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Se não fosse pelo coelho…

A 51ª Feira do Livro Infantil de Bolonha, que acontecerá entre os dias 24 e 27 de março na Itália, terá como país homenageado o Brasil. Ana Maria Machado, consagrada escritora e estudiosa da literatura infantojuvenil, estará presente no evento, apoiada pela Academia Brasileira de Letras.

Ana Maria Machado é autora de alguns “clássicos” da literatura infantil, livros que não faltam nas bibliotecas das escolas e que se tornaram leitura obrigatória para os pequenos leitores. Gostaria de fazer aqui uma rápida reflexão sobre um desses “clássicos”, valorizado por tratar do tema da diversidade racial.

história 140Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, parece ser, a princípio, um livro inocente e politicamente correto que trata da questão racial apresentando uma protagonista negra, cuja cor de pele é objeto de desejo de um coelho branco. Por trás dessa trama superficial, existe, no entanto, um conteúdo controverso.

É interessante pensar, por exemplo, que, se não fosse pela companhia do coelho e da sua mãe, a menininha seria uma criança solitária. Pergunto-me: por que o vizinho ou a vizinha não vêm brincar com ela? Por que somente o coelho a procura? Ou ela moraria cercada de animais apenas? Trata-se, pode dizer o leitor, de uma ficção que toma rumos nem sempre realistas e, nesse caso, o animal poderia ser visto como uma espécie de simbolização do próprio homem. Mas é de se questionar a falta de contato da menina com seres humanos.

Outro fato que chama a atenção no livro é o da necessidade de complementar o substantivo princesa, fazendo-o vir acompanhado da explicação “das Terras da África”, como se não pudesse existir uma princesa negra em outro lugar que não fosse na África. Uma negra poderia se tornar princesa de qualquer continente, desde que ela se casasse com um príncipe…

O certo é que, se não fosse pelo coelho, que pergunta incessantemente à menina o porquê de ela ser daquela cor, ela jamais pararia para refletir sobre isso e sobre a sua raça, como se ela convivesse apenas com negros ou com animais e não percebesse que o mundo está repleto de gente das mais diferentes cores. Pode-se pressupor também que a mãe nunca tenha falado com ela sobre o tema.

Se o coelho de Ana Maria Machado é pensante, a menina não pensa tanto assim: como ela pode supor que é negra porque caiu numa tinta preta quando pequena? Será que ela não percebe que, se fosse esse o caso, a sua mãe também deveria ter caído na mesma tinta ou numa tinta mais clara, já que é mulata? É como se a menininha não olhasse ao redor, não refletisse sobre o mundo. Aliás, é essa a ideia, parece-me, que adultos ingênuos têm do mundo infantil.

Por falar em adulto, é a mãe da menina que explica ao coelho a origem da cor da sua filha. Diz ela: “—Artes de uma avó preta que ela tinha …”. E o pai da menina?, pergunto-me. A figura paterna não é importante? Ou falar dela geraria questionamentos sobre sexo entre os humanos e sobre de onde vêm os bebês? Falo entre os humanos, porque o coelho, “que era bobinho, mas nem tanto”, sabia que para ter uma filha pretinha, “tinha que procurar uma coelha preta para casar”.

Aliás, será que a menina não conhecia o pai? Será que teria sido abandonada ainda bebê pelo pai? Poderia também ter sido adotada, o que daria um bom tema…

Mas o coelho, por sorte, cumpre bem o seu papel na história, casa-se com uma bela coelha negra e tem filhos miscigenados, que, vivendo numa democracia racial, vão poder conhecer desde cedo a história da origem de sua cor.

Não quero determinar, com esta breve reflexão, esse ou aquele olhar sobre o livro, muito menos sugerir qualquer tipo de censura a ele, mas apenas pretendo apontar para questões que poderão surgir de uma leitura mais atenta ou de um olhar mais curioso, como costuma ser o das crianças.


 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).