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Torquato: a obra é a própria biografia

Penso em um amigo querido e em um parceiro, Torquato Neto (1944-1972), a menos de mês do aniversário de sua morte em 10 de novembro. Torquato era uma pessoa com quem se podia ter interlocução forte. Ele – com seu jeito calmo – sabia ser receptivo ao trabalho dos outros. Como prova disto basta que se leiam os textos de sua coluna “Geleia Geral” (hoje reunidos em livro) no jornal “Última Hora”, Rio, onde ele sempre comentava, noticiava, dava força aos mais novos e ao que lhe parecia ser importante. Aquele espaço diário no jornal foi decisivo para muitos de nós (Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Helio Oiticica e tantos outros), e, francamente, não fosse aquele tipo de difusão bastante coisa na época talvez não tivesse ganho a mesma importância. Ele mantinha uma posição cultural muito sofisticada e exigente. “Geleia Geral” era um espaço disputado, porém, Torquato não favorecia uns para excluir outros. Retirou-se, mas foi um grande agregador de valores e expressões.

Com o passar do tempo, crescem, merecidamente, as contribuições para difusão e preservação da obra deste poeta (1944-1972); em antologias, estudos acadêmicos, sua obra se torna referência obrigatória sobre a arte e a cultura brasileira nos anos 1960/1970. Hoje, portanto, quase 43 anos depois de sua morte, o legado poético de Torquato Neto, nos textos em prosa, nas criações de Engenho de Dentro, letras e poemas, é estímulo para as novas gerações e parece-me irremovível o seu lugar na literatura brasileira, bem como na da mpb, ainda a ser bastante estudado, por sua radicalidade e por outros vieses.

Durante um bom período (e ás vezes com pertinência até hoje) a produção das letras de música foi considerada, por certos cânones literários, como manifestação poética de menor importância, ou seja:  “… poesia de letristas “. Entretanto, há muito – e isto se deve também a Torquato – chegou-se ao senso comum de que a poesia acontece onde quer que os poetas fortes (repito: fortes) decidam que ela deve acontecer – o que importa é sua qualidade estética e sua carga crítica. Foi-se o recalque do high and low. Vence a poesia de várias maneiras:  na página, com a música, lida em voz alta, em palcos, performances, muros etc. Exemplo notável disso é a obra de Vinicius de Moraes, que tanto se pode se apreciar nos livros por ele publicados, nas recentes antologias organizadas, e igualmente em suas canções.


Torquato e Vinícius, 1966, © Galeria Murilo Castro

Uma figura-chave para Torquato: Waly Salomão, que realizou, com Ana Duarte, a primeira recolha também póstuma dos escritos do autor de “Marginália II” no volume Os Últimos Dias de Paupéria, publicado em 1973, livro que não só o manteve vivo mas fez crescer sua reputação e presença nos anos de chumbo. Livro central. Waly, amigo de longa data, coeditou com ele também a revista Navilouca, publicada de 1975, póstuma no que toca à Torquato, seu idealizador em 1971, e custeada por André Midani, diretor da Polygram, a pedido de Caetano Veloso e, ao cabo, lançada por Salomão.

Infelizmente, a vida dos artistas pode também ser alvo de especulações duvidosas tais como nas pretensas biografias, que optam pela fabricação de fatos, expostos em rasos relatos “verossímeis” (a memória dos outros sobretudo é uma construção capciosa) e ou que se valem da “narração”, de modo impreciso, de aspectos baixos de uma existência, para alimentar o lado superficial de um público incauto e mal informado, abrindo mão da pesquisa relevante sobre o biografado, aquela que dá conta da relação entre sua vida e sua obra, surpreendendo, ao iluminar uma e outra. Ana Duarte, viúva de Torquato, me afirma, para esta nota: “não acredito em biografias pois nelas os fatos de uma vida serão sempre interpretações da escolha de quem os escreve e, portanto, não correspondem ao que seria a verdade”, que não se sabe e não se pode querer saber com exatidão, acrescento.

Por exemplo: em minha experiência estudando por 15 anos a obra de Helio Oiticica, jamais pensei em escrever sua biografia porque, ao ler seus arquivos e seus escritos, percebi que realmente o conceito de arte x vida foi com ele levado a extremos tais que nada deixou para ser contado. Oiticica é mesmo exemplo de uma vida de artista que uma vez a obra colocada à disposição do público, nada de “pessoal” resta para “biógrafos” contarem. O homem está contido na própria obra que permite toda sorte de interpretações. Funde-se homem e trabalho artístico. Enigma ou paradoxo do qual não se pode escapar. Torquato poderia se encaixar nesta hipótese, perfeitamente: sua vida e sua obra se confundiram, como ele mesmo registra em seus trabalhos. Torquato então prescinde de “biografias”. Mas não ainda de mais estudos sérios, como já se disse.

Por último, gostaria de mais reconhecer e recomendar o excelente trabalho realizado por Paulo Roberto Pires na edição em dois volumes da obra completa de Torquato Neto: volume 1, Do lado de dentro, e volume 2, com as crônicas, Geleia geral. Que mais se pode pedir em edições de total credibilidade?

Luciano Figueiredo é artista plástico e o principal curador da obra de Helio Oiticica; foi também o designer da revista Navilouca, entre outros trabalhos nessa área gráfica.

Marginália II
Torquato Neto

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

1968

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí. Em 1960, foi estudar em Salvador, onde conheceu artistas de vanguarda de diversas áreas. O trabalho como letrista e jornalista começou em 1965, quando já morava no Rio de Janeiro. Suas músicas logo seriam gravadas por Gilberto Gil (seu parceiro mais constante nas composições), Caetano Veloso, Gal Costa e Elis Regina, entre outros. Em 1966, Torquato foi o roteirista do espetáculo “Pois é”, que reuniu Gil, Maria Bethânia e Vinícius de Moraes no teatro Opinião, no Rio. Entre 1966 e 1967, trabalhou no setor de divulgação da gravadora Philips e no setor de propaganda da Editora Abril. Sua atividade mais importante no período, entretanto, era a coluna “Música popular”, que assinava no “Jornal dos Sports”, sendo que Torquato também colaborava com diversos veículos da imprensa alternativa. Em 1968, o tropicalismo explodiu como movimento, tendo Torquato como uma de suas molas-mestras – o disco coletivo Tropicália ou panis et circenses, daquele ano, não apenas conta com composições de Torquato como também o traz na foto da capa, ao lado de todos os envolvidos no projeto. Defensor do cinema marginal, chegou a trabalhar como ator, por exemplo, no papel principal de Nosferato no Brasil, de Ivan Cardoso, em 1971. No ano seguinte, rodou seu próprio filme, O terror da Vermelha. Em paralelo, criou a famosa coluna “Geleia Geral”, pequena e discreta revolução na imprensa da época, publicada no jornal Última Hora, Rio. No mesmo ano de 1972, Torquato se suicidou, na madrugada seguinte ao seu aniversário de 28 anos.

Obra poética e jornalística
[publicação póstuma]

Os Últimos Dias de Paupéria. (Organização Waly Salomão e Ana Maria Silva de Araújo Duarte), 1ª ed., Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, 1973; 2ª ed., (ampliada e revisada). Rio de Janeiro: Max Limonad, 1982.
Torquatália – do Lado de Dentro. vol.I – (Organização Paulo Roberto Pires). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
Torquatália: geléia geral.  vol.II – (Organização Paulo Roberto Pires). Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
Torquato Neto ou A carne seca é servida. (Organização Kenard Kruel), 3ª ed., Teresina/PI: Zodíaco, 2012, 704 p.
Juvenílias. [poesia escrita entre 17 -19 anos].. (Organização George Mendes e Paulo José Cunha). Teresina/PI: UPJ Produções, 2012, 162 p.
O fato e a coisa. [poemas inéditos escritos de 1962 a 1964, sob pseudônimo de Adriano Jorge].. (organização Paulo José Cunha e George Mendes), Teresina/PI: UPJ Produções, 2012, 106 p.

Antologias (participação)

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). 26 poetas Hoje. Editora Labor do Brasil, 1976.
BONVICINO, Régis; PALMER, Michel, ASCHER, Nelson (Editores). Nothing The Sun Could Not Explain; 20 Contemporary Brazilian Poets. Los Angeles: Sun & Moon Press, 1997, 312p.
MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
MORICONI, Ítalo (org.). Destino: poesia. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2010.
COHN, Sérgio (org.). Poesia.br..  Azougue Editorial, 2013.


 Sobre Luciano Figueiredo

Luciano Figueiredo. Fortaleza, Brasil, 1948. Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil Iniciou-se na pintura nos anos 1960 com Adam Firnekaes, pintor e musico da escola Bauhaus, Alemanha. Transitando por Salvador e Rio de Janeiro no período de sua formação participa com frequência de exposições coletivas e movimentos culturais. Afirmou-se como expoente no movimento da chamada contracultura no Brasil na década de 1970, através de realizações de cenografias para espetáculos de música, projetos gráficos, cinema e principalmente a sua participação na histórica revista “Navilouca”, editada por Torquato Neto e Waly Salomão, para a qual fez o projeto gráfico. Neste período sua produção é muito marcada pelas colaborações de caráter experimental e interdisciplinar. Residiu em Londres entre 1972 e 1978, realizando estudos de História da Arte e de Literatura Inglesa. Neste mesmo período, iniciou sua pesquisa utilizando-se de páginas impressas de jornal, seguindo o fluxo das experimentações com seus poemas visuais realizados com recortes de palavras, manchas de cor, majoritariamente utilizando os tablóides ingleses. Esta pesquisa o levou, a partir de 1975, à construções de objetos tridimensionais com colagens, malhas de arames, e relevos monocromáticos, representadas nas exposições que realizou em galerias de arte no Rio de Janeiro e São Paulo a partir de 1984.