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Redeverorar 1922 #1

               Agradeço o convite do Régis Bonvicino para inaugurar a sessão temática “Redevorar 1922” na Revista Sibila, dedicada a uma reflexão sobre os modernismos inaugurados a partir da Semana de 1922. Correndo o risco de adicionar mais uma voz ao burburinho que tomará conta dos meios literários no ano que vem – centenário da efeméride – o objetivo da sessão será trazer pontos de vista que ajudem a atualizar as consequências da Semana hoje. Para além das polêmicas sobre em qual clube literário do Brasil (ou em qual departamento de Letras) se deu o primeiro grito futurista, quer dizer, modernista, o objetivo da sessão será trazer elementos contrastantes com a leitura tradicional dos modernismo brasileiros e em especial da Semana (imaginada como majoritariamente de elite, paulista, branca, heterossexual ) que ajudem tanto a ressaltar elementos anti-hegemônicos já presentes ali e escamoteados pela recepção tradicional, quanto atualizá-la a partir de críticas e devorações de artistas e pensadores posteriores.

Para inaugurar a sessão, e também para homenagear a morte absolutamente trágica do artista makuxi Jaider Esbell, começamos com duas releituras do Macunaíma de Mário de Andrade, publicado originalmente em 1928. A primeira é uma devoração satírica e polêmica do artista Denilson Baniwa intitulada “ReAntropofagia”, de 2018, composta por um quadro (em exibição atualmente na Pinacoteca de São Paulo) e um poema cuja última estrofe está também transcrita no quadro. Em ambas as expressões, Baniwa é crítico: o Macunaíma andradeano é chamado de “simulacro” e o objetivo da obra é operar justamente uma reapropriação.

Já a segunda releitura, feita por Jaider Esbell no texto “Makunaima, o meu avô em mim”, publicado em 2018 na revista Iluminuras, propõe uma virada perspectivista que supera a questão dos limites éticos e estéticos da apropriação indígena feita pelos modernistas. Nesta leitura, é a própria entidade “Makunaima” quem escolheu se grudar “na capa daquele livro”, como modo de fazer história e de garantir para si e para seus parentes “um lugar na Eternidade”.

Dois artistas indígenas contemporâneos, duas possibilidades de conversa, de relação, de “redevorar” o clássico modernista de Mário de Andrade.
Fonte: https://brooklynrail.org/2021/02/criticspage/ReAntropofagia

ReAntropofagia
por Denilson Baniwa

era primeiro de maio de vinte e oito
dia de manifesto da fome do trabaiadô
só a antropofagia nos une, coração
em página reciclada de mato-virgem
desvirginou pindorama num falso-coito
urgências do artista-moderno-devorado

de pulmões, rins, fígado e coração
filé oswald de andrade à barbecue
tupy or not tupy, that is true
or that´s future-já-passado
wirandé seu honoris-doutô
mário bom mesmo é o encanador
que faz assado de tartaruga

a arte moderna já nasceu antiga
com seus talheres forjados à la paris
faca, fork, prato raso e bourdeaux
páris que por fuck faz bobagem
se a arte indígena durará dez anos
eu quero ser aquiles: que será famoso
e morrerá antes de receber o troféu
na queda do céu ser estrela cadente
– pintou e bordou, dirão na cantiga

a arte-macunaíma no moquém
fará uga-uga com as mãos nos lábios
pois é um totem, um pau-de-sebo
onde ninguém consegue o prêmio
grêmio de colecionadores, ratos
brancos de laboratório estéril
onde pratos fake-antropofágicos
são menu para abutre-cinéreo

sério, nasceria de fórceps uma arte brasileira?
sem índios na canoa que falha-trágica
quero quem come com as mãos, alguém?
sem limites-geo e conectada à máter
ReAntropofagia posta à mesa nostálgica
é arte-indígena crua sem nenhum caráter

quando desta arte pau-brasil-tropical
não sobrar um só osso mastigado
sobrará o tal epitáfio como recado:

aqui jaz o simulacro macunaíma
jazem juntos a ideia de povo brasileiro
e a antropofagia temperada
com bordeaux e pax mongólica
que desta longa digestão
renasça Makünaimî
e a antropofogia originária
que pertence a Nós
indígenas

Jaider Esbell
MAKUNAIMA, O MEU AVÔ EM MIM!
Revisão: Parmenio Citó

Fonte: https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/85241

Eu aconteço, artisticamente falando, acredito, dentro de um processo que nos convida a pensar criticamente a decolonização, a apropriação cultural, o cristianismo, o monoteísmo, a monocultura e todos os dilemas do existir globalizado. Ou não? O meu surgimento vem junto com a expectativa que se cria em volta de outro termo, no Brasil ao menos, a arte indígena contemporânea. Não a moderna, a passada e extinta, nem a por vir, mas a deste início do século XXI.

Adianto que não ando só, que não falo só, que não apareço só. Faço saber que toda a visualidade que me comporta, todas as pistas já expostas do meu existir são meramente um passo para mais mistérios. Somos por nós mesmos o poço de todos os mistérios. Faço saber ainda que não temos definição, que viemos de um tempo contínuo, sem estacionar. Antes, faço saber que buscamos os sentidos mais abstratos, tratamos de outros tratos bem firmes nessa passagem. Antes mesmo, devo dizer que tanto meu avô Makunaima quanto eu mesmo, parte direta dele, somos artistas da transformação.

Surgimos junto com a arte todos os desafios do grande existir e suas mais claras urgências individuais e coletivas. Surgimos no aparente caos, como é mesmo descrito entre os grandes Xamãs do mundo e um quase consenso na ciência, em termos de rumos para a humanidade tal qual. O prenúncio matemático do fim do mundo é também um cenário de nossa aparição. Como produto, também desse tempo, tenho a ideia de que a colonização foi um processo, embora saiba que trata-se de um ato contínuo.

Assim, olhei para todos os lados e vi meu o avô no horizonte. No horizonte está claro também que não haverá cultura tampouco vida – e vida de qualidade, muito menor – para quem quer que seja em nada sendo feito. Não é possível, caso não rompamos alguma membrana extra do agora, pensar uma ideia de futuro em questões de nossa ligação espiritual com a terra e com o nosso lixo. Adianto, Makunaima não é só um guerreiro forte, másculo, macho e viril distante de uma realidade possível, não senhores. Ele é uma energia densa, forte, com fonte própria como uma bananeira.

A ideia inicial da construção deste texto me fez pensar profundamente os propósitos da ciência em fazer da arte um instrumento de estímulo ao pensamento. Visto que bem ocupo um lugar privilegiado de trabalho não me furto em deixar pistas ou acessos para que todas as questões maiores estejam contempladas. Falamos em desconstrução? Gênero, sexualidade e o extrapolar de mundos serão temas recorrentes pois fazem parte da vida e para a arte tudo é mesmo substância. Ter a liberdade na escrita não quer dizer muito quando o mundo precisa de outros meios possíveis para se traduzir em si mesmo.

Há esse agenciamento na educação escolar? São questões que nos apetecem. Empréstimos temos que fazer a todo o momento. Empréstimos que já vêm de longe descaracterizando as coisas, as energias e não queiramos nós ter a essência das coisas pois estas coisas não estão para nós a menos que elas mesmas nos sucedam.

Ensaio escrever para socializar um pouco o socializável da minha relação com meu avô, esse que não é gente exatamente para não sê-lo. Portanto Makunaima é meu avô e o gênero, a forma e o conteúdo têm seus lugares de ação como vamos citar sempre, pois são fundamentais, mas é preciso ir além. Makunaima está além e prova isso ao transformar-se continuamente. Não, ele não é transformista. Vamos dissociar aos poucos o existir-atuação de Makunaima dos efeitos cognitivos do gênero em nossas mentes. Sim, nas mentes.

Então Makunaima me aparece primeiro colonizado? Eu nem bem apresentei o meu avô e já lhe convido a ir além do gênero, além do tempo. É que vamos ter que visitar um outro mundo. Isso eu também devo lhe avisar. Devo lhe avisar que estas estórias são parte da minha vida e que realmente Makunaima é meu avô; isso é um fato. Makunaima e muitos outros vovôs são daqui do extremo norte da Amazônia. Nós temos uma história e uma geografia. Somos parentes diretos. É uma relação biológica, genética, material e uma parte substancial em espírito, ou energia.

Eu, quando assumo e reivindico o meu laço familiar com Makunaima, estou convidando a ir ao além no discutir decolonização ou colonização. Quando tomo isso como um argumento quero dizer que é parte minha querer que em todas as partes estejam algum extrapolar dos discursos. Quando faço isso publicamente em um lugar estratégico, com arte, acredito estar sendo paradidático. Pois sou artista e enquanto pessoa aplico minha revelação, fruto de minha pesquisa, em minha vida plena sendo esta também pesquisa de minha pesquisa.

Um sentido para a existência da Pan-Amazônia e seus povos passa nas mãos de Makunaima. Existe, onde me empenho em levar, um pleno sentido para além dos factoides sobre a preguiça e a falta de caráter do Makunaima.

De fato nem quero falar destas questões, embora tenham sido elas que nos trouxeram para este ponto. Existe todo um entremeio não de explicação, mas de possibilidade de entendimento. Sem adentrar as portas das cosmovisões dos povos originários não há como discutir decolonização. Sem considerar as culturas mexidas e hoje abertas para a discussão com parte humana representada não há como discutir fronteira alguma.

Desde antes das anotações de Theodor Koch-Grünberg até o caso de Makunaíma estar na capa do livro e ganhar o mundo também com o cinema, caminhos para a decolonização podem ter sido deixados.

Acredito que haja outro momento para além do oriente e ocidente se juntando para tentar encapsular o pensamento. Ganham novas dimensões quando velhos termos são postos em outros contextos. O caso é que vivemos em estado de arte e o passeio em outros mundos é apenas uma forma de como podemos pensar e experimentar a tão falada decolonização.

Makunaima e decolonização soam termos soltos no meio da multidão, ou seja, o povo, aquele a quem nós midiáticos buscamos. Ou não? Acontece que Makunaima expôs-se em Makunaíma para ser parte da cultura disponível. Uma vida inteira a esse propósito é anunciada para a contextualização mínima. A minha relação com meu avô será o nosso passeio. Makunaima no círculo que este texto alcança é, ou poderia ser, minimamente conhecido por sua parte exposta antes na arte, no mundo.

Tanto quanto outros ou todos os atores fantásticos colonizados com nossa gente Makunaima deve ser retirado da ala dos folclores. Significativamente, Makunaima é envolvido nas leituras que são propostas por diversos influentes sobre o caráter duvidoso do brasileiro. Isso está relacionado também com a Semana de Arte Moderna de 1922, tempo de quase um século quando surgimos com mais essa demanda. O hoje e o futuro dessa gente-nação de identidade desafiadora, beirando o fantástico, de onde mesmo lhe é proposto com arte. Pena Mário não estar mais aqui para ver e sentir esses outros lados dos movimentos. Mas não tem problema, suas crias, que também o sou, estão por aqui.

Makunaima sabia sempre o que fazia; parto deste pressuposto. Ele expôs-se sozinho e em estratégia. Agora é outro tempo. O tempo que ele pensou que chegaria não levou nem um século. Onde me couber, vou. Vou além de minha relação direta com ele. Como artista também dou um salto na colonização e vou antes do tempo disso tudo. Acredito e sinto que em determinado momento posso estar em um tempo anterior, em um tempo de nossas diversidades pré-colonialistas.

Aos leitores é requerido um vácuo total interior, um nudar-se por dentro para ter espaço. Em uma grande concepção, é requerido um esvaziamento total de um ser para outro ser caber. O ser vem pleno e ele mesmo traz seu caber. O novo ser não fica portanto onde não lhe caiba pleno. Repito, não ando só, não falo só, não apareço só. Reitero, toda a visualidade que me comporta, todas as pistas já expostas do meu existir são meramente um passo para mais mistérios. Somos por nós mesmos o poço de todos os mistérios. Ressalto, não temos definição, viemos de um tempo contínuo, sem estacionar. Lembro, buscamos os sentidos mais abstratos, tratamos de outros tratos bem firmes nessa passagem. Reforço, tanto meu avô Makunaima quanto eu mesmo, parte direta dele, somos artistas da transformação.

Quando meu avô transforma algo em pedra ele não destrói. E Makunaima passa, na volta, vem transformando o que transformou na ida. Ele vem sempre em outra forma. Quando Makunaima ao caminhar na savana deu de cara com uma pedra grande, branca, não hesitou, parou diante da pedra e transformou-a em um touro. Makunaima tinha poderes e decisão para transformar a pedra em touro e assim o fez. Ao transformar a pedra em touro, o touro, ao ver Makunaima, lhe atacou. O touro atacou seu criador como a uma criatura. Makunaima lutou com o touro. A luta foi brava. Por fim o touro passou a conhecer Makunaima e passou a amá-lo como seu paralelo, como algo parte de si mesmo. Ele cria as coisas com suas decisões. Tudo o que ele vê, tudo que toca, passa a receber um outro tipo de ação, um outro tipo de energia, algo que desencadeia um mover em seu ser, no ser que foi tocado.

Makunaima como disse dispensa uma forma, um gênero, uma gênese. É um estado de energia que se cria e recria em si mesmo como uma bananeira que não precisa de par. São as cobranças mundanas de nossos humanos sentidos que nos exigem uma referência lógica. Eis que Makunaima experimenta uma forma de materialidade, de sonoridade, de sensitividade acessível aos seus descendentes, como uma ideia de gênero, por exemplo. Ele vem então em muitos estados transitórios, passa a aparecer além da oralidade, além do mito. Desce de seu estado supremo flechado por seu orgulho superado; quando enxerga-se além de seu orgulho e depois de todo o seu sofrer essencial. Ele rompe todos os limites, subverte todos os conselhos, deixa beijada a mão do seu avô, o jabuti, e vai ao encontro do pai de todos nós, o universo.

Do universo Makunaima vê a Mãe Terra e, de lá, se entristece. Por lá Makunaima quer estar, mas a mãe lhe suplica e ele não suporta o clamor de sua mãe, e volta. Desce para encontrar sua família. Vai ao lugar de origem e vê as flores em botão. Uma dessas floradas darão grandes poetas. Eis que Makunaima vai, uma a uma, para conferir. Alegre está e ao passar perto de minha rede lhe puxo pelo dedo. Ele me vê. Seus olhos brilham e me absorvem. Fiz-me em meu avô, somos agora um só, de fato. Antes desse momento fotografia e dentro dela estamos eu e meu avô em constante movimento. Estamos em constante passagem e nossa origem comum é desconhecida para muitos, mas há o caminho vivo a que se quer chegar.

Entro em associação nesse texto como não podia ser diferente. Sou neto direto de Makunaima. É uma relação de família, algo íntimo e sagrado que só mesmo o respeito pode aproximar. Então, sou artista assim como meu avô; sou meio como o meu avô. Seguro no dedo do meu avô e vamos seguindo. Com o tempo vou crescendo e meu avô Makunaima vai diminuindo e vamos indo até ele virar criança e eu me tornar um velho e inverter a lógica da vida e da existência seguindo assim para sempre. Eis que tudo então é só o instante e logo já estará passando a outra coisa.

Essa é a nossa linguagem, um ato contínuo em si mesmo, a transformação. Lá, antes de vir o outro, a conjuntura era a conjuntura de lá. Uma origem em si mesma, um recurso próprio do grande ato, a criatividade. Surgimos com o tudo, do nada. Trouxemos a origem do mundo e foi para todos que surgimos. Surgir é uma palavra emprestada. Quando agora emprestamos tudo para desencantar. Desencantar é um estado transitório diretamente relacionado ao ato de destruir o que logo foi associado ao meu avô em sua grande jornada pelo mundo; a falta de caráter e o desdém por tudo.

Antes de um século apenas nós estamos no rastro dele, sempre. Estou aqui para resgatar meu avô, levá-lo pra casa pra cuidar dele. O ser que sou, eu mesmo, é homem, um guerreiro pleno de 1,68 metros, 82 kg, 39 anos. É livre como deve ser. É livre como é meu avô Makunaima ao se lançar na capa do livro do Mário de Andrade. Ele se deixou ir; foi o que me disse em uma de nossas inúmeras conversas de avô e neto. Assim me diz ele:

“Meu filho eu me grudei na capa daquele livro. Dizem que fui raptado, que fui lesado, roubado, injustiçado, que fui traído, enganado. Dizem que fui besta. Não! Fui eu mesmo que quis ir na capa daquele livro. Fui eu que quis acompanhar aqueles homens. Fui eu que quis ir fazer a nossa história. Vi ali todas as chances para a nossa eternidade. Vi ali toda a chance possível para que um dia vocês pudessem estar aqui junto com todos. Agora vocês estão juntos com todos eles e somos de fato uma carência de unidade. Vi vocês no futuro. Vi e me lancei. Me lancei dormente, do transe da força da decisão, da cegueira de lucidez, do coração explodido da grande paixão. Estive na margem de todas as margens, cheguei onde nunca antes nenhum de nós esteve. Não estive lá por acaso. Fui posto lá para nos trazer até aqui”.

Foi o meu avô que contou tudo isso pra mim. Ele não tem segredo nenhum comigo e foi mesmo ele que mandou lhes falar. Foi mesmo ele que me autorizou a citá-lo, a reivindicá-lo, a cultivá-lo, vivê-lo, ressuscitá-lo.

Minha relação com meu avô Makunaima é muito forte por meio da arte e por meio do sangue. Sim, temos o mesmo sangue, a mesma astúcia, o mesmo caráter. Eis o grande artista Makunaima, o grande ser incompreendido. Eu mal nasci e fui alçado pelos pés com o pulo que meu avô deu para me alcançar.

Ele me disse:

– É você mesmo. É você que eu esperava para me acompanhar.

Então me mostrou o caminho. Mas eu era apenas uma criança e não sabia de fato o tamanho do meu avô, que logo me levou escanchado no ombro a cruzar os primeiros montes. Foi assim a minha introdução no mundo, meu avô foi me mostrando.

Só nesta vida já são mais de trinta anos de um caminhar diário em sua própria origem e trajetória. Meu avô me contou que provou a fruta proibida. Me contou que a fruta proibida nada mais é que a coragem. Me disse que o exemplo maior para nosso entendimento contemporâneo foi lançar-se na capa do livro. Quando Makunaima decide lançar-se na capa do livro sabia o que estava fazendo. Meu avô sempre sabia o que estava fazendo. Não tinha escolha, era sua vida a acontecer. Makunaima deu o grande salto, comeu inteira a fruta proibida. Quando Makunaima decide expor-se faz estremecer o universo, algo novo realmente surge, algo urge latente no universo. Nada mais seria como antes, a decisão estava tomada.

Quando, de outro tempo, Makunaima precisa expor evidências de suas decisões universais, nos conta sobre o corte da grande árvore Wazak’á. Sim, outro ato grandioso, determinante para a pan-origem de todos seus filhos; e é dele a decisão. Ele cortou a grande árvore para o existir de todos esses que se espalham na vastidão da verde floresta de hoje. Cortou a árvore para dar vida também aos habitantes da savana, aqui nesta parte do mundo. Havia fome, escassez, quando a natureza mostrou para Makunaima e seus irmãos as grandes árvores. Foi o Deus maior, que é a Natureza maior, que por meio da cutia mostrou a Makunaima a grande árvore de todas as frutas e sementes. Não, não era apenas uma, mas, simbolicamente, ficamos com a maior, a mais imponente, a primeira.

A árvore do bem, que ao tombar levou ao chão também a árvore dos mistérios, a árvore dos outros seres, a árvore proibida que ainda hoje existe o tronco ao lado da árvore da vida derrubada por Makunaima. A natureza deixa, portanto, Makunaima diante da grande árvore. Deixa ele lá com o pescoço virado para cima vendo e analisando se vai mesmo tomar a grande decisão. Makunaima está parado medindo seu existir. Com o machado na mão toca o tronco da árvore e recebe um choque. É um sinal para o corte. Ele teria a coragem. Makunaima dá os primeiros golpes e então seus irmãos convencidos do ato seguinte o ajudam na jornada. Depois de muito tempo a grande árvore vem ao chão e o mundo se recria, se re-transforma ainda mais.

O ato glorioso e transgressor de derrubar a árvore encantada é só mais um momento, mais uma decisão, uma atitude universal. É preciso fatiar o tempo para o mínimo entendimento. É preciso ouvir o silêncio-pensamento de Makunaima entre uma machadada e outra. Não era o mero ato de cortar; era por a vida em outra dimensão. Em todas as passagens que me conta meu avô sobre seu lançar-se sobre a vida é nesse sentido. O estar diante da possibilidade e o ato seguinte vêm com a grande decisão.

Quando Makunaima decide estar na capa do livro, sabia que a partir daquele momento sua vida ganharia outra dimensão. Sabia da grandiosidade do ato dessa representação de realidades ainda a vir a se extrapolar. Sabia da importância dos ícones na cultura que havia chegado. Sabia dos limites e da gana daquele povo. Sabia da sua missão e foi. Foi para o livro, foi para o cinema, foi sujeito e entregue para o mundo. Foi por saber, por lucidez, foi por querer. Sabia que estar na capa do livro era estar em um outro ambiente. Sabia que em um mundo carente de deuses e bondades sua imagem estaria sendo associada a algo ainda não vivido, mas bem conhecido. Sabia de tudo, sabia de todas as etapas sentidas até seu pleno fazer que é o agora.

O endeusamento de Makunaima lhe permite viver ainda mais as amarguras necessárias para o triunfo que virá. O herói sem nenhum caráter estava pronto para abrir os braços bem abertos ao mundo e receber sua chuva de flechas, suas estocadas contínuas e esse projetar nos indígenas por todo o existir. Nos preservou se entregando, se fazendo caça ao caçador. O surgimento, o encantamento, a máxima sucção e o abandono de meu avô como um inútil trapaceiro chega ao fim aparentemente. O martírio, algo de mártir é sentido na vida de Makunaima, é mais sabedoria e prazer absoluto de um outro tipo de amor; não por ele.

Makunaima é um ser pleno de coragem. Aparece humanizado. É tido como homem e em parte da aparição é visto como sem qualquer compromisso com a vida e com o amor. É mostrado seco, mal, do tipo perverso, detentor de péssimas qualidades, mesmo como um reforço à ideia de machismo e patriarcado. E foi exatamente o que aconteceu, ao estar alçado ao topo da visibilidade meu pequeno avô vai ao encontro do trovão, vai ao centro do fogo e chega mesmo a tomar chá com Deuses e Demônios. Makunaima foi ser sua jornada.

A máxima exposição de Makunaima reflete severamente para dentro da floresta a ideia leviana de um tipo curioso de monoteísmo. Vieram os ismos, o cristianismo especialmente. Reflexos de todos os tons de existência incidem em Makunaima que os recebe com contra-reflexos. Seria Makunaima o grande Deus, o maior e mais perverso, pois foi essa a tentativa imperativa de extrair-impondo por força tal identidade. Foi essa a proposta enviesada, que tanto se festejou, esse fracasso de sentimento que é a cara falida da cultura brasileira. Foi um fracasso humano, uma leitura mundana sem profundidade.

Em lugar nenhum pode caber o não tem alma para caber. Não tem substância para caber os dilúvios de Makunaima em mais uma vez desconstruir e construir. É função atual de Makunaima, em sua nova vida, desmentir. É papel de Makunaima pelo poder que lhe foi atribuído, devolver. Devolver as visões que sua aura, luz super poderosa, roubou por encantamento.

Meu avô vai devolver tudo; vai devolver o porquê de todas as histórias, a simplicidade da vida. Makunaima vai tirar de si os olhos penosos do mundo e direcionálos para a natureza. Makunaima se volta em guerreiro do inconformismo como unicamente é e vai mostrar aos donos de cada coisa a alma-espírito de cada coisa. Voltamos a entrar pelas mesmas portas abertas, as veias abertas no mundo dos desconhecidos. Mais curiosidade para chamar à memória, mais movimento para ir além. Mais um tempo para novos olhares. Mais política e tecnologia, mais magia e outros espetáculos.

Vivemos em estado de arte e assumimos isso. Viemos de outras estruturas para nos fazer cabíveis aqui nessa ideia de tempo. Os caminhos deixados por meu avô se abrem para outros passeios, tempos de outras festas. Onde ele foi posto em desuso é o nosso destino ir além mostrando novas frestas. Devo acompanhá-lo em seu revisitar, atravessar de volta de onde fui alcançado para reaprender. Ouvir a vida no caminhar de meu avô e traduzir, vivendo como ele quiser e o que ele quiser, na dimensão que me couber. Estaremos em tom de universo, cor de terra verde de floresta em arte em seu estado máximo de fluidez.

Todas as visões são transitórias e há mais de um em mim. Nunca haverá uma conclusão e minha passagem é tão temporária como essas aparentes demandas e suas urgências. Relembrar detalhes essenciais são fundamentais, portanto. O fato que saímos recentemente da plena oralidade, de um mundo mais de sentimento que de sentidos literais, pesa muito nessa equação. O fato de vivermos em estado de colonização permanente também tem seu fator obrigador a nos motivar a estar em uma além das coisas. Caminhamos abertos junto com os grandes temas do mundo, a fé, a educação, a cultura, o gênero. E também acreditamos por nossa natureza fortemente espiritual que nossa arte pode dar alcances. Alcances outros como a nós foi dado muito ou tão pouco tal qual seja ao menos compor ativamente a grande diversidade para sempre.