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O cineasta Mer-Khamis assassinado em Jenin

1.

Escrevo este artigo em homenagem a um homem incomumente corajoso, a ponto de ter pagado com a própria vida por sê-lo. Apesar de avisado. Mas escrevo-o, também, em nome de certos fatos que afloram de suas últimas declarações, em um lugar e sobre um tema em que prevalecem os mitos, as mentiras, os preconceitos e as ideologias. Seu nome era Juliano Mer-Khamis, morto com vários tiros dados por covardes mascarados no início de abril em Jenin, na Cisjordânia. O tema e o lugar são, obviamente, a Cisjordânia e o conflito com Israel.

Mas o óbvio para aí. Pois Juliano Mer-Khamis (ator, cineasta, ativista e diretor de teatro no campo de refugiados de Jenin) tinha uma particularidade biográfica que o torna um ser quase impossível, uma quimera. De fato, impossível e quimérico, o que não é uma redundância. Pois quimera, além de haver adquirido o sentido de uma impossibilidade, também significa um animal híbrido. E Juliano Mer-Khamis era judeu e cristão, israelense e palestino, filho de uma judia israelense e de um palestino cristão.

Sua morte na principal cidade da Cisjordânia, por outro lado, nada tem de surpreendente, pois houve, como dito, ameaças e avisos. Ele tampouco ignorava os motivos, explicitados em declarações recentes. Além disso, Mer-Khamis também deixa claro por quem seria morto: militantes palestinos. A questão que resta é: militantes do quê?

Sua identidade dupla lhe ajuda a entender melhor os dois lados?
Minha mãe era judia, meu pai palestino cristão. Pela tradição judaica, sou judeu. Pela tradição cristã, sou cristão. Na prática é o contrário: para os palestinos, sou judeu. Para os israelenses, sou árabe. Ao mesmo tempo, não me sinto parte de nenhum dos lados, e acho isso maravilhoso. Quem quer pertencer a essas duas nações? Prefiro ser o outro. Não estou em Jenin porque morro de amores pelos palestinos. Estou aqui para lutar contra a injustiça. Não sou bem-vindo em Jenin. As pessoas não gostam muito de mim aqui. Primeiro, porque me veem como um judeu. Mas o que mais incomoda é que eu critico a vida que eles levam.

O seu teatro não é uma forma de resistência contra a ocupação israelense?
O teatro não pode resistir a Israel. Isso é uma romantização. O teatro não tem como resistir a um Exército. O que o teatro pode fazer é resistir à opressão, à discriminação, ao racismo, à opressão sexual. Eu vim a Jenin para lutar contra a ocupação, mas logo percebi que isso é besteira. O teatro luta por valores humanos. A ironia amarga é que meu trabalho serve para libertar mulheres que são oprimidas por homens oprimidos por Israel. É por isso que muita gente aqui gostaria de se ver livre de mim.

Por quê?
A Palestina hoje não é um lugar nada amigável. É religioso, conservador, arruinado, corrupto, chauvinista e extremamente racista. Há 15 anos eu achava que havia um espírito de resistência entre os palestinos, um senso de liberdade, de justiça. Hoje isso acabou (Marcelo Ninio,  “Muita gente aqui quer se livrar de mim”, Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1904201110.htm).

Antes de responder à pergunta que importa, três observações.

1) Apesar da clareza de Mer-Khamis, o repórter, comprometendo a análise de suas próprias informações em nome de qualquer falso equilíbrio, insinua na introdução da entrevista que ele pode ter sido morto por Israel: “Sua morte foi obra de mascarados não identificados, supostamente insatisfeitos com suas críticas duras e frequentes às lideranças dos dois lados”. O que é afinal ridículo: ninguém morre por críticas aos “dois lados”. Mer-Khamis foi morto por um motivo, por um grupo, por um lado. E ele mesmo aponta os militantes palestinos.

2) Mer-Khamis foi, durante boa parte de sua vida, radicalmente pró-palestino. Mas não apenas a favor do movimento palestino e contra a ocupação de Israel dos territórios de Gaza e Cisjordânia. Provavelmente, a maior parte das pessoas sensatas, e cada vez mais boa parte das insensatas, é contra a ocupação dos territórios palestinos. Mer-Khamis, porém, fez parte de um grupo ainda minoritário, mas crescente, que além de defender a “resistência” palestina, demoniza radicalmente Israel. Considerando, entre outras coisas, que a demonização radical, nos sentidos conotativo e também denotativo, de ir à raiz, do estado de Israel de alguma forma serve àqueles, hoje liderados pelo Irã, que sonham com sua destruição, não o acompanho nesse passo. No limite, se fosse possível demonstrar que a direita israelense está certa, e que a ocupação é necessária, não para a mera segurança, mas para a sobrevivência de Israel, eu afirmaria sem pudor que a opressão de alguns é um preço defensável para a não supressão de outros. Mas, em primeiro lugar, é impossível demonstrar essa hipótese. Em segundo lugar, não acredito nela, por vários motivos, entre os quais a evidência empírica de que a ocupação cobra um preço político no longo prazo insustentável para o próprio estado de Israel. Em suma, não creio no que diz a direita israelense, que a ocupação é necessária à segurança de Israel, assim como não creio no que diz a esquerda internacional, incluindo Mer-Khamis durante muitos anos, que Israel e o movimento nacionalista judaico que lhe deu origem como ideia no final do século XIX (conhecido como sionismo) sejam demonizáveis.

3) Escrevi “resistência” palestina entre aspas porque a resistência palestina não é meramente, ou seja, integralmente, um movimento de resistência. Na verdade, ela só se tornou resistência porque fracassou em ser agressão. Fechando o círculo, isso nos leva de volta à questão: os militantes palestinos, entre os quais os que mataram Mer-Khamis, militam pelo quê?

A resposta óbvia é a causa palestina. Óbvia, porém falsa. Mer-Khamis: “Estou aqui [na Cisjordânia] para lutar contra a injustiça”. E no entanto, para ele próprio a causa palestina havia morrido: “Há 15 anos eu achava que havia um espírito de resistência entre os palestinos, um senso de liberdade, de justiça. Hoje isso acabou”. Mas por que acabou? E o mais importante: por que nunca venceu?

O motivo de o movimento palestino haver morrido é debitado na conta de Israel, e mais particularmente, da ocupação dos territórios. Mas fazê-lo apenas reitera o verdadeiro motivo de esse movimento haver fracassado. Qual é, afinal, a causa palestina?

 

 

2.

Não há uma resposta. E não porque não haja qualquer resposta, mas porque há várias. Isso significa, em primeiro lugar, que a resposta não é dada, não é óbvia. Ou seja, a causa palestina não é a criação de um Estado palestino baseado na “autodeterminação” dos povos e no direito internacional. Fosse isso, o Estado palestino teria sido criado entre 1948 e 1967.

Porque Israel invadiu a Cisjordânia e Gaza em 1967, e apenas em 1967. Logo, Israel não invadiu Gaza e a Cisjordânia antes de 1967. Ao mesmo tempo (literalmente), nesse período Israel foi fundado e efetivamente criado, a ponto de ser uma potência militar em 1967. Por que, então, nesse mesmo período não foi criado, nos territórios palestinos, o Estado palestino?

A resposta é tão simples quanto verdadeira: porque os palestinos não quiseram. E não quiseram porque seu objetivo político primeiro e principal não era criar um Estado palestino, mas destruir o estado de Israel. E apenas depois criar seu Estado, em toda a antiga Palestina Britânica.

Nada disso é uma opinião, mas são fatos. Pois os fatos existem, apesar de tudo. Por exemplo: a OLP, Organização para a Libertação da Palestina, foi criada em 1964. Porém em 1964 Gaza e Cisjordânia não estavam ocupadas por Israel. Na verdade, não havia ali nenhum cidadão ou soldado israelense. Mas se a Cisjordânia e Gaza não estavam ocupadas em 1964, ou a OLP foi criada baseada no uso de alguma bola de cristal, prevendo uma invasão israelense que só aconteceria três anos no futuro, ou não foi criada para libertar a Cisjordânia e Gaza. Obviamente, a OLP não foi criada para libertar Gaza ou a Cisjordânia. Mas foi criada, então, para libertar o quê? Israel.

Além das datas, tais fatos podem ser confirmados por sua explicitação nos estatutos originais da OLP. Cujo nome, portanto, é propaganda enganosa. Não se tratava de uma organização para “libertar” a Palestina, mas sim para destruir Israel. Em vez de OLP, ODI (Organização para a Destruição de Israel).

Em 1948, a ONU votou a divisão da ex-colônia britânica da Palestina em dois novos Estados, “um judeu e um árabe”. As lideranças da comunidade judaica da Palestina Britânica aceitaram a divisão, as lideranças árabes a recusaram. Tinham todo o direito de fazê-lo, de um ponto de vista político. Mas ao optar por esse cainho, tinham também a obrigação, igualmente política, de ao menos prevenir seu povo sobre a decisão de arriscar seu futuro geopolítico – e prepará-lo para o pior. Pois se a aceitação da partilha teria implicado na criação de um Estado palestino imediatamente, no mesmo ano de 1948, a recusa implicava em tentar impor essa decisão à comunidade judaica da Palestina Britânica – ou seja, lutar contra ela e vencê-la. Foi, de fato, o que os árabes fizeram.

Portanto, em vez de declarar a criação de seu Estado no mesmo dia da declaração da fundação de Israel, e ao lado dele, declararam guerra a Israel e tentaram invadir as partes do território destinadas pela ONU ao Estado judeu (a ação militar foi obra da Legião Árabe, que contava com o apoio de todos os países árabes, tanto em homens quanto em armas). Seria sua primeira derrota militar. A partir daí, o movimento palestino consolidou um objetivo estratégico: reverter a derrota de 1948, destruir Israel e construir a Grande Palestina.

Eis o motivo de a OLP ter sido criada em 1964. Pois além de ter sido criada nessa data, foi criada no Cairo (e não em Gaza ou na Cisjordânia, então, repita-se, não ocupadas por Israel). Porque a razão imediata de sua criação foi acoplar o movimento palestino à política do ditador egípcio, Gamal Nasser, patrocinador da criação da OLP.

Nasser estava então dedicado à montagem de um grande exército, armado e treinado pela URSS, com o objetivo específico de invadir e destruir Israel, o que o tornaria (além de um novo genocida do povo judeu) um novo Saladino (o vencedor dos cruzados), o grande herói do pan-arabismo. Os preparativos militares de Nasser seriam concluídos no início de 1967, levando-o a um movimento tão arriscado quanto estúpido, porque ameaçador mas não decisivo: ele remilitarizou o deserto do Sinai, expulsando os observadores da ONU ali postados desde 1956, e levou suas tropas até a fronteira com Israel; além disso, bloqueou o porto de Eilat, cidade no extremo sul de Israel e sua saída para o Mar Vermelho. Acontece que o bloqueio militar de um porto é um ato de guerra. A reação de Israel ficaria conhecida como a Guerra dos Seis Dias, tempo necessário para o Egito e em seguida a Jordânia e a Síria (que atacaram Israel pelo oeste e pelo norte seguindo um apelo egípcio) serem derrotados.

A derrota árabe na guerra de 1967 foi também a derrota histórica da OLP em seu nascedouro. E que derrota: pois em vez de “libertar” a “Palestina”, três anos depois de fundada, viu Gaza e a Cisjordânia serem ocupadas por Israel.

3.

No último meio século, desde o fim dos impérios europeus após a Segunda Guerra, praticamente todas as causas nacionais foram vitoriosas, das maiores às menores. A maior foi, sem dúvida, a Índia, que derrotou o colonialismo inglês sob a liderança de Gandhi, e a menor o Timor Leste, que se livrou em 2000 de um quarto de século de invasão e ocupação (brutais) pela Indonésia. No meio, fica a África do Sul do apartheid, afinal derrotado sob a liderança de Nelson Mandela. Houve ainda, entre inúmeros outros, o Vietnã, a Nicarágua de Somoza, libertada pelos sandinistas de uma ditadura criada e apoiada pelos EUA, a revolução iraniana, que se livrou do xá, e a luta dos talebans, que expulsou a URSS do Afeganistão. Não faço, aqui, julgamentos de valor, pois não sou simpático nem aos sandinistas, nem à retrovolução teocrática iraniana nem aos talebans. Apenas aponto um fenômeno histórico, de vitórias em série das forças políticas internas ou nacionais, num arco histórico de mais de meio século e num arco geográfico que abarca todo o planeta, e que recentemente incluiu o Kosovo em relação à Sérvia e o sul do Sudão em relação ao norte: ou seja, movimentos políticos nacionais que conseguiram inclusive a proeza de dividir países já estabelecidos. Em tal contexto histórico, os palestinos são uma exceção: os grandes derrotados da história mundial recente. Deve haver um bom motivo.

A explicação não é simplesmente o “poder judaico”, expresso pela força do sionismo e da comunidade judaica, afirmações que mal escondem seu antissemitismo, ou sua forma mais racional, a ocupação israelense. O Vietnã derrotou os EUA, o Afeganistão expulsou a URSS. Não é a força do inimigo que explica a derrota histórica palestina, mas a sua própria fraqueza.

Mesmo aceitando o argumento maniqueísta que reduz o sionismo a um erro ou um crime, o que ele não é (pois sionismo é fundamentalmente o nome da causa nacional judaica, nascida no fim do século XIX no contexto da emergência do nacionalismo como conceito geopolítico central da época), nada pode ser pior do que o apartheid. E ainda que se aceite que a ocupação israelense é um novo apartheid, o que ela não é (porque não há semelhanças verdadeiras em dois processos históricos e políticos totalmente distintos – a comparação é apenas um slogan bom demais para ser dispensado), o apartheid original foi derrotado. Por que, afinal, os palestinos são incapazes de vencer? E por que, diferentemente, os negros sul-africanos, como tantos outros, venceram?

Uma parte importante da resposta, ou ao menos uma parte grandemente reveladora, está nas diferentes qualidades das respectivas lideranças históricas. Nelson Mandela tornou-se Nelson Mandela não por sobreviver a 23 anos de prisão, mas porque aceitou ser libertado depois desse período para usar todo seu capital político acumulado a fim de mudar o discurso e os objetivos históricos do CNA, o Congresso Nacional Africano, principal grupo da resistência sul-africana. Não haveria revanche contra os brancos, expulsão dos brancos, expropriação de suas propriedades ou mesmo julgamento político. Mandela tornou-se Mandela ao transcender a política para se tornar estadista, decretando que a vitória dos negros não seria a derrota dos brancos, o que significaria a guerra civil e a destruição do país. Não há e nunca houve um Mandela palestino – pois seu lugar foi ocupado por um homem muito menor, um oportunista político e afinal um covarde, Yasser Arafat, que no final de 2000 declarou temer ser morto caso assinasse os acordos de Camp David, o mais perto que se chegou de uma solução definitiva para o conflito israelense-palestino. Acontece que os Acordos de Camp David significavam que os palestinos teriam de trocar o discurso pelos fatos, e os mitos pela história. Não haveria vitória da “justiça”, os “refugiados” (a maioria, na verdade, já nascida no exílio) não “retornariam” em massa para a “Palestina”, ou seja, para Israel, etc. Em suma, os brancos não seriam derrotados para os negros serem vitoriosos. Israel não seria destruído para a causa palestina ser vitoriosa. E se Israel não seria destruído, os “refugiados” não retornariam (o que significaria a destruição demográfica de Israel) etc. Fim do apartheid, sim, mas com o fim concomitante de qualquer possibilidade de revanche contra os brancos sul-africanos. Ou seja: fim também do “apartheid” reverso dos radicais do movimento negro, que pretendiam, no limite, expulsar todos os brancos sul-africanos, esses europeus colonialistas, exploradores racistas, não-nativos etc. Os negros sul-africanos, na prática, tiveram de “engolir” os brancos, ou seja, sua presença no país. O mesmo tem de acontecer no movimento palestino.

Os ingênuos, os mal-informados ou os mal-intencionados afirmam que isso já foi feito, pois a OLP, hoje Autoridade Palestina, reconhece desde 1993 (Acordos de Oslo) o direito de existência de Israel, e pleiteia a criação de um Estado palestino “nas fronteiras anteriores a 1967”. O que prova ser tal reconhecimento, em termos políticos reais (e não de discurso), falso.

4.

Insistir nas fronteiras de 1967 é uma tentativa vã e ideológica, e vã porque ideológica, de tentar reverter ao menos parcialmente a derrota histórica do movimento palestino, girando para trás o relógio da história, senão para 1948, para o meio do caminho. Mas o mundo não parou desde 1967. Além disso, tentativas subsequentes de destruir Israel por meios militares, com apoio político palestino, como a invasão pelo Egito e pela Síria em 1973 (Guerra do Yom Kippur), adiaram ainda mais uma solução. Quando a OLP afinal mudou seu discurso histórico em 1993, trocando o objetivo de destruir Israel pelo da construção de um Estado palestino em Gaza e na Cisjordânia, o tempo e a história cobraram seu preço. Porque foi muito tarde. E porque foi muito pouco.

Muito tarde, porque a ocupação militar israelense já havia se tornado ocupação colonial, com a construção de colônias. E muito pouco, porque o movimento palestino, presa política de seu próprio discurso histórico, ainda insistiria em outras causas perdidas – além do retorno às fronteiras de 1967, a volta dos “refugiados” de 1948.

Porém as fronteiras de 1967 não ressurgirão no mapa mundi. Porque não é real ou realista que Israel, uma democracia com um exército de caráter miliciano, em que todos os cidadãos são soldados, possa ou vá lançar seu exército numa guerra civil deliberada, que é o que aconteceria caso decidisse desalojar as centenas de milhares de colonos hoje estabelecidos na Cisjordânia. A opção realista já foi dada por Israel: trocar terras (mais exatamente, do norte de Israel, na região da Galileia, pelas áreas equivalentes da Cisjordânia que ficariam com Israel). E os milhões de “refugiados” palestinos de 1948 (a maioria, na verdade, nascida nos países de exílio) jamais “retornarão” a Israel. Mas isso contraria o discurso e a crença dos “direitos sagrados” do povo palestino.

Ainda mais importante, esse longo período histórico, a partir de 1948, criou uma ideologia palestina anti-israelense, um verdadeira visão de mundo, popular e popularizada, que não iria e não poderia desaparecer certa manhã, depois de a OLP decidir assinar em Oslo um acordo reconhecendo o direito de Israel de existir. De repente, meio século de crença e de discurso não valiam mais. Mas não é assim que as coisas funcionam. Ou melhor, essas coisas só têm chance de funcionar se avalisadas por um gigante como Mandela, cujo gigantismo político tem força para impor tal reversão de curso e de expectativas. À falta dele, o resultado necessário é a emergência de um grupo que mantenha o antigo curso e o velho discurso. Neste caso, ele se chama Hamas.

Daí a “falsidade” do reconhecimento pela OLP, ou pela AP. Pois sendo pouco e sendo tardo, na prática (que é o que importa) implicou na emergência de um grupo baseado na manutenção do recém (e mal) abandonado discurso histórico, a destruição de Israel antes da construção do Estado palestino. E porque sendo tardo e sendo pouco, na verdade não foi um reconhecimento real, integral, “mandeliano”, mas sim presa de ambiguidades – como a insistência na volta dos “refugiados” e das fronteiras de 1967.

A Palestina hoje não é um lugar nada amigável. É religioso, conservador, arruinado, corrupto, chauvinista e extremamente racista. Há 15 anos eu achava que havia um espírito de resistência entre os palestinos, um senso de liberdade, de justiça. Hoje isso acabou.

A “Palestina”, neste caso, a Cisjordânia, e nela o movimento palestino, se encontra no estado assim descrito por Juliano Mer-Khamis – assassinado em parte por seu meio judeu, e em parte por dizer tais palavras por inteiro –, não tanto ou não apenas pelos atos de Israel, mas também pelos erros palestinos. Nenhum, entre os incontáveis movimentos de libertação que venceram ao redor do mundo contra forças superiores no último meio século, pediu licença para vencer, ou para ter um adversário mais fraco. Todos venceram os adversários que se apresentaram, não porque esses adversários fossem fracos, mas porque tais movimentos souberam se tornar fortes.

Alguns militarmente, a maioria politicamente. A “causa” palestina, com suas ambiguidades históricas, jamais foi uma causa única, clara, definida, ou seja, a construção desde sempre de um Estado nacional palestino, pois nasceu, cresceu e viveu impregnada, intoxicada, marcada e cindida por outro objetivo, na verdade o primeiro, o mais antigo e o mais historicamente duradouro, o de destruir Israel. Não se trata de um bom objetivo, ao menos para pessoas de bom senso, e por isso jamais foi forte politicamente perante a opinião pública mundial, como a luta contra o apartheid sul-africano. Ao ser abandonado de forma abrupta, inconsistente e inconvincente por uma OLP política e historicamente derrotada em 1993, tal objetivo não desapareceu num passe de mágica, mas continuou presente em muitas mentes e corações palestinos – para não falar de grupos como o Hamas.

Nunca houve uma “causa” palestina, no singular, porque ela foi, a maior parte do tempo, dupla e dúplice: de um lado, a causa defensável de construir um Estado palestino; de outro, a causa indefensável de destruir Israel. Tal duplicidade e tal ambiguidade jamais foi de fato abandonada. Nem em um recorte horizontal, pois o espectro político palestino ainda conta com grupos pró-destruição de Israel, do qual o Hamas é apenas o mais poderoso e notório, nem em um recorte vertical, pois muitos, não apenas em Gaza, mas também na Cisjordânia, onde Mer-Khanis foi morto, “aceitam” a solução de dois Estados por falta de opção, quando na verdade prefeririam, inconfessadamente, “jogar os judeus no mar”. Um deles, apesar de sê-lo apenas pela metade, acaba de ser lançado aos tubarões.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).