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Mianmar: o país da desconfiança ocidental

(Uma visão de 2007, ainda atual)

Considerações iniciais

Diante da expansão asiática e dos significativos índices econômicos, o Ocidente volta-se para aquela região. Muito da produção acadêmica dos últimos anos versa acerca desses países, em especial, dos líderes de crescimento passados e atuais: China, Índia, Japão. Há ainda, em menor escala, estudos centrados nos demais Estados e nos processos de integração asiáticos. Entretanto, pouca atenção ocidental recebeu Mianmar, exceto por questões pontuais, tais como a prisão de Suu Kyi. Por conseguinte, as análises caracterizam-se, regra geral, por claras limitações. O objetivo deste artigo é analisar, de maneira imparcial, como se deu a trajetória desse país: partindo de uma abordagem histórica, buscar-se-á, através dos fatores políticos e econômicos, verificar como Mianmar se tornou o país que é hoje, e, por fim, qual seu papel nas relações regionais e no jogo de poder mundial, em especial no período pós-Guerra Fria.

História de um permanente confronto interno

País do sudeste asiático, Mianmar delimita-se a nordeste com a China e Laos; a noroeste, com a Tailândia; a oeste, com a Índia e Bangladesh. O território possui a extensão aproximada de 677.000 km², no qual habitam mais de 56 milhões de pessoas1 concentradas, em especial, nos vales agricultáveis dos rios Ayeyarwaddy, Chindwin e Sittaung. Dentre as cidades importantes, destacam-se a capital administrativa Naypyidaw, a capital oficial, Rangun e Mandalay (centro comercial). Perto das fronteiras norte, leste e oeste a topografia é montanhosa. No centro, aparecem os vales e as colinas. O clima apresenta variantes devido às peculiaridades do relevo e ao Estado ser cortado pelo Trópico de Câncer. Além disso, situa-se na região das monções, garantindo-lhe verão chuvoso sem grandes variações de temperatura e estiagem no inverno.

O budismo exerce influência considerável sobre Mianmar, pois 89% do povo professa tal religião. Dentre os demais cultos, os cristãos somam 5%; os islâmicos, 3,8%; os espiritualistas, 1,2%; os hinduístas, 0,5%.2 Surpreende também a diversidade étnica. As estimativas apontam 135 etnias e subetnias diferentes, sendo as mais relevantes Karen, Kachin, Chin, Bamar, Mon, Rakhine e Shan. Em torno de 70% da população, todavia, pertence ao grupo dos birmanos. Tal multiplicidade ocasionou rebeliões internas e motivou a ascensão militar.

myanmar1_600xO povo birmano provém do norte e instala-se no antigo território dos pyu (eliminados pelos Chan), às margens do rio Irauádi. Fundam a capital Pagan em 849, sofrendo influência religiosa dos mon: o budismo theravada. No século XI, o país é invadido pelos sino-mongóis e a capital, incendiada. Os birmanos fundam, em seguida, uma nova capital, Toungoo, conquistam os mon e unificam o país, o qual dura até 1752. O fracasso, porém, não os debilita: em 1783, declaram Amarapura o centro do Estado. A Grã-Bretanha, por não apreciar a política expansionista do povo birmano e administrar um território próximo, Bengala, declara guerra em 1826. Em 1857, Mandalay é eleita capital e o governante mantém laços cordiais com o país europeu. De 1885 (ano em que as relações exteriores da Birmânia passaram ao controle dos ingleses) até 1937 esteve unida ao império das Índias, por isso recebeu um contingente considerável de indianos.

No início da Segunda Guerra Mundial, as lideranças dividiam-se: alguns membros do Partido Revolucionário do Povo pretendiam buscar auxílio japonês para derrotar a metrópole; outros grupos políticos alegavam ser importante contar com a Grã-Bretanha, a princípio, a fim de eliminar a influência fascista.3 Em 1941, essa corrente vence. Os adeptos do outro pensamento, todavia, juntaram-se ao Exército da independência birmana, colaborando com os nipônicos. A ocupação deu-se pelo Sul e pela capital Rangum, permanecendo o país sob a esfera de influência do Japão. Dois anos mais tarde, por não representar interesse estratégico e por esse Estado estar em posição frágil no conflito, a nação recebeu o status de independente, mas em termos nominais,4 ou seja, na prática, o dirigente – Ba Maw – seguia as ordens nipônicas. Assim, Burma formaliza a guerra contra os aliados, o que implica rechaço popular aos japoneses. Entre 1943 e 1944, os ingleses refugiados na Índia atacam o território vizinho e lá se infiltram, por meio de auxílios a Thakin Aung San – comandante em chefe do Exército da independência birmana e ministro da defesa de Ba Maw –, até então apoiador do Japão.5 Cria-se a Liga Antifascista para a Liberdade do Povo que, em 1945, recupera o comando do Estado. Ao findar a guerra, Burma contabilizou imensas perdas:6 mais de um quarto da estrutura produtiva e econômica destruída; os índices do PIB e PIB per capita de 1947-48 reduzem-se em cerca de um terço frente aos de 1938-39; destruição de plantações, em um país extremamente dependente da agricultura.

A Grã-Bretanha, após a segunda guerra, encontra-se debilitada e, portanto, não seria capaz de frear todos os movimentos independentistas. Logo, confronta somente as colônias de suma relevância econômica: não era o caso da Birmânia. Aung San, Thakin Mya e Kyaw Nyein, em 1946, participam do Comitê Executivo e negociam com o premiê britânico Clement Atlee. As conversações derrocaram na ratificação do Acordo Aung San – Atlee, prevendo a eleição para a Assembleia Constituinte. Em seguida, o herói nacional, Aung San, é assassinado. A suspeita recai sobre U Saw, tido como marionete dos europeus. Formaliza-se a independência no dia 4 de janeiro de 1948. (Öno, 1974, pp. 7-10)

Ascende ao poder U Nu, membro do Partido Socialista, cujo governo se caracterizará, no período inicial, pela revolta de grupos minoritários étnicos e os comunistas: Red Flags e White Flags.7 Contudo, os militares sob o comando de Ne Win amenizaram a crise. Além disso, colaborou deveras a desunião reinante dentre os rebeldes, ainda que lutassem pelas mesmas causas. Em suma, “potencialmente um país rico, com recursos do arroz que o fizeram o maior exportador de grãos da Ásia, para não mencionar madeira e minerais, o desenvolvimento de Burma, contudo, diminuiu sob o regime de U Nu”.8 Frente às muitas reivindicações e à incapacidade governamental de solucioná-las, em 1958, U nu transfere seu cargo a Ne Win até as eleições de 1962, nas quais se escolhe o antigo primeiro ministro. Não obstante, Ne Win, alegando ameaça de desagregação nacional, retira U Nu do poder por meio de um coup d’Etat, prende os antigos líderes e finda o curto período democrático por meio da dissolução do Parlamento e da Constituição.

O general, respaldado pelo exército, promulga a “Burmese Way to Socialism”;9 introduz o sistema de partido único em 1964 e a nacionalização de diversos setores/empresas. Essa posição extremada ocasionou o isolamento de Burma e consequências bastante severas ao povo: fome, padrão de vida baixo, “mercado negro, nutrido pelo contrabando com a Tailândia e, mais tarde, com a China”10 etc. Na década de 70, o general sinaliza a transferência do poder aos civis. Em 1971, concede a filiação de integrantes não militares ao partido único – Burmese Socialist Programme; promove a formulação de uma nova Constituição e retira-se da chefia do Exército após vinte e dois anos de comando. As eleições de 1974 foram vencidas pela Assembleia do Povo, a qual recebeu a soberania das mãos dos militares, do Conselho Revolucionário. Contudo, os vinte e nove homens do Conselho Nacional, na prática, muito parecido com o órgão da época militar, confirmam a manutenção de Ne Win, agora Presidente da República Socialista da União de Burma, e escolhem U Sein Win como premiê e U Lwin, primeiro deputado.11

Em 1987, as discordâncias populares com as medidas de Ne Win foram postas à mostra através de protestos estudantis – duramente reprimidos – na capital Rangum. Assim, a Junta Militar passa o poder ao Ministro da Justiça, Maung aung, no ano seguinte, embora a decisão tenha sido cumprida por apenas um mês. O país, paralelamente, enfrentava crise complexa: destruição de 60% das plantas industriais da capital, execuções e tumultos.12 Em seguida, setembro de 1988, a fim de conter as mazelas, constitui-se o SLORC (Comitê de Estado para a Restauração da Lei e da Ordem) e compram-se armamentos do aliado chinês. Inicia-se uma etapa de tentativas de pacificação – embora com desrespeito aos direitos humanos –, de liderança militar coletiva e altera-se o nome do país para Mianmar13 em 1989. Demonstrando certo grau de diálogo, conclamam-se eleições livres para 1990, assim como a formação de partidos políticos.

Aumenta a pressão do maior rival: o Ocidente

Aung San Suu Kyi, filha de Aung San, retorna ao seu país e cria o Partido “Liga Nacional para Democracia” a fim de confrontar o Partido da Unidade Nacional (os membros eram os militares). A Junta, contudo, manteve-a em regime de prisão domiciliar durante o processo eleitoral. Realizado o pleito, Suu Kyi venceu, obtendo –embora alguns analistas afirmem que através de coerção – seu partido 392 das 485 cadeiras14 da Assembleia. Porém, a conquista não foi aceita. Acuados os militares, negociam a saída da então vencedora de Mianmar, a qual rejeita, veementemente. Sua negativa acarretou a manutenção de sua prisão militar até 1995, de forma a limitá-la em suas críticas.

Esse fato, não obstante, repercutiu internacionalmente, uma vez que o marido de Suu Kyi era um professor britânico que lecionava em Oxford. Seu pai, além do mais, fora o líder da independência de Burma. Por conta disso, os meios de comunicação internacionais veiculavam as notícias bastante carregadas de parcialidade. Sua resistência, por fim, rendeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz de 1991. Dobbs-Higginson adverte que Suu Kyi retornou ao Mianmar por causa da doença de sua mãe, que não contava com experiências de liderança e que apresentava concepções idealistas. Isto é, a sua volta não era algo grandioso; ao contrário, ela foi impelida pelo contexto e pela importância histórica de seu pai a exercer a liderança, ainda que débil, de um movimento sustentado, regra geral, por estudantes. As agravantes maiores, contudo, seriam o afastamento por vinte e oito anos de Suu Kyi daquele Estado e a provável fraqueza da Liga Nacional para a Democracia ao combater as rivalidades étnicas. A reivindicação dessa birmanesa afrontava, conforme o autor, ainda o dispositivo15 da Constituição formulada por seu pai em 1947, segundo o qual pessoas detentoras de outras nacionalidades não seriam elegíveis, como era o caso da filha de Aung San, pois ela possuía, em função de seu marido, cidadania britânica.

Certas alterações concretizam-se. Em 1992, o comando do SLORC transfere-se de Saw Maung para Than Shwe, embora Ne Win exercesse influência constante na política. Promovem-se, conjuntamente, transformações institucionais de forma a renovar certos quadros operacionais, por exemplo, ao se incluírem oficiais jovens. A partir de 1997, o órgão máximo é o SPDC (State Peace and Development Council), mas o comando permanece o mesmo: Than Shwe (presidente), Maung Aye (vice do partido e comandante das Forças Armadas), Khin Nyunt (1º secretário do partido). Muitas críticas dirigiram-se à Cúpula, uma vez que a corrupção se explicitava nos atos de personagens relevantes do exército. Preocupado sobre a sua irrelevância dentro do governo, Than Shwe, ao apaziguar as divergências entre o seu vice e o 1º ministro e afastar alguns generais corruptos, fortalece-se a ponto de barrar as intervenções de Ne Win. Em 2002, por consequência, parentes desse ex-líder tentam um golpe, implicando a prisão domiciliar de Ne Win e de sua filha, motivada pela traição do ato. Than Shwe fortalece-se mais, até porque a população não protestou. Em 2003, incumbe a Khin Nyunt ser 1° Ministro, mas no ano posterior é retirado. O número três do regime passou a ser Thura Shwe Mann e o quatro, Myint Swe. No ano seguinte, a Junta inicia a Assembleia Constituinte, mas interrompe-a em menos de um mês. Desde 18 de maio de 2007, o general Thein Sein atua na posição de chefe de governo.

Quanto às negociações entre a Liga Nacional pela Democracia e o governo, a década de 90 pautou-se pelos ataques mútuos. A líder Suu Kyi permaneceu sob detenção do período eleitoral até 1995, quando é liberada. Todavia, o entendimento era débil; “ela advogava que nenhuma ajuda externa deveria ser concedida ou investimentos feitos até que as eleições democráticas fossem realizadas”.16 Isso reflete o desprezo de ambos os contendores em relação ao povo, sob quem recaíam os malefícios.

Em 2000, os militares retomam a prisão domiciliar da filha de Aung San. Por intermédio da ONU e do enviado especial Razali Ismail, há relaxamento em maio de 2002, justificado em parte pela debilidade do SLORC. Assim, lidar com os opositores já não era tão fácil. Abriu-se espaço de discussão, permitindo-se que Suu Kyi reiniciasse a promoção de suas ideias no interior. Contudo, afirma Hlaing: a situação modifica-se por causa dos apelos reiterados da comandante do NLD por sanções ocidentais ao Mianmar e do temor da elite jovem em perder os privilégios econômicos concedidos pelos militares. Além disso, as incursões da birmanesa pelo interior do país culminaram no favorecimento da Union Solidarity and Development Association (USDA), grupo contra Suu Ky. No ano de 2003, os desentendimentos acirram-se em virtude do ataque em Depayin, respondido pelos Estados Unidos com imposição de duras sanções. O governo, aproveitando-se do fato, declara essa mulher sob regime de custódia e o término da efêmera reabertura política. Enfim, significou o desencantamento de ter fim o impasse além de representar a terceira etapa de prisão domiciliar de Suu Kyi – embora o discurso oficial fundamente o ato como preservação da vida da líder oposicionista. No dia 25 de maio de 2007, ampliou-se o prazo de detenção, sem limite temporal.

Em fins de 2005, divulga-se a transferência de Rangum para a nova capital política e administrativa, Naypyidaw (cidade real), próxima de Pyinmana. Idealizada por Than Shwe, a mudança foi motivada por sede de mais poder e por lembrar o colonialismo britânico. Minimizavam-se também os riscos de sublevação popular e de vulnerabilidade no caso de ocupação estadunidense por ser localizada mais ao centro do país. Os militares consideram sempre a possibilidade de aliança invasiva entre a Tailândia e a CIA (Boucaud, 2005; 2006).

myanmar2_600xEconomia de um desconhecido

A economia de Mianmar é de difícil análise, uma vez que os dados nem sempre são confiáveis. Consoante o Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB, 2007), o Estado depende mais de 50% da agricultura, a qual emprega cerca de 60% da força laboral. Os índices do PIB são baixos, em torno, de 9.6 bilhões17 e o PIB per capita de 1.800 dólares,18 mas houve crescimento, em geral, de 13% entre 2002 e 2006.19 Deve-se ponderar que esse índice sofreu influência das altas cotações do gás natural e das boas safras. A Tailândia (ADB, 2006) seria o maior comprador das exportações birmanesas; o valor comercializado aproximou-se de 1.623 bilhão de dólares em 2005. A origem primeira das importações seria a China (valor, em 2005, de 1.028 bilhão de dólares). Em síntese, de acordo com a mesma fonte, Burma integrou-se no mercado internacional pós-1988. Esse processo nota-se pela verificação dos dados: as importações totais em 88 equivaliam a 243.9 milhões de dólares; em 2005, a 3.615 bilhões. As exportações, por sua vez, passaram de 147.4 milhões em 1988 para 3.648 bilhões em 2005.

Política Externa Oficial

Após a independência, Mianmar adotou uma linha neutralista na arena internacional, de modo a privilegiar a sua reconstrução interna e o apaziguamento das rivalidades étnicas. Consequentemente, absteve-se de aderir a um dos blocos durante a Guerra Fria. Isso ocorreu também em função de seu posicionamento geográfico: entre dois rivais poderosos, Índia e China. Segundo os ditames do Ministério de Relações Exteriores, em 1971, Burma propõe-se a maior ativismo em sua política, sem diminuir, contudo, o grau de liberdade. Pautar-se-ia ainda pelos cinco princípios da coexistência pacífica, presentes nos acordos firmados entre o país e a China e Índia: respeito mútuo quanto à integridade e à soberania, não agressão, não interferência nos assuntos internos, coexistência pacífica e respeito à igualdade mútua. De acordo com a mesma fonte, Mianmar hoje, além de guiar-se pelas regras anteriores, vislumbraria as metas de desarmamento, participação ativa na ONU e combate ao colonialismo. É imprescindível notar a formalidade desse discurso, uma vez que é oficial. Na prática, a abertura e a inserção internacional mostram-se lentas, pois o governo parece compreender a sua fragilidade em rebater as críticas ocidentais. Prioriza-se, por conseguinte, o relacionamento amistoso com os vizinhos.

Política das potências extrarregional: o discurso ferrenho

Mianmar associou-se à Organização das Nações Unidas (ONU) em 19 de julho de 1948. Participa das agências da ONU, tais como a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a UNESCO. Quanto aos programas das Nações Unidas, é membro do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), do programa de controle de drogas, de desenvolvimento etc. Integra ainda a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a ASEAN, o Banco de Desenvolvimento asiático (ADB), dentre outros.

Em face dos ditos desrespeitos aos direitos humanos, Mianmar é assunto presente na pauta na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Essa entidade lá atua por meio de monitoramento feito por um enviado especial. De 1992 a 1996, a responsabilidade esteve a cargo do japonês Yozo Yokota; entre 1996 a 2000, do mauritânio Rajsoomer Lallah e desse período em diante, do brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro. Conforme um relatório20 de 2006, feito pela Comissão dos Direitos Humanos, o povo ultrapassa período bastante restritivo das condições socioeconômicas, crescimento vertiginoso dos infectados pelo HIV/AIDS, parcas oportunidades de trabalho e de educação. Ressaltam-se ainda as difíceis conversações, em virtude de o governo birmanês vetar as visitas de Pinheiro desde novembro de 2003. Assim, negocia-se fora de Mianmar em eventos raros. Em função disso, a ASEAN sofre constante pressão dos organismos internacionais, a fim de instigar as mudanças democráticas. Outra alegação seria a necessidade premente de a Junta militar dialogar com os demais partidos, mantidos a par do processo.

A tradicional ligação entre a União Europeia e a ASEAN sofreu abalo em 1997, quando da inclusão do Mianmar. Os europeus negavam-se a legitimar um governo não seguidor da pauta dos direitos humanos, tanto que impuseram sanções. Por outro lado, os asiáticos, ainda que preocupados com as mazelas do vizinho, alegavam a impossibilidade de excluí-lo da associação, haja vista o artigo quarto da Declaração de Bangkok expressar o acesso a todos os Estados da região indiscriminadamente e o artigo segundo do Tratado de Amizade e Cooperação (1976) privilegiar a liberdade interna e afastar qualquer intervenção estrangeira. Finalmente, em meio à crise dos anos 1990, Mianmar obteve o reconhecimento regional e o apoio financeiro – recusados pelo Ocidente. A Europa, depois de muita resistência e boicote aos representantes birmaneses, na Cúpula EU-ASEAN, em 2004, aceitou de forma tácita o membro da associação asiática (Petersson, 2006).

Sara Quad mostra muçulmanos discriminados por monges em Burma
Sara Quad mostra muçulmanos discriminados por monges em Burma

Os Estados Unidos, desde a negativa de a Junta Militar entregar o poder à Suu Kyi, difundiram uma retórica agressiva, baseada em fundamentos humanitários. A relação bilateral durante a década de 90 experimentou gradativo acirramento. A princípio, os norte-americanos rechaçaram envio de representante diplomático a Rangum, vetaram o possível auxílio econômico dos fundos internacionais. O clímax do desentendimento ocorreu em 1997, quando a ASEAN admite Mianmar como novo membro. Após severa pressão congressual e midiática, compelido pelos fatos, Clinton cede e instaura o embargo. A ASEAN, coagida pelos Estados Unidos, contra-argumenta, enfocando a relevância de se inserir aquele Estado seja para que não se aproximasse em demasiado dos chineses, seja pelas mazelas advindas do isolamento e da exclusão.21 Todavia, os Estados Unidos permaneceram intransigentes. Conforme Hadar, as sanções a Mianmar são contraproducentes, já que não alcançaram o objetivo de afastar os militares. Ao contrário, quem sofre é o povo: o crescimento dos índices de miséria e o de infectados por HIV ratificam a afirmação. A configuração do embargo ampliou-se, pois envolveu a ASEAN e repercutiu nos territórios do entorno, por exemplo, por meio do recebimento de refugiados. Os Estados Unidos perdem, por conseguinte, influência na Ásia e deixam de explorar o mercado birmanês para produtos e investimentos. Ou seja, “é realmente irônico que, na era da globalização, os EUA mantenham política de sanções que seja contra sua própria crença: livre comércio e mercados abertos”.22 Em 2005, Condoleezza Rice, secretária norte-americana, incluiu Burma na lista dos subjugados pela tirania junto da Coreia do Norte e Cuba.23

Relação regional: entre o temor e o ardor

A Tailândia, país vizinho e importante elo comercial, inspira desconfiança nos governantes birmaneses. O primeiro ministro, Thaksin Shinawatra, recebera privilégios, em Mianmar, como a concessão da televisão por satélite, em 2002, à sua empresa Shin corporation. Entretanto, a declaração de Bush, pontuando a Tailândia por aliado, atemorizou a Junta. Em diversos momentos, acusa-se Bangkok de financiar grupos rebeldes karens, karennies, shans, de violar o espaço aéreo e de culpar o país de anuir o tráfico de drogas.

Por fim, analisar-se-á a disputa entre a Índia e China referente ao Mianmar. A sustentação dos índices de crescimento dos dois gigantes asiáticos pauta-se, em grande medida, na energia. Isso significa que há uma corrida, a fim de assegurar as suas principais reservas. Como no território do Mianmar existe quantidade considerável de gás, ele passou a ser uma peça do jogo. Presencia-se, portanto, nos tempos modernos a chamada “diplomacia dos oleodutos”.24

Burma, consoante Lall, manteve bom relacionamento com a Índia da independência até o golpe de 1962. A partir dessa data, oscilou rumo à China, pois a linha adotada por Nehru confrontava a ditadura birmanesa. O impasse estende-se até a década de 90 quando a postura externa indiana torna-se mais realista. Em 2004, concretiza-se a mudança: O Congresso prioriza o realismo em detrimento do idealismo nehruviano, transformação advogada pelo Ministro de Relações Exteriores Jaswant Singh. Assim, a partir da década de 90, Mianmar e suas riquezas minerais passaram a dramatizar o conflito entre os dois velhos rivais. A Índia aproxima-se, já que, dentre os gasodutos planejados para a construção, um deles atravessaria pelo território vizinho e abasteceria a região nordeste indiana, pouco desenvolvida. Subsidiariamente, há interesse comercial, pois o Estado é integrante da ASEAN. Logo, o cerceamento a Burma implicaria aproximação com os demais asiáticos e vitória frente ao vizinho.

Por outro lado, a China do período da década de 1990 a 2001, segundo Hlaing, desprestigiou a relação com Mianmar. Proporcionou o dobro de ajuda militar à Tailândia e enviou missões para diversos países asiáticos, mas não para a Birmânia. Há mudança posterior, pois a China visa também à exploração do gás, a fim de sustentar seu padrão de crescimento e seu projeto hegemônico. Para tanto, negocia diversos acordos concernentes, regra geral, com a matéria energética. Um exemplo foi a assinatura, em 2006, de um Memorando de Entendimento entre a PetroChina e Mianmar cuja proposição era fornecimento de gás e estudo de viabilidade de um gasoduto até a província chinesa de Yuan.25 A etnia Wa (birmanesa) aliou-se à China, por meio do antigo Partido Comunista Birmanês, e recebeu apoio em homens, conseguiu a autonomia de sua região e liberdade de tráfico com o cessar fogo em 1989, além de formar o Exército Unido do Estado Wa (UWSA). Assim, a China obteve proteção da zona sudoeste contra os indianos, além de um caminho fácil de saída para o Oceano Índico. Em 2005, um tribunal norte-americano culpa os dirigentes do UWSA por tráfico de entorpecentes. A China, então, pressiona por menor intensidade do comércio, das plantações e ordena o fechamento dos cassinos e da fronteira.26

Considerações finais

Diversas críticas foram e são dirigidas aos países do sudeste asiático, ainda que haja parca informação confiável no Ocidente. O caso de Mianmar, como exposto, ilustra esse fato. O desconhecimento prepondera quanto a esse país, pois permanece fechado, embora promova vagarosamente, após a adesão a ASEAN em 1997, a inserção regional. É um ator passivo nas relações internacionais, uma vez que o objetivo central da Junta que o governa reside na sua manutenção e no apaziguamento das muitas etnias – fatores internos. Ou seja, a consolidação do Estado demonstra-se frágil. Inseridos nesse contexto, percebem-se os militares não como os temíveis personagens idealizados pelo Ocidente, mas como um grupo forte que, bem ou mal, sustenta um aparato mínimo, barrando a fragmentação. Seria ingênuo, porém, não se avaliar o desrespeito aos direitos humanos cometido. Enfim, a Junta prescreve hoje aquilo que a grande maioria das nações já perpassou: conflito, tirania na construção do Estado. Isto é, o discurso ocidental reflete leviandade e inconsistência, pois, por exemplo, a Europa, para atingir o nível atual, necessitou de séculos de intensos embates e de despotismo. No plano externo, devido aos recursos naturais e energéticos, desperta ainda interesse das potências ao entorno. Não há um plano consolidado, nem uma direção precisa pelos quais Mianmar se guie. Não obstante, a médio e longo prazo, o país será levado pela ASEAN a dirimir o isolamento e a participar mais ativamente na região.

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Notas

  1. Tais dados seguem os mencionados no site www.aseansec.org/4745.htm. A CIA, por exemplo, divulga o dado de 47.373.958 (https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/bm.html).
  2. www.mofa.gov.mm/aboutmyanmar.
  3. Öno, 1974, p. 3.
  4. Termo usado por Best (2004), p. 245, para demonstrar quão fraca era a autonomia concedida.
  5. Ono, 1974, p. 7.
  6. Wichmann, 1965.
  7. Grenville, 2005, p. 592.
  8. Grenville, 2005, p. 592. “Potentially a rich country, with resources of rice that had once made it Asia’s biggest exporter of the grain, not to mention timber and minerals, Burma´s development neverthless languished under U Nu’s regime”.
  9. Dobbs-Higginson, 1994, p. 376.
  10. Sellier, 2002, p. 100. “Mercado negro, nutrido por el contrabando com Tailândia y, más tarde, China.”
  11. Önon, 1974, p. 15.
  12. Dobbs-Higginson, 1994, p. 377.
  13. Essa mudança é analisada por Dobbs-Higginson sob dois ângulos. O primeiro seria a intenção de estabelecer vinculação ao passado de colônia britânica e contemplar os grupos étnicos em uma união. A segunda razão decorre de Myanmar ser o termo original e mais antigo (data de 1190 AD, enquanto Burma só aparece em registros do século XVIII e XIX).
  14. Sellier, 2002, p. 101.
  15. Any person who is under any acknowledgement of allegiance or adherence to a foreign power, or is subject or citizen or is entitled to the rights and privileges of a subject citizen of a foreign power’is not eligible to contest for a seat in the country’s elections.”, Dobbs-Higginson, 1994, p. 385.
  16. Dobbs-Higginson, 1994, p. 380. Versão original: “she advocated that no foreign aid be granted, or investments made, until democratic elections had been held”.
  17. Dados da CIA: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/bm.html.
  18. Idem.
  19. Estes índices provêm do ADB; a CIA divulga crescimento do PIB em 2006 de apenas 3%.
  20. The situation of human rights in Myanmar, Economic and Social Council, 27 february 2007.
  21. Hadar, 2001, pp. 415-417.
  22. Hadar, 2001, p. 426. “It is indeed ironic that in the age of globalization, the US is supporting a sanctions policy that runs contrary to its own guiding creed: free trade and open markets.
  23. Boucaud, 2005.
  24. Lall, 2006.
  25. Lall, 2006, p. 430.
  26. Boucaud, 2005; 2006.

 Sobre Nathaly Xavier e Taís Librelotto

Acadêmicas do Curso de Relações Internacionais/UFRGS.