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Um olhar portenho sobre Paulo Leminski

Nossa herança não vem de nenhum testamento.

René Char

Em 1963 Paulo Leminski leu em um jornal de sua cidade, Curitiba, sobre a realização de um encontro de poesia em Belo Horizonte. Tratava-se da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, organizada pelo grupo mineiro da revista Tendência e pelo de Poesia Concreta de São Paulo. Conta a história que Leminski deixou tudo e viajou para Belo Horizonte, de carona e sem dinheiro, para conhecer os poetas paulistas que admirava. Segundo Augusto de Campos, integrante do grupo de poesia concreta, Leminski apareceu no encontro como um “Rimbaud curitibano”. Nesta cena de 1963, repousam, ao menos, dois elementos que estão em tensão ou em contradição e que marcam a obra de Paulo Leminski: a emergência de um novo vitalismo, contido nesse corpo cansado devido à intensidade da viagem; e, em contraposição, a homenagem ao grupo paulista, que fazia da disciplina e controle da subjetividade, com a consequente supressão da ratio do corpo, condições indispensáveis para reproduzir literatura. Durante toda a década de 1960 e, posteriormente, na década de 1970, a poesia de Paulo Leminski trabalhou e foi trabalhada por esta tensão, com maior ou menor sorte. Um bom exemplo disso é a primeira publicação consagrada de Leminski na revista do grupo de poesia concreta Invenção. Nela, fica claro que é um poeta jovem dedicado ao estudo de idiomas, que já tinha organizado um grupo de poesia experimental em sua cidade e conduzido uma página chamada Vanguarda de um jornal do Paraná.

Em 1966, uma data que se pode situar depois de sua adesão ao concretismo e antes de sua fascinação com a massividade e sofisticação do tropicalismo, Leminski teve o que ele mesmo chama de “a ideia de sua vida” ou “sua única ideia”. Durante uma aula sobre as invasões holandesas no Brasil, recordando que nas tropas do príncipe Maurício de Nassau havia cartógrafos e cientistas, imaginou a possibilidade da presença de René Descartes entre eles. O símbolo do racionalismo europeu em terras tropicais. Aquela ideia foi inicialmente um conto e dois anos mais tarde se transformou no projeto de um trabalho que levaria sete anos. Catatau,como se chamava, foi publicado em dezembro de 1975.

Em suas cartas a Régis Bonvicino, Leminski manifestou seu propósito de ir além do tropicalismo e do concretismo. Para isso criou o conceito de “rigorosa espontaneidade”, pretendendo desta forma conjugar aquela tensão que já havia se manifestado em sua primeira aparição pública. Obscurecidos por uma reiteração crítica que não se deteve em dificultar nem seu significado nem sua aplicabilidade, impôs-se voltar a estes termos. Isso significa retirá-los definitivamente de quase toda a sua produção poética posterior a Catatau,pois as formas breves, o haiku,tinham o objetivo de conjugar o rigor na forma e a espontaneidade em uma tematização que confiou demais na capacidade de captar uma epifania, isto é, captar a experiência do mundo dispensando toda mediação. Aquela poesia de Leminski se revela hoje demasiadamente devedora do transcendentalismo beat daquele momento. Proponho, por outro lado, pensar na rigorosa espontaneidade como um procedimento que se vale da citação e da montagem da tamanha heterogeneidade na formação de Leminski e de um tempo histórico em que tradição e vanguarda deveriam ser reconsideradas.

É em Catatau,obra que ainda exige uma verdadeira edição crítica , que podemos rastrear com maior alegria esse intento. Nesse sentido, Bonvicino, numa nota à segunda edição das cartas, nos dá uma primeira aproximação ao indicar que Leminski trabalhou “entre prosa e poesia; entre estamentos da cultura, como erudito e popular; entre ‘áreas’ de conhecimento, como história e filosofia; entre informação e comunicação; entre legível e ilegível” . Da mesma forma, Romulo Valle Salvino, referindo-se a Catatau,mostra que “nada se pretende inteiro nele, talvez num reconhecimento da impossibilidade de dar conta de qualquer inteireza. As ideias de Descartes são quebradas, estilhaçadas e misturam-se a citações oriundas dos mais diferentes universos, reunindo história, literatura e filosofia…” . Descartes, Ovídio, Heródoto, Marx, e até personagens dos meios de comunicação daquela época circulam pela obra.

Desta maneira, uma primeira e provisória definição da “rigorosa espontaneidade” deve levar em conta o desprezo pela totalidade e uma política da citação e a montagem, cujo resultado mais fecundo foi a constituição de uma textualidade do entre-lugar, por utilizar um conceito de Silviano Santiago. O uso da citação em Leminski nos revela não tanto uma intenção de construir linhagens, mas de desmistificar uma suposta naturalidade da tradição. Não tanto uma erudição desenfreada, mas uma paciente estratégia destrutiva. A afirmação de Walter Benjamin com relação ao poder das citações é iluminadora “em minhas obras são como ladrões escondidos nas ruas, que assaltam o transeunte com armas e roubam suas convicções” . A montagem e a citação trabalham em oposição a uma tradição cultural que deixou de transmitir e interrompem, com sua aparição, o fluxo do presente. Como dizia Hannah Arendt , pensar é abrir uma brecha no tempo e ficar entre as forças do futuro e do passado, infinitas em sua origem, para que encontrem ali um ponto de convergência que permita a aparição de uma nova e terceira força, precisa em sua origem, mas infinita em sua extensão , o trabalho com o fragmento é o que permite fazer o possível para que Leminski abra e se mova nessa brecha.

Nas cartas que Leminski enviou a Bonvicino podemos presenciar a intensa relação que manteve com o movimento de poesia Concreta e que ele mesmo definiu com o conceito hegeliano de aufhebung ,que significa aniquilar e manter ao mesmo tempo. Este conceito dava ao manifesto a dificuldade crescente de pertencer a uma vanguarda, mas também de construir um projeto que se situava além dela. Na carta n. 8, por exemplo, afirmava: “somos os últimos concretistas e os primeiros não sei o que lá” . Instalado no vazio que deixava a crise no movimento de poesia concreta enquanto vanguarda e face à possibilidade de acesso global aos bens culturais – leia-se o passado como monumento que temos à nossa disposição a todo momento –, Leminski é arrojado numa época em que as certezas haviam evaporado. Deste modo, poderíamos definir aufhebung como a busca de um ponto de consistência que aniquile no concretismo aquilo que se fossilizou , mas que ao mesmo tempo lhe devolva uma inteligibilidade que permita restituí-lo na corrente do presente. Por isso, quando diz: “acho que estamos depois da literatura, não é preciso mais combatê-la, o que nós estamos fazendo já não é ela” , Leminski pretende capturar outra historicidade, um “tempo agora” que lhe permita transitar por fora da “história” da literatura.

Na carta n. 50 Leminski estabeleceu um objetivo que pôde cumprir apenas parcialmente. “Não quero uma forma pura: quero um híbrido, um mutante.” Catatau éum desses êxitos, as próprias cartas , onde está contido este projeto, é o outro. Enviadas entre 1976 e 1981, sua leitura nos permite expor uma hipótese: não encontraremos ali as protopoesias e os protoensaios que logo escreveria, mas, ao contrário, os verdadeiros resultados desta aufhebung que havia imaginado. Com efeito, o modo como foram construídas, o corte das frases, que as registra nos arredores da poesia enquanto as sabota desde o suporte epistolar e nos leva a perguntar: É uma carta a carta n. 10 intitulada “Epístola a Régis”?, constitui a estratégia do texto. Nelas se dissolvem as fronteiras entre a poesia, o ensaio e a confissão, entre a literatura e a vida, o público e o privado. Leminski consegue um texto que em sua inexplicabilidade faz tremer qualquer política tranquilizadora do gênero. Citações, frases, línguas, conformam aqui este entre-lugar e se transformam em enormes laboratórios, unidades de produção, cujos objetos híbridos ainda continuam funcionando no presente .

Certamente, há outro Leminski, bebedor, ícone de uma contracultura neutralizado pela indústria cultural. Este é o Leminski que nos deixou uma série de poemas ímpares, intenções frustradas devido a um projeto que, como vimos, se encontrava em outro lugar. Não há nada perpétuo ali. Mas semelhante afirmação, que pode soar como uma heresia, significa voltar a Catatau, a suas cartas e a seus ensaios. Se a verdadeira vanguarda é um esforço para restabelecer uma relação com o passado, devemos voltar a ler a seguinte reflexão de Leminski: “talvez não haja mais tempo para grandes e claros gestos inaugu­rais, como a poesia concreta foi, a antropofagia foi, a tropicália foi”. Apropriar-nos deste outro Leminski, o grande fagocitador de todas as tradições que carregou com a suspeita de que nenhuma era possível, é nossa tarefa pendente.

Notas

[1] Uma tradição daquilo que já fazia parte do modernismo e que ameaçava transformar-se num monumento do presente.

[2] Tal como ainda reivindica Décio Pignatari.

[3] Paulo Leminski e Régis Bonvicino, Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica, São Paulo, Editora 34, 1999, p. 9.

[4] Romulo Valle Salvino, Catatau: As meditações da incerteza,São Paulo, Educ, 2000, p. 54.

[5] Giorgio Agamben, “El angel melancólico”, Revista Pensamiento de los Confines,n. 8, Buenos Aires, 1o sem. 2000, p. 153.

[6] Cf. Hannah Arendt, Entre pasado y futuro,Barcelona, Península, 1996.

[7] Esta é, para Hannah Arendt, a metáfora perfeita para a atividade do pensamento.

[8] Cf. carta n. 2.

[9] Paulo Leminski e Régis Bonvicino, op. cit., p. 45.

[10] No movimento de destruição que queria operar sobre o concretismo, talvez como ponto central, podemos destacar o conceito de “a todo custo”. Leminski detectou rapidamente que por trás da fachada de novidade se esconde a ideia de progresso e que a mesma já fazia parte do mito, não da história.

[11] Paulo Leminski e Régis Bonvicino, op. cit.,p. 45.

[12] Ibidem, p.142.

[13] O livro publicado por Bonvicino propiciou uma troca de estatuto das mesmas e a partir desta operação podemos considerá-las parte da produção de Leminski. Nesse sentido, Júlio Castañon Guimarães afirma que “o fato é que essas cartas, pela própria publicação, já estão em um outro circuito, são textos submetidos a um preparo, saindo do espaço privado, entraram em um espaço público”. Em Paulo Leminski e Régis Bonvicino, “Cartas: Interseções”, Ibidem, p. 11.

[14] Também poderíamos ler as cartas como micromuseus das décadas anteriores e todos os “fragmentos” ali contidos como a “im-paciente” tarefa de um colecionador desesperado.

[15] E nesse sentido se converte em um digno “herdeiro” de Oswald e Mário de Andrade.


 Sobre Mario Cámara

Ensaísta argentino, residente em Buenos Aires, coeditor da revista Grumo.