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Memória dos anos negros

Depoimento exclusivo a Sibila de Thaelman C. M. de Almeida, filho do militante histórico Edgard de Almeida Martins

 

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Jacob Gorender e meu pai; militância, prisão e depois

O que houve entre meu pai e o [Jacob] Gorender começa em 1949. O Gorender era da direção estadual do PCB e meu pai da direção regional, em Tupã. Pela participação de meu pai em uma mobilização de camponeses, ele passou a ser perseguido pelo DOPS − saiu na imprensa, na época, com a manchete na Folha da Manhã anunciando: “Incrementada a repressão ao comunismo em SP”, e o nome de meu pai era citado. Meu pai foi para a clandestinidade e por indicação de Gorender passou a compor a direção estadual do PCB, mas atuando em outra região, entre São José do Rio Preto e Santa Fé do Sul, ao lado de Nestor Vera (assassinado pela ditadura em 1975 [desaparecido]). Na década de 1950 meu pai rompe com o PCB. E não se viram mais. Meu pai passou para o PC do B, esteve na China em 1966, dirigindo o último grupo de guerrilheiros enviado para lá, e em 1969, passou para a direção da Ala Vermelha, uma dissidência do PC do B. Em janeiro de 1971 foi preso no DOI-CODI/SP, e só liberado em novembro. Não foi entregue à polícia, ao DEOPS, como era a prática para os que sobreviviam às torturas. Por interceptação de um coronel do MT, onde havia atuado logo ao chegar da China e que o conhecia, passou a ser preso do Alto Comando do II Exército, retirado do processo da Ala Vermelha, que correu no STM. Ao mesmo tempo, o chefe de análise e interrogatórios do DOI-CODI, um capitão André Leite Pereira Filho, escolheu-lhe um codinome, “Dr. Edgar”. Nesse tempo, meu pai permaneceu numa espécie de “condicional”, tendo de se apresentar regularmente em delegacias, às vezes sendo levado do local de trabalho ao DOI-CODI onde era interrogado, geralmente, pelo comandante, que era o Ustra. O Gorender, quando publicou Combate nas trevas, citou-o nas páginas 200 e 232 como delator e responsável pelas quedas do MRT, afirmando que meu pai passou a trabalhar para o DOI-CODI como analista de informações. Como meu pai o conhecia, tentou falar com ele várias vezes, mas ele sempre se recusou a recebê-lo e também à minha irmã. Há ainda mais informações, mas é uma história muito longa. Meu pai e nós da família sempre contestamos essa versão, que de qualquer forma foi um estímulo para meu pai posteriormente escrever suas memórias, que passei a divulgar no blog Clandestino e no livro Clandestino − memórias políticas de Edgard de Almeida Martins (que também saiu em e-book).

Eu tinha 14 anos quando ele foi preso em casa , como disse, em janeiro, véspera do meu aniversário. A partir de março, depois de minha mãe, eu, minha irmã e uma tia sermos interrogados juntos, permitiram visitas. Íamos aos domingos e o víamos por 20 minutos mais ou menos. No dia em que assisti o interrogatório da minha mãe, chegamos à delegacia, onde nos identificávamos, mais ou menos às 13 hs. De lá, atravessamos o pátio, subimos uma escada apertada e fomos levados à uma sala pequena. Tinha apenas uma mesa com cadeiras para cada um de nós sentar. Estávamos eu, minha irmã, minha mãe e minha tia Esmênia, irmã mais nova de minha mãe. Trouxeram meu pai − que apenas assistiu. Sentou-se na nossa frente um homem de meia idade, que começou a fazer perguntas básicas, nome, o que fazíamos, se trabalhávamos, se estudávamos, se minha mãe sabia que meu pai era comunista, repetiam várias vezes as mesmas perguntas. O homem pegou uma pasta com papéis, mostrava, voltava às mesmas perguntas e minha mãe repetia as mesmas respostas. Foi cansativo. No fim da tarde nos liberaram. Quando desci a escada e estava esperando minha mãe, enquanto levavam meu pai pelo pátio de volta à cela, um homem jovem se aproximou de mim e me disse que se eu fosse como o meu pai, “olha o que te espera” – e me mostrou um soco inglês. Eu nem sabia o que era.

Quando meu pai foi capturado em 1971, com o Élio Cabral de Sousa, no mesmo dia e hora também foram capturados Antonio Carlos Lopes Granado, o ”Paco” (que depois foi Secretário de Planejamento na administração de Celso Daniel em Santo André) e José Nogueira Gonçalves, o “Oliveira”. Chegaram a ser torturados juntos. Tanto Élio Cabral quanto meu pai dizem a mesma coisa, que nas torturas as únicas pessoas sobre as quais perguntavam eram o Tarzan de Castro (ex-líder estudantil de Goiás), minha mãe, minha irmã, a japonesa Nobue Ishii e sobre mim. Muitas vezes em que fui visitar meu pai eu usava uma sacola de couro pintado com uma técnica japonesa feita pela Nobue Ishii, que hoje vive na França, mas também foi presa e torturada no DEOPS. Eu ia com a sacola dela e acho que ninguém percebia. Nas ruas chamava atenção, mas ali não. Pois nunca me perguntaram nada. Um comando da Ala Vermelha a resgataria da Santa Casa de Misericórdia de SP. Durante a tortura, ela forjou um desmaio e foi levada para lá, com auxílio de uma enfermeira; o grupo conseguiu realizar o resgate e ela foi para minha casa, porque a própria família Ishii, tradicional do Japão, recusou-se a protegê-la. Meu pai, nessa época, era tesoureiro da AV, e no mesmo dia em que foi preso, tínhamos saído (eu, minha mãe, minha irmã e Nobue) levando uma pasta com dólares, que eu soube depois, através do Élio, ser proveniente da Var-Palmares através do ex-marido da Dilma, o Carlos Franklin. Acho que por isso perguntavam de nós. Todos resistiram às torturas e sobreviveram. Só depois de quase uma semana começaram as negociações em torno do processo da Ala Vermelha, que foi a julgamento no STM, em 1972 . Claro, um tribunal de exceção. Esse julgamento durou três dias. O primeiro aberto, com a presença dos réus. Nesse dia, por ordem do Alto Comando do II Exército, meu pai foi retirado do processo e passou a testemunha-informante. Teve seu depoimento trocado pelo de um carcereiro de codinome “Roberto” por ordem do Ustra. E esse depoimento forjado pelo DOI-CODI e pelo DEOPS foi a peça que definiu as penas, que depois foram alteradas ou revogadas. Esse processo teve mais dois dias de julgamento secreto, só com a participação dos militares.

Pelo tempo que passou ali, meu pai saiu com muitas informações sobre as torturas, os assassinatos e os métodos da repressão. Como costumava dizer, sobreviveu ao DOI-CODI, mas não à farsa de sua história.

As organizações clandestinas; a Ala Vermelha

A Ala Vermelha, uma dissidência do PC do B, era dirigida por um triunvirato, a DNP − Direção Nacional Provisória. A primeira foi fundada pelo Derly José de Carvalho − um dos fundadores do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo − mais o Diniz Cabral Filho (do movimento estudantil; morreu no ano passado) e Élio Cabral de Sousa (atualmente, presidente da ANIGO − Associação dos Anistiados de Goiás, vive em Goiânia). Em 1968, o irmão de Derly rompe com a Direção defendendo que a direção armada não deveria se submeter à direção política, que segundo ele dificultava as ações. Funda uma nova versão do MRT − antigo grupo que tinha sido braço armado das Ligas Camponesas. E segue fazendo uma série de ações. O mesmo ocorre com o MRM − Movimento Revolucionário Marxista, de MG, em 1970. Fernando Sana Pinto (publicitário), que até então era da AV, segue o MRM. Essa diferença foi levada até as celas do DOI-CODI. Ainda em 1968, Derly e mais dois irmãos são presos pelo DEOPS, do Fleury, que inicia uma perseguição implacável a Devanir, sem conseguir capturá-lo. Em 1969, a AV faz um assembleia interna e publica um documento chamado “Os 16 pontos”, iniciando o processo de autocrítica ao foquismo e assumindo a linha chinesa, que considerava fundamental a necessidade de organização partidária e de massas para romper o isolamento e seguir com luta armada, mas somente agindo a partir das decisões da direção partidária, tirando a autonomia política do grupo armado. Esse partido poderia surgir da união das organizações resistentes à ditadura. Isso diferenciou a AV de outras organizações, que em geral passaram a negar o “centralismo democrático”.

ALN, VPR, MRT, MOLIPO1 funcionavam muito em torno das ações armadas, pelo menos até meados de 1970. Prevalecia o “foquismo” de Régis Debray. Valorizavam mais as ações do que a organização política e partidária. Ficou famosa uma frase do Marighella, que, reunindo-se três revolucionários, estes não precisavam “pedir licença para fazer a luta revolucionária”. Meu pai, em suas memórias, atribui isso à revolta que havia contra a direção anterior, prestista, do PCB, pela sua inércia contra a escalada militar da ditadura, que durante aquele período pós-golpe preparava o endurecimento total, com os atos institucionais, culminando com o AI-5, com que pretendiam “legalizar a tortura”. Com essas diferenças políticas, seguiam combatendo a ditadura, mas, seguindo caminhos diferentes.

Os militantes da AV que estiveram presos com meu pai foram: Élio Cabral de Sousa; Diniz Cabral Filho; Felipe José Lindoso (editor da Marco Zero; seu pai tinha se eleito senador pela Arena no mesmo mês em que foi preso, e teve grande influência no processo da AV); Paulo Tarso Giannini; Antonio Carlos Lopes Granado; a geógrafa Creuzer Barros; a uruguaia Maria Cristina Uslenghi; Tarzan de Castro (depois deputado em GO); editor da revista HOJE; José Miguel, o “Macedo”; José Eli da Veiga; Letácio Barbosa; presos de 1969: Carlos Takaoka; Renato Tapajós; Alípio Freire; Nobue Ishii (resgatada da Santa Casa de Misericórdia).

Cultura, colaboração

Li aqui a recente entrevista do historiador Carlos Fico.2 Gostei muito. O Gorender, nesse contexto, foi um stalinista brasileiro típico. Nessa história, com o perdão do trocadilho… fico com o Fico. Talvez ele só não devesse ter deixado aquelas lacunas nas perguntas sobre cultura, pois também são muito importantes para a história dessa época. Por exemplo, o PCB, com suas editoras, praticamente dominou as publicações brasileiras do século XX. Achei muito interessante a questão da possível colaboração de artistas com DOI-CODI.Mas ainda mais interessante é que, com tanta censura naquela época, pouco se sabe de artistas-colaboradores no DOI-CODI. Acho que não houve. Presos, sim.

Depoimento na Comissão Nacional da Verdade

Durou 4 horas meu depoimento, em fevereiro de 2014, aos pesquisadores da Comissão Nacional da Verdade. Depois de 43 anos, quando, aos 14, acompanhei minha mãe, minha tia, minha irmã e meu pai, que estava aprisionado na OBAN/DOI/CODI na rua Tutoia, em SP, volto a tratar do assunto tendo em vista a busca de nossa verdadeira participação nesse período ainda obscuro de nossa história.

Foi possível tratar dos principais eventos, reflexos da Guerra Fria no Brasil. As lutas, as prisões, os recuos e os avanços, abordados por uma ótica livre das repressões que sempre permearam as lutas dos trabalhadores de que meu pai participou: a organização dos lavradores em Marília, o levante de Tupã, as lutas com camponeses da Alta Araraquarense e na Sorocabana ao lado dos companheiros Nestor Vera, dr. José da Silva Guerra, que fez o parto de minha mãe quando eu nasci, em Presidente Bernardes, o processo de ruptura e reconstrução do PC do B, no início da década de 1960, o enfrentamento com o golpe militar de 64, as perseguições, a viagem à China e, na volta, a formação de bases de apoio à luta contra a ditadura no MT, a Ala Vermelha, a resistência aos agentes da OBAN, a prisão, as torturas e, por fim, a luta contra a deturpação de seu papel e de suas posições políticas nos acontecimentos que viveu.

Como vivemos e sobrevivemos. A participação da família. As mudanças. Minha participação na contracultura. Outras formas além da luta armada. Livros, textos, músicas, ideias, comportamentos, novas mídias, ciberativismos.

Falei livremente e fui ouvido com atenção, por pesquisadores preparados, sem pressão, interrupção ou tentativas subliminares de condução para esta ou outra verdade conivente com este ou aquele interesse que não fosse o assunto e a época tratados.

Se a Comissão Nacional da Verdade tem limites em relação à justiça necessária a todos e requerida por todos os sobreviventes das violações sofridas pelo autoritarismo daqueles tempos de opressão, ao menos há a expectativa de trazer à tona os fatos de forma mais próxima de como foram, e através do apuro e do cumprimento da justiça histórica, subsidiar a sociedade para que não mais aconteçam.

Thaelman Carlos M. de Almeida, fevereiro de 2014

 


Notas

  1. Aliança Libertadora Nacional; Vanguarda Popular Revolucionária; Movimento Revolucionário Tiradentes; Movimento de Libertação Popular.
  2. “Sibila debate 64: Carlos Fico”.