto, deslocadas de modo a compor um todo desarmônico e conflitante.

O emprego de quatro helicópteros na execução de uma peça para quarteto põe em pauta, desde o início, as questões ligadas à guerra que foram tão importantes para a cultura dos anos 1960, ela realiza essa operação por meio do uso de uma máquina de guerra como veículo de transcendência artística. O primeiro esboço de um helicóptero foi concebido por Leonardo da Vinci no século XV, embora só tenha se realizado após a invenção do avião no século XX. O primeiro voo bem sucedido, embora muito rudimentar, de um helicóptero aconteceu em 1907, na França.

Entretanto, o primeiro voo completamente controlado de um helicóptero foi feito por Hanna Reitsch – uma famosa piloto de testes nazista que foi, inclusive, a primeira mulher a cruzar os Alpes com um planador em 1937 em Berlim. No fim dos anos 1950, os helicópteros começam a se especializar e a se desenvolver, atingindo altas velocidades, e em meados da década de 1960 tornaram-se adaptados às diversas funções civis às quais servem até hoje, como o monitoramento do tráfego urbano, por exemplo. Nos anos 1970, porém, seu uso volta a ser de interesse militar tendo sido amplamente utilizado como instrumento de ataque avançado do exército dos EUA desde a guerra do Vietnã, até as guerras do Oriente Médio, no Iraque e no Afeganistão.

Assim, fica claro que a guerra é um dos assuntos centrais dessa performance, não somente a guerra, como também a questão tão atual da guerra como espetáculo, transmitido simultaneamente por sistemas televisivos. Essa peça contém em si mesma o paradoxo de ser ao mesmo tempo uma demonstração do poderio econômico e “bélico” daquela música feita a partir de Darmstadt e uma crítica a essa mesma força militar ao realizar um deslocamento dessas máquinas de seu contexto funcional. No fim, ela intenta, por meio de toda a sua proposição estética e musical, um movimento de transcendência dessa função e, ao mesmo tempo, pretende ampliar a percepção musical no ouvido e no espírito de seus ouvintes.

É evidente que não seria apropriado fazer uma leitura que coloque as posições ideológicas do compositor como fundamento de avaliação de sua obra, o que nos interessa aqui é perceber o quanto essa poética é necessariamente vinculada a um projeto cultural ligado à manutenção e à difusão da tradição cultural hegemônica do ocidente – seu avanço técnico em relação ao passado não se fundamenta, inclusive, numa rejeição, mas sim na renovação com a função de conservar sua memória e sua verdade histórica – e o quanto ela é interessante, justamente por colocar-se de modo crítico e inventivo sob essa questão.

Numa tentativa de ampliar os horizontes dessa pequena reflexão eu gostaria de mencionar uma passagem de dois filósofos importantes para os anos 1960, Gilles Deleuze e Félix Guattari, em um ensaio escrito a quatro mãos e intitulado de “Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra”. Note-se que, assim como Stockhousen em relação aos helicópteros, esses dois filósofos apropriaram-se de um mecanismo hegemônico de filosofar, o da própria publicidade, que realiza a fusão da metáfora à própria realidade, para fazer da linguagem sua máquina quântica de “produzir” conceitos, se isso é uma solução, o caminho para a transcendência ou um embuste autoritário, cabe ao leitor decidir. Segue o trecho mencionado acima:

É ao mesmo tempo que o aparelho de estado se apropria da máquina de guerra, subordina-a a fins “políticos”, e lhe dá por objeto direto a guerra. Uma mesma tendência histórica conduz os estados a evoluir de um triplo ponto de vista: passar das figuras de enquistamento a formas de apropriação propriamente ditas, passar da guerra limitada à guerra total, e transformar a relação entre o fim e o objeto. Ora, os fatores que fazem da guerra de Estado uma guerra total estão estreitamente ligados ao capitalismo: trata-se do investimento do capital constante em capital, indústria e economia de guerra, e do investimento do capital variável em população física e moral (que faz a guerra e ao mesmo tempo a padece). (Delleuze e Guattari, p. 106-107).

A fim de estabelecer uma conclusão mesmo que breve, é possível dizer que a leitura dessa peça, para além de sua escuta, tem três dimensões essenciais: 1. a pesquisa sonora e formal em direção a um universo de ressonância microtonal e micromodulatório por meio de máquinas e de técnicas de vibratto e trêmulo nos instrumentos do quarteto de cordas clássico 2. A formulação de uma imagem espetacular do voo, enquanto exercício de guerra e demonstração de poderio bélico, digo, cultural. 3. A fusão de meios de expressão enquanto solução estética dos desafios colocados pelos compositores de vanguarda da segunda metade do século XX.

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 Livros

  • A Música Moderna, uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez – Paul Griffths; Zahar, 2011.
  • Estética da Música – Enrico Fubini; Edições 70, 2008.
  • Mil Platôs, capitalosmo e esquizofrenia (vol. 5) – G. Delleuze e F. Guattari; Ed. 34, 2008.
  • Música Eletroacústica, história e estéticas – Flo Menezes; Edusp, 2009.
  • O resto é ruído, escutando o século XX – Alex Ross; Cia das Letras, 2009.
  • Stockhausen sobre a música, palestras e entrevistas compiladas por Robin Maconie – K. Stockhausen e R. Macconie; Madras, 2009.

 Sobre Marcelo Flores

Marcelo Flores é compositor, com mestrado na Paris 8. Rege um coral na cidade de Angets.