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China: mítico reino do Cataio de Bento de Góis

A primeira vez em que entrei na China, em novembro de 1988, foi pela sua mais emblemática fronteira, limitando-me a seguir a rota das caravanas dos mercadores que outrora demandavam o Cataio em busca da seda e outras raridades orientais, tendo como destino final o grande oásis do Turquestão chinês, oficialmente conhecido pelo nome de Xinjiang.

Do alto do Kunjarab – o limite fronteiriço entre a China e o Paquistão, situado a 4500 metros de altitude – a paisagem que se oferece ao viajante é, no mínimo, deslumbrante. E mais deslumbrante se torna quando nos inteiramos do árduo caminho que percorremos para aí chegar. Um caminho cavado na dura rocha das montanhas em forma de agulha da cordilheira do Hindu Kush, que, devido à sua natureza geológica, dá a impressão de encerrar os povos que habitam nos vales apertados que caracterizam as pitorescas regiões de Hunza e de Gilgit.

Entre os dois postos fronteiriços, numa área de quase uma centena de quilômetros, reina a terra de ninguém: uma reserva natural onde sobrevivem ainda um ou outro leopardo das neves e algumas ovelhas argali, prosaicamente conhecidas como ovelhas de Marco Polo.

Mas não eram as histórias do veneziano que me incendiavam os pensamentos, antes os relatos do bem menos conhecido aventureiro português Bento de Góis, pioneiro numa região, entre o Afeganistão e o norte do Paquistão, onde eu tinha passado os últimos meses, numa altura em que conselheiros militares norte-americanos preparavam e armavam até aos dentes centenas e centenas de mujahidin que anos mais tarde se transformariam em fanáticos talibãs; isto depois de uma longa e “obrigatória” época iniciática na Índia, como era tradição entre os viajantes que se envolviam nessas coisas dos mistérios asiáticos.

O leigo jesuíta açoriano Bento de Góis, pouco divulgado viajante da centúria de Seiscentos, devido à sua energia, tato diplomático e domínio dos idiomas locais, foi o escolhido para a árdua missão de partir da Índia, no ano de 1603, em busca desse tal mítico reino do Cataio, onde se acreditava existirem cristandades perdidas. A extraordinária jornada que o levou do Punjab à Grande Muralha, atravessando os píncaros do Hindu Kush e visitando diversos e obscuros reinos e emirados da Ásia Central, foi reconstituída pelo jesuíta Matteo Ricci, que naquela altura dirigia a missão em Pequim, com base em fragmentos de apontamentos redigidos por Góis e com o auxílio da memória do seu companheiro de viagem, o armênio Isaac. O relato, porém, à semelhança de tantos outros relatos de viagens de ilustres portugueses, ficaria inédito até 1911.

Também o padre Fernão Guerreiro, cronista dos feitos dos abnegados religiosos de antanho, o incluiria na sua Relação Anual das Coisas que Fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas suas Missões (1603-1611), com o importante acréscimo de duas cartas redigidas pelo punho de Góis. A respeito da imensa lacuna que ficou por preencher, Henri Bernard afirma na sua obra Le Frère Bento De Goes chez les Musulmans de la Haute Asie (1603-1607): “De acordo com os maiores historiadores, se o diário de Bento de Góis se tivesse conservado intacto, seria provavelmente a relação mais importante do ponto de vista geográfico das regiões que ele atravessou”.

Associado ao mito do Cataio, havia outro que, frequentemente, se confundia com este, o mito do Preste João, que com o tempo se foi deslocando – do longínquo Extremo Oriente para a Índia, a Pérsia ou a Abissínia dos cristãos coptas que os portugueses contactaram, ainda no século XV, na pessoa de Pêro da Covilhã, por exemplo – e que surgiu na sequência de uma carta alegadamente recebida pelo Papa e pelos imperadores de Bizâncio e do Sacro Império Romano Germânico, subscrita por um poderoso príncipe (o Preste João), que governava uma espécie de paraíso terrestre onde os diferentes cargos eram exercidos por distintos senhores. Segundo essa misteriosa missiva, o príncipe “tinha por mordomo um primaz, por copeiro um arcebispo, por camareiro um bispo, por marechal um arquimandrita, por chefe de cozinha um abade”, e por aí adiante.

Durante séculos, encontrar a localização exata deste reino, que, no entender da cristandade, constituiria um poderoso aliado na luta contra o Islão, foi uma preocupação constante. Dir-se-ia, mesmo, uma obsessão. Com esse intuito, nos séculos XIII e XIV, partiram para o Oriente os frades franciscanos João de Carpine, Guilherme de Rubruk, João de Montecorvino, Odorico de Perdenone e João de Marignolli, que trouxeram com eles preciosas informações, entre as quais a existência da terra do Cataio que as viagens de Marco Polo associariam ao reino do Preste João. Curiosamente, nesse afã coletivo pouca importância foi dada às comunidades de nestorianos encontradas em território chinês ao longo desse processo, talvez porque se tratasse de heréticos, seguidores da doutrina de Nestor, antigo arcebispo de Constantinopla, ostracizado por Roma.

A teimosia em encontrar o Cataio possui explicação plausível numa indefinição geográfica e num equívoco de caráter étnico. O termo Cataio tem a sua origem nas tribos manchus, os kitans, que durante dois séculos ocuparam a parte setentrional da China. A dúvida consistia em saber se essa “Terra dos kitans” se aplicava a toda a China ou a um só reino independente habitado por uma etnia peculiar. (Curiosamente, ainda hoje, para muitos dos povos da Ásia Central, os chineses são os kitais e a China é o Kitai). Bento de Góis tinha como missão esclarecer em definitivo essa questão.

Decorriam os últimos dias de novembro de 1988 e a fronteira, inaugurada uns meses antes, estava prestes a encerrar até ao próximo degelo. À minha volta espraiava-se um manto de neve que cobria um extenso planalto a perder de vista. Ao fundo, bem delineadas no céu de um azul profundo, avistavam-se as cadeias montanhosas de Kunlun e de Tian Shan, às quais os chineses chamam Montanhas Celestiais. À esquerda, o ondulante Pamir, com uma altitude média a rondar os 7500 metros, parecia espantosamente acessível. Dir-se-ia uma imensa duna coberta de branco imaculado. O pico Komunism, com o seu perfil característico, destacava-se mais ao longe, já no território de um Tajiquistão ainda soviético mas não por muito mais tempo. À direita, a cadeia do Hindu Kush, vinda do norte do Paquistão, usurpava os territórios disputados pela China e a Índia, esses dois sempiternos rivais.

Pelos colos das montanhas que rodeiam e fecham a China, a oeste, deambularam ao longo dos séculos sucessivas caravanas de mercadores e movimentaram-se as torres e os peões humanos de uma manhosa e imprudente partida de xadrez virtual conhecida como o Grande Jogo, sagazmente disputado entre a Rússia e a Inglaterra, águias imperiais que ambicionavam controlar esta zona tampão entre os respectivos domínios. Nas primeiras décadas do século XX, o Xinjiang parecia ter entrado, tal como o Tibete e o Afeganistão, nesse Grande Jogo. O fato de a sua situação geográfica favorecer a Rússia preocupava enormemente os ingleses que, acantonados numa Índia submissa, há muito comerciavam nesta região. Temiam que à presença de espiões russos se seguisse a anexação pelo grande império do Urso Branco, pois assim era representada a Rússia czarista. Tais planos de anexação, tivessem ou não razão de ser, seriam travados pela desastrosa guerra russo-japonesa de 1904-05, pela revolução bolchevique de 1917, pela guerra civil e, mais tarde, pela invasão nazi da então União Soviética. No final de contas, foi a China quem ganhou o Grande Jogo, sem ter chegado a mexer uma peça sequer do seu tabuleiro.

Desde então, a presença de um grande número de tropas e material bélico justificava-se, pelo menos até à queda do muro de Berlim, como elemento persuasor, capaz de anular a “ameaça” da União Soviética – real ou imaginada – e para manter um olho vigilante nas aspirações autonomistas dos irrequietos uigures.

No final dos anos 80 do século passado, todas as tropas eram poucas para conter o descontentamento generalizado das minorias (não só uigures, mas também cazaques, quirguzes, tajiques) no que respeita à presença chinesa no Xinjiang. Apesar da instabilidade, a sempre tão falada Rota da Seda tinha ressurgido, com redobrado fôlego. Já não com camelos e cavalos, mas com camionetas, camiões e jipes todo-o-terreno. A hercúlea construção da estrada de Karakurom, que obrigou a rasgar cordilheiras e custou a vida a dezenas de trabalhadores, selou um acordo de amizade entre a China e o Paquistão que parecia estar para durar.

Já então, centenas de comerciantes paquistaneses – patanes, punjabis e baluchis – atravessavam mensalmente a fronteira rumo a Kashgar, lendária cidade da Ásia Central implantada num fértil oásis. Do Paquistão, para além do haxixe e da heroína que esses comerciantes levavam dissimulados na bagagem e nos múltiplos bolsos que comportam as largas shawal-kamiz que costumam vestir, pouco mais se transacionava. Dir-se-ia que eram viagens para ir fazer compras ao lado de lá. As autoridades chinesas eram muito comedidas na concessão de vistos aos seus cidadãos. Para o Paquistão passavam apenas os camionistas que levavam mercadoria à fronteira, e uns quantos idosos muçulmanos, selecionados a dedo cada ano, que cumpriam a peregrinação a Meca antes de morrerem.
Vestido de mercador armênio e “com o nome à maneira daquela nação, Abdula, que significa senhor”, o nosso Bento de Góis partiu de Lahore, no Punjab, onde estava sediada a corte do Grão Mogol, acompanhado por dois gregos: o padre Leo Griman e o comerciante Demétrio, que lhe foram recomendados pelo superior da missão jesuíta nessa cidade, o padre Jerónimo Xavier. Preciosas eram também as cartas de recomendação, os salvo-condutos e o auxílio monetário que lhe foram dispensados por Acbar, o poderoso e tolerante monarca mogol (mongol indianizado), junto do qual os religiosos portugueses sempre tiveram bom acolhimento e até alguns privilégios. Ao grupo inicial Góis acrescentaria um importante aliado, o armênio Isaac, “que tinha mulher e filhos nesta mesma corte”. Assim disfarçados deixaram a cidade, a 15 de fevereiro de 1603, “na altura da Quaresma”, integrados numa caravana que todos os anos partia “desta Corte com destino a outra de outro reino, chamado Cascar”, ou seja, Kashgar. Num mês chegaram à cidade de Attock, ainda na província de Lahore, e quinzes dias depois atingiram o rio Indo, “com a largura de um tiro de seta, que para comodidade dos mercadores, foi atravessado em navios”. Alertados para a presença de ladrões nas imediações, aguardaram junto à margem do Indo cinco dias e, depois, “em dois meses, chegaram a outra cidade chamada Pessaur (Peshawar), onde estiveram vinte dias, necessitados que estavam de descanso”.

No texto redigido por Matteo Ricci são escassos os dados referentes ao trajeto efetuado através do Hindu Kush e do Pamir, das mais dramáticas e inacessíveis regiões do planeta. Mas estão lá referenciados todos os lugares habitados e os pontos geográficos de relevo. Pena é que não tivessem chegado até nós as descrições detalhadas desses largos meses de viagem e de esperas, roubadas a um Góis já bastante doente, na parte final da sua viagem, que seria também a derradeira etapa da sua vida.

A pouca distância de Peshawar, a cáfila em que Bento de Góis seguia encontrou um desses ermitães peregrinos “a que chamam iogues, pelo qual souberam que a trinta dias de caminho dali estava uma cidade chamada Caferstan”. Estas linhas dão a entender que o nosso aventureiro não entrou propriamente nesse território, “onde não permitem que entre mouro nenhum, sob pena de morte”, habitado então por tribos pagãs ferozmente guerreiras, das quais são atualmente fiéis depositários os admiráveis kafir kalash, que povoam ainda três aldeias no vale de Chitral, na zona fronteiriça entre o Paquistão e o Afeganistão, e com quem partilhei muitos meses da minha vivência asiática, riquíssima e inesquecível experiência que não se insere no âmbito deste relato.

Bento de Góis afirma que no temido Caferstan “os mercadores gentios podem entrar na cidade, mas não nos templos” e menciona as vestes negras dos seus habitantes, a fertilidade da terra e a abundância de uvas. Ao provar o vinho da terra, “semelhante ao nosso”, Góis deduz que toda aquela região seria habitada por cristãos.

Depois de uma demorada estada em Cabul, o jesuíta seguiu em direção ao norte, e aí aumentaram as dificuldades. Bento refere um local onde os direitos eram cobrados pelo “rei de Bucarate” (Bucara) e fala-nos da dificuldade em passar por Teshkan (Tashkent), à época administrada simultaneamente pelos emirados afegãos de Bucara e de Samarcanda. Para além dos problemas com as esferas do poder, havia que contar ainda com os entraves geográficos – “porque é apertadíssimo o caminho, e não há passagem para mais que uma só pessoa, num altíssimo precipício sobre um rio” – e os assaltos dos ladrões, sem esquecer os imprevistos meteorológicos, “a força dos aguaceiros”, que os chegaram a deter durante “quinze dias em campo aberto”.

Em Serpanil (atual Sir-i-Pamir ou Grande Pamir), “dez dias adiante”, em lugar ermo e sem mantimentos, “subiram a um alto monte chamado Sacrithma, ao cimo do qual não puderam subir senão os que tinham cavalos fortes e valentes”. Vinte dias depois atingiram a província de Sarcol (atual Sirikol) onde encontraram várias aldeias, tendo daí iniciado a subida para um dos passos de montanha mais temerosos, “em cuja subida, por causa da muita neve de que estava coberto, morreram muitos homens”, e ao próprio Bento pouco faltou para acabar a vida, porque estiveram seis dias inteiros naquela neve.

Uma das curiosidades da jornada de Bento de Góis é a passagem por uma zona extremamente montanhosa chamada Calcia, que corresponde à atual região de Kachu, no norte do Afeganistão. Quando os viajantes chegaram a Talikhan, onde descansaram um mês, “foram atemorizados por um alvoroço civil, porque, por causa de uma rebelião dos povos de Calcia, se dizia que os caminhos não estavam seguros”. É salientado, no relato de Ricci, que “a gente desta terra tem o cabelo e barba ruivos, como os alemães e habitam em várias aldeias”. A caravana, que pretendia viajar de noite por sua conta e risco, recusando a proteção dos muros de Tashkent, acabaria por ser impedida de seguir viagem pelo governador daquela cidade que receava que os rebeldes, que não tinham cavalos, “se tomassem os daquela cáfila, com eles assolariam mais cruelmente a terra e causariam mais dano ao povo”.

É difícil perceber a que povo exatamente se refere o texto, mas optei por destacar estas passagens porque ainda hoje, numa aldeia do Xinjiang chinês, muito perto do Cazaquistão, existe uma comunidade de origem caucasiana com características físicas similares aos povos da Europa Central. Há quem diga que descende dos soldados de Alexandre, o Grande, que por aqui ficaram após as conquistas do general macedônio, controversa teoria que, de resto, se aplica a várias outras comunidades do Hindu Kush. Pensando bem, traços fisionômicos desses não são de espantar nesta latitude, já que existem povos de origem ariana do Cáucaso às cordilheiras do norte da Índia, que separam o subcontinente do planalto tibetano e estão na origem do bramanismo hindu.

Capítulo 2: A lendária cidade de Kashgar

Ao contactar com aquela terra árida habitada por gente de aparência agreste mas dócil no trato, vieram-me à mente estranhas recordações fundamentadas no mundo literário da minha adolescência, onde se fundiam os universos de Charles Dickens, Bertolt Brecht e, sobretudo, Panait Istrati, um novelista romeno que me tinha duplamente fascinado: por aquilo que escrevera e pelo modo como vivera. Ou seria porque, afinal, se limitara a escrever o que muito simplesmente tinha vivido? A verdade é que Panait Istrati não passava de um andarilho que, um dia, doente, à beira do desespero, se lembrou de contar as suas histórias ao humanista e escritor Romain Roland. A partir daí elas apareceriam nos jornais e divulgar-se-iam; os livros viriam a seguir.

A ambiência que me fora sugerida pela obra de Istrati surgiu logo no decorrer da viagem de dois dias que tive de fazer através do planalto até ao imenso deserto. Na estrada, a quase ausência de veículos motorizados (à exceção de alguns camiões de fabrico chinês e um ou outro jipe militar) era compensada pelas inúmeras carroças puxadas por jumentos e conduzidas por velhos de longas barbas brancas, ou então mulheres de ar espevitado com lenços floridos na cabeça e saias rodadas. Pastores montados a cavalo orientavam as manadas de iaques e de cabras enquanto grupos de crianças, livres como a poeira ao vento, celebravam a vida abrindo para nós sorrisos de ouro e acenando-nos com as mãozitas sujas. Preso num fascínio permanente, tinha a impressão de fazer parte do elenco de uma lendária longa-metragem projetada numa tela gigantesca. Era como se tivesse ficado para sempre cativo, incapaz de sair do enredo de um dos mais belos contos de Panait Istrati.

Toda essa pantanosa região pejada de inúmeros riachos tinha como nervo vital (e presumo que tenha ainda) a povoação de Tashkurgan, que significa “fortaleza de pedra” na língua local. Eis o imenso lar das marmotas, do raro leopardo das neves e dos tajiques e quirguizes, antigos adoradores de águias convertidos à pastorícia, sem abdicarem, contudo, da sua vida seminômada e da sua mais que óbvia diferença étnica e cultural.

Os tajiques têm aspecto caucasiano e estão filialmente ligados aos seus parentes da Ásia Central e aos wakhis, etnia que habita o norte do Paquistão e o oeste do Afeganistão. Os quirguizes, por seu lado, são descendentes de tribos nômadas de origem turcomongol que se estabeleceram na região há muitos anos.

Era frequente deparar com famílias inteiras deslocando-se em caravanas, acompanhadas pelos seus raros haveres: tendas, burros, cabras, cavalos e camelos vagarosos. Os habitantes desta região sempre tiveram, por razões de afinidade étnica e cultural, um relacionamento muito mais estreito com as repúblicas adjacentes da antiga União Soviética, e mesmo com o norte do Paquistão, do que com o resto da China. Por isso mesmo, ao longo dos séculos, a China imperial manteve um controlo cuidado sobre estas fronteiras e policiou fortemente toda a Rota da Seda, numa relação de permanente conflito com as tribos nômadas indígenas.

Kashgar, cidade em fervilhante atividade há mais de dois mil anos, voltara a abrir as portas para o mundo há menos de uma década. À semelhança das congêneres Samarcanda e Bucara, imortalizou o seu nome forjando-o à Rota da Seda que, durante séculos, ligou comercialmente a China, a Índia e o Mediterrâneo. Toda a Kashgaria – o nome histórico da região situada a oeste da bacia de Tarim – fora também um importante ponto de passagem para sucessivos exércitos invasores. Depressão com o impressionante comprimento de 1500 quilômetros, o Tarim abrange a maior parte do extremo oeste da China, e consiste quase inteiramente num deserto hostil, pontilhado com oásis, conhecido como Taklamakan, “o deserto do não retorno”.

Kashgar situa-se a 1300 metros acima do nível do mar, precisamente num desses oásis habitado por uigures, a etnia predominante e a mais numerosa das doze minorias que povoam o Xinjiang (recorde-se que na China existem 55 minorias), e que descende das tribos turcas que vivem nestas paragens desde o século XI. Ultrapassada a sua fase guerreira, transformaram-se, na sua maior parte, em agricultores e comerciantes, coabitando pacificamente com os uzebeques, seus primos diretos, e com os cazaques, nômadas de origem mongol conhecidos como cavaleiros de grande craveira. Vivem aí outras minorias, como os tártaros, os daurs, os mongóis e o que resta da tropa de Russos Brancos fugidos à revolução bolchevique de 1917.

Os chineses han constituíam ainda uma minoria, mas não por muito tempo, pois Pequim tencionava triplicar a população da remota província com a ajuda de um contingente de colonos vindos das regiões mais populosas da China. Com uma cajadada matava dois coelhos: atenuava os problemas de superpopulação a leste, e colonizava a oeste.

Embora o mandarim seja considerado, desde há muito, o idioma oficial da China, cada etnia tem os seus dialetos e idiomas próprios, assegurados por lei. No Xinjiang, para todos os efeitos, o uigur, também chamado turki, é a língua franca e escreve-se de novo no seu formato habitual, que é o alfabeto árabe, depois de durante muitos anos ter sido utilizado o sistema fonético latino. Essa medida imposta durante a Revolução Cultural (medida bastante impopular, note-se) visava, veja-se lá, a reduzir o analfabetismo.

À exceção dos chineses e dos raros russos, todas as outras etnias professam o islamismo suni, embora sem a devoção e o fanatismo presentes no vizinho Paquistão.

Entrei em Kashgar ao anoitecer e desde logo senti que iria ficar por ali algum tempo. De fato, não só aí permaneci todo esse seco e frio inverno, como voltaria a visitar de novo a cidade e a região em diversas ocasiões. No decorrer de uma década e meia, fui testemunha das imensas transformações entretanto acontecidas. Infelizmente, transformações para pior. O que mais me chocou foi a demolição sistemática dos edifícios públicos de traça neoclássica construídos na década de 1950 pelos soviéticos, e que as autoridades chinesas decidiram classificar de “obsoletos”, substituindo-os por horrorosos prédios de péssima qualidade que mais parecem casas de banho viradas ao contrário. Em nome dessa “higiene” urbana (um conceito altamente discutível) foi também demolido o bazar milenar da cidade, patrimônio único, testemunho vivo do comércio na Rota da Seda, e outras relíquias da arquitetura local, como seja os hotéis Seman e Qinibagh, onde funcionavam os antigos consulados britânico e russo. Foi precisamente no famigerado Qinibagh que fiquei alojado.

Fazia parte da última “carrada” de visitantes daquela temporada. Comigo tinham viajado alguns negociantes paquistaneses que, depois de uma breve estadia em Kashgar, seguiriam para Urumqi (capital do Xinjiang), Xian, Cantão e, finalmente, Hong Kong, com o inevitável saltinho a Macau (um ou dois dias), para tentar a sorte nas mesas dos cassinos locais. Essa era uma rota que veio a se popularizar ao longo dos últimos anos.
Naquela altura eram ainda poucos os ocidentais que se aventuravam por estas paragens. Fiquei acomodado num dormitório onde já se encontravam doze viajantes japoneses. Muitos deles visitavam o Xinjiang porque um famoso documentário televisivo ilustrado por uma banda sonora composta por Kitaro, músico nipônico New Age, tinha popularizado aquela remota região, mas também haveria, porventura, quem o fizesse em busca do seu passado budista. Um passado inscrito nas ruínas das outrora prósperas cidades perdidas no deserto, nas caves budistas de Donhuang e nalguns hábitos bastante arreigados no povo uigur, como, por exemplo, rapar o cabelo como fazem os monges.

A imagem dos barbeiros na berma da rua ou nos mercados, de navalha em riste e bacia de alumínio com água quente ao alcance da mão, debruçados sobre as cabeças de velhos e crianças era comum no dia a dia da cidade.

Outro hábito budista preservado até hoje é o modo como os velhos uigures se sentam nas carpetes das casas de chá. É um sentar ajoelhado, tal como os japoneses o fazem sobre o tatami.

Com esse interessante e excêntrico grupo (alguns deles queriam atravessar parte do deserto numa carroça puxada por jumentos!) depressa criei laços de amizade, e por ali fiquei, em família, celebrando uma reedição da centenária amizade luso-nipônica numa terra com um nome sugestivo. Kashgar pressupõe imobilidade, final de jornada. No caso, um longo interregno.

O Natal desse ano teve ceia japonesa seguida de uns biscoitos de fabrico local e um muito adocicado Turfan Port Wine (versão local do nosso vinho do Porto), que serviu na perfeição de sobremesa. Qinibagh era o nosso lar, e Kashgar a cidade que nos tinha enfeitiçado.

Na proximidade de Turfan, situada num vale 160 metros abaixo do nível do mar conhecido como “Vale da Uvas”, produzem-se as melhores uvas da China, Bento de Góis permaneceu ali um mês. Como ele próprio indica, Turfan era então uma cidade fortificada.

“Em meados de outono, com as primeiras geadas, são arrancadas as primeiras videiras”, dizia-me a respeito dessa cidade Tahir Shariff, jovem uigur de olhos de um azul acinzentado, o primeiro amigo que fiz no Xinjiang. Tahir tinha aberto um restaurante que fez furor entre os visitantes de mochila às costas, mas não por muito tempo. As autoridades locais, receosas de perderem o controlo do negócio com os estrangeiros, consideraram-no um sério concorrente e arranjaram forma de lhe fechar o estabelecimento. Cansado dessas e de outras histórias, Tahir decidiu abalar, e tudo fez para o conseguir. Na última vez em que visitei Kashgar encontrei-o acompanhado da sua recente esposa francesa, a caminho de Pequim, para tratar da papelada que lhe permitisse concretizar o maior sonho da sua vida: sair da China. Como ele, saíam anualmente do país muitos uigures, sobretudo para a Turquia, um país cultural e etnicamente mais próximo. Lembrei-me então das restantes palavras de Tahir, ainda a respeito das uvas de Turfan, que agora me pareciam uma metáfora: “Arrancam-se apenas as primeiras videiras. O tronco mãe fica sempre no solo, devendo ser cuidadosamente coberto com terra, até à próxima primavera”.

Os primeiros passos na labiríntica Kashgar constituíram a entrada às cegas num mundo irreal com personalidade muito própria. Era como se o tempo deixasse de ter sentido, simplesmente não existisse. Sentia-me num vácuo, no interior de uma bola de cristal de um mago que teimosamente se recusava a quebrar o feitiço. E, na realidade, em muitos aspectos, Kashgar nada tinha mudado desde a época medieval.

O transporte citadino baseava-se essencialmente em carroças puxadas por cavalos – os táxis locais – devidamente numeradas. A cobri-las, um toldo multicolorido sob o qual os passageiros se sentavam numa bonita carpete estendida nas suas pranchas de madeira. A parte mais vistosa da geringonça era o seu “motor”, ou seja, cavalos enfeitados com bandeirolas e com uma tal profusão de sinetas que, ao trotarem pelas ruas, faziam-nas soar dando um ar de permanente festividade natalícia. Era como se o Pai Natal fosse aparecer ao dobrar da esquina a qualquer momento.

O tráfego motorizado limitava-se a uns quantos camiões de carga, camiões atafulhados de couves (com destino ao mercado ou aos aquartelamentos das tropas estacionadas nas imediações da cidade), tuk-tuks – pequenos tratores muito característicos na China – ou camionetas sem vidros e em muito mau estado. Os veículos mais vistosos – carros de fabrico soviético e toyotas pajeros japoneses – pertenciam, invariavelmente, à polícia ou ao exército.

Passados uns anos, esses românticos veículos deixariam as ruas de Kashgar, acusados de poluírem o macadame e as vielas de terra batida com os excrementos dos portentosos quadrúpedes que os puxavam. Paralelamente, o tráfego motorizado foi aumentando de ano para ano, traduzindo bem a prosperidade dos negociantes locais, resultante de um muito rendível comércio com os milhares de paquistaneses que passariam a chegar mensalmente a Kashgar.

A cidade fervilhava ainda com misteres antiquíssimos que nos transportavam de imediato para a atmosfera dos contos de Dickens e a dramatologia de Brecht. Refiro-me aos ferreiros batendo a chapa e a alpaca que decorava os baús dourados pousados na rua junto às respectivas oficinas; aos carpinteiros transformando troncos de bétula em utensílios de cozinha, berços de bebê e demais móveis; aos barbeiros; aos sapateiros; aos construtores de instrumentos musicais incrustando na madeira pedaços de corno e osso de iaque; aos cardadores de algodão que mais pareciam tocadores de berimbau; aos tintureiros; aos ourives; aos alfaiates; aos fabricantes de bonés esguichando água por entre os dentes para cima do tecido, de forma a mantê-lo liso; aos meliantes, boina puxada para cima da testa, cigarro ao canto da boca e ares de maus da fita, esperando a oportunidade; aos vendedores de fruta, pão e ovos cozidos, aninhados nos passeios; a uns certos cozinheiros rodeados de enormes e fumegantes panelas onde fervia o pulau, a xorpa, o sorquesh e o ruiman, pratos tradicionais da culinária uigur; ao exibicionismo ilusionista de outro tipo de cozinheiros preparando langmans, lamians e demais massas de trigo duro, à entrada dos restaurantes, pois foi aqui que nasceu o esparguete que viria a conquistar o mundo; aos especialistas das espetadinhas na brasa rodando-as no assador, envolvidos no seu tentador aroma; às crianças de bochechas rosadas empurrando o arco, atirando o pião ou saltando à corda; às mulheres roliças, com o dinheiro enfiado nas meias de vidro; aos jumentos de ar submisso; aos vendedores ambulantes que numa variedade de pregões atraíam os clientes indecisos: “kasdela mehaman! kasela!” (compre aqui, ó freguês); etcetera.

Kashgar, passados dois milênios, continuava a ser uma cidade-mercado de vanguarda onde as trocas e o comércio se efetuavam a toda hora e em qualquer lugar. Desde as grandes transações efetuadas nos mercados aos pequenos negócios ambulantes feitos à berma da estrada, passando por aqueles em que se chegava a acordo no pátio dos hotéis.

Kashgar era um desses locais contagiantes que convidavam à reincidência. Contrariando a máxima, “nunca voltes ao sítio onde foste feliz”, regressei a Kashgar, provavelmente, uma dezena de vezes.

E uma visita a Kashgar não era visita nem era nada se não incluísse uma passagem pelo Iekshenbe Bazaar, ou seja, o mercado de domingo. Talvez o mais extraordinário e buliçoso mercado de toda a Ásia. A ele acorria uma média de cem mil pessoas vindas do oásis vizinho. Logo de madrugada, os acessos à cidade ficavam pejados de intermináveis filas de carroças puxadas por mulas, grupos de camponeses a pé ou montados a cavalo, gente conduzindo manadas de vacas e ovelhas, em cima de bicicletas, nas traseiras de pequenos tratores. O sinal de passagem – Posh! Posh! (Abram alas!) – , exalado por centenas de pulmões, ficou-me nos ouvidos mesmo depois de o arraial ter terminado. Nas horas de ponta – a meio da manhã e ao fim da tarde – a aglomeração na rua de acesso ao mercado era tanta que se geravam dramáticos engarrafamentos de animais, gente e veículos, sem que nunca o ambiente deixasse de ser festivo.

Na primeira vez em que me vi em tal aperto, achei divertidíssimo e ri-me como um perdido. Quem não gostou nada da história foi a amiga chinesa de Hong Kong com quem eu estava. Pasmou com a minha atitude e disse-me o seguinte: “Não te rias, porque isto de multidões é um assunto muito sério”. Só viria a perceber o sentido das suas palavras quando, meses depois, me vi congestionado numa plataforma de estação ferroviária (já fora dos limites de Xinjiang, no interior da China), rodeado por milhares de almas com as quais não conseguia comunicar, uma palavra que fosse.

O Iekshenbe Bazaar era (e julgo que continua a ser) o verdadeiro ponto de encontro das gentes de Kashgar e arredores. Dividido em diferentes seções, a imensa feira oferecia opções para a mais exigente procura. Havia o mercado da madeira e o da roupa em segunda mão; o mercado dos frutos secos e o do açúcar cristalizado; o mercado do pão e o dos legumes; e também o dos tecidos, dos curtumes, dos gorros e das carpetes. E quando julgava que tudo estava visto, eis-me perante o mercado dos melões – montanhas de melões vendidos ao desbarato!

Atados junto a uma parede, já nos limites do bazar, uma dúzia de enormes camelos bacterianos eram a atração principal do mercado dos animais, reis de todo este elenco surrealista. Num terreno ao lado, podiam ser experimentados os cavalos que ali estavam à venda. Era vê-los, crianças e velhos, montados nesses magníficos animais, a galope por entre a multidão que se afastava sem entrar em pânico.

Eram estes os últimos a abandonar a feira, já quando o sol se punha por detrás das bétulas.

Kashgar era um paraíso para fotógrafos e para quem gostava de fazer compras. Porém, por mais insignificante que fosse o negócio, havia que regatear, pois o vendedor só respeitava o cliente que soubesse regatear. Essa era a lei. No leque dos objetos a adquirir, cinco eram “obrigatórios”: botas de couro, punhais, gorros de pelo de ovelha (comprar os de pelo de gato selvagem ou de leopardo das neves, também disponíveis, seria um ato de inconsciente participação indireta na aniquilação dessas espécies em vias de extinção), tapetes – de realçar os famosos tapetes de Hotan –, e, finalmente, instrumentos musicais, verdadeiras peças de arte, de braço longo e profusamente decoradas.

Não se pode falar de Kashgar sem mencionar o túmulo de Abakh Hoja, o melhor exemplo da arquitetura islâmica da região. Trata-se de um elegante mausoléu construído em meados do século XVI e destinado aos descendentes de um missionário muçulmano. No seu interior estão mais de setenta sepulturas, entre as quais a de Abakh Hoja, um aristocrata local tido como santo patrono da cidade.

Vinte quilômetros mais a norte situam-se as Caves dos Três Imortais, uma das raras reminiscências do florescimento budista nesta região; e trinta quilômetros a noroeste, as ruínas da cidade de Ha Noi, que remonta à dinastia Tang, e da qual resta apenas a estrutura de um pagode.

O coração da cidade, no entanto, residia na sua mesquita principal, a Id Kha, verdadeira caixinha de surpresas, onde tudo podia acontecer. Construído em 1442, este edifício forrado a azulejos amarelos é ainda uma das maiores mesquitas da China, com capacidade, se considerarmos o pátio e os jardins interiores, para oito mil pessoas. Durante a Revolução Cultural, de 1966 a 1976, sofreu grandes prejuízos, mas desde então foi diversas vezes restaurada, e é hoje, mais do que nunca, o ponto fulcral da vida religiosa e social dos uigures.

A chamada para a oração, a azan, era feita do alto dos minaretes através de um altifalante, cinco vezes ao dia, como é da tradição no Islão, e a esse apelo acorriam, ao longo do dia, milhares de fiéis.

Junto ao portão principal sentavam-se os patriarcas em amena cavaqueira, enfiados nos seus longos casacos e botas de couro de cano alto. Durante o verão, estes anciãos cobrem-se com leves vestes de algodão e seda com riscas coloridas, mas de inverno envergam casacos forrados a algodão, e nunca tapam o peito, faça o frio que fizer. Essa é uma regra de ouro e, quiçá, o segredo da sua longevidade.

Sempre que havia um funeral, as imediações enchiam-se de homens vestidos com samarras negras de faixa branca em volta da cintura e turbante em redor do gorro, já que para os uigures tanto o preto como o branco simbolizam o luto.

As mulheres também se deslocavam à Id Kha, todas as sextas-feiras, para abençoar o pão especialmente cozido nesse dia santificado. Algumas delas, oriundas de famílias mais conservadoras, envergavam a purdha, que, na versão local, é um longo véu de malha de cor castanha colocado na cabeça para ocultar o rosto. O seu número, porém, para desagrado dos mais fundamentalistas, decrescia de ano para ano. As mulheres do Xinjiang eram já emancipadas e gozavam de um estatuto privilegiado em relação às mulheres do restante mundo islâmico. Era vê-las passearem-se de bicicleta com a saia bem puxada para cima, ou então reparar no à vontade com que se comunicavam com os estrangeiros.

Por outro lado, tanto os kafires (assim são apelidados os descrentes que comem carne de porco; neste caso, os restantes chineses) como os crentes de outras religiões tinham livre acesso ao interior da mesquita. Os uigures continuam a ser os mais liberais dos muçulmanos. Vantagens, sem dúvida, do socialismo chinês.

Nas pequenas barracas de metal coladas aos muros laterais da mesquita vendia-se de tudo um pouco. Do lado direito, expunham-se bonés, boinas, ferragens, calçado e sacos de viagem. No lado oposto, as barraquinhas azuis ocultavam um conteúdo de respeito apenas conhecido dos velhinhos que as geriam, tentando vender à socapa (ou impingir) exemplares do Corão de todos os tamanhos e feitios, antiguidades, pergaminhos, livros raros e todo tipo de bricabraque. Esta região era bem conhecida pelos seus falsários que se esmeravam nas cópias que produziam, e cujo rigor era internacionalmente reconhecido.

Durante o Ramadão – período do ano em que os muçulmanos jejuam desde o sol nascente ao sol poente, geralmente entre abril e maio –, a praça servia de pista para uma dança ritual que os homens executavam de madrugada, durante horas a fio, até atingirem um estado de transe. O som estridente da suona e o ritmo endiabrado dos tambores marcavam o compasso, propagando-se por toda a cidade, mantendo-a desperta. Os instrumentos eram tocados por músicos sentados no alto do minarete, cujas silhuetas se recortavam contra um céu de lua crescente.

Façamos aqui um parêntese para evocarmos de novo o nosso Bento de Góis, que passou por Kashgar, em 1604, a caminho de Iarcanda, outra importante cidade na Rota da Seda. Escreve o padre Fernão Guerreiro (que coligiu alguns apontamentos deixados pelo açoriano) que os habitantes locais ficaram surpreendidos por “um homem de tanta inteligência” não partilhar da sua fé. Por seu lado, Góis manifestou espanto pela quantidade de mesquitas e não se esqueceu de salientar, precisamente, a santidade das sextas-feiras e o apelo à oração feito do alto dos minaretes, que ainda hoje se faz sem microfones, e, em certas ocasiões festivas, ao som de cornetas e tambores, como atrás ficou dito.

De modo similar são celebrados os casamentos, que acontecem sempre no final do outono. De madrugada ainda, uma pequena orquestra dirige-se à casa da noiva para animar os convivas que, ao longo de toda a manhã, aí se juntam para bebericar chá e saborear o pulau – arroz de cenoura comida à mão –, o pão com cebola e o delicioso melão. A refeição é breve e todos estão convidados. Conhecidos e desconhecidos, amigos e inimigos, muçulmanos ou não.

À tarde visita-se a casa do noivo, onde igual confraternização tem lugar, com a devida música, comida e bebida. Muito discretamente, num dos recônditos da casa, e só para a rapaziada mais chegada, é servido o tão cantado e semiproibido ak arak, a potente aguardente local.

Chegado o crepúsculo, os amigos do noivo partem com ele nas traseiras de um camião, fazendo soar cornetas e tambores pelas ruas da cidade, ao mesmo tempo que lhe gritam aos ouvidos insultos amigáveis. É a despedida de solteiro. Os restantes convidados seguem em jipes e numa camioneta alugada para o efeito. Quanto mais barulhenta e estridente, melhor é a festa.

A noiva aguarda em casa, acompanhada da sua família e do padre islâmico, o muhla, que efetua uma breve cerimônia assim que o noivo chega para levá-la consigo. Como é da tradição, a noiva deve chorar porque deixa a casa materna. Ou, pelo menos, deve simular que chora. Logo depois, o cortejo volta a palmilhar os cantos da cidade, de novo rumo à casa do noivo. No ar fica, por algum tempo ainda, o som estridente das suonas e o matraquear dos tambores.

A respeito da tradicional hospitalidade dos uigures, escreve Matteo Ricci que, durante a estada do açoriano em Kashgar, fora nomeado chefe da caravana dos mercadores, um nativo da terra chamado Haji Asiz, o qual “ao saber que o nosso irmão era homem prudente e bastante rico, convidou-o para um solene banquete em sua casa, onde, além dos serviços, não faltou música daquela gente”.

A faceta leiga da praça de Id Kha era ainda mais colorida que a sua faceta religiosa. Junto à entrada principal da mesquita aglomeravam-se constantes magotes, num verdadeiro fluxo de vida que descia ao terreiro, tudo dependendo das horas e do dia. Aos fins de semana, a presença dos habitantes vindos das aldeias oásis em redor dominava a cena, quebrando o habitual cenário dos vagabundos que permanentemente aí viviam, repartindo entre si a comida e as esmolas que recebiam dos viandantes. Todos os dias, a partir das cinco da tarde, o local servia de feira da ladra em miniatura. Ao dispor do comprador havia objetos tão díspares como bicicletas, armários ou fornos de ferro. Com alguma frequência também por lá apareciam saltimbancos, ilusionistas ou músicos de rua. Fizessem o que fizessem, tinham público garantido, curioso e sedento de novidade.

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A leste de Id Kha, por detrás de alguns armazéns do Estado, situava-se o mercado central da cidade: um labirinto poeirento de ferreiros, retalhistas, boticários, ourives, vendedores de peles, de facas (as facas de Yengensar, uma povoação situada a meia centena de quilômetros a sul de Kashgar, eram as mais reputadas); casas de chá (em Xinjiang, o ato de beber chá resume-se a uma simples tigela de chá barato acompanhado por pão; quando muito, acrescenta-se um torrão de açúcar cristalizado para adocicar, ou então umas nozes para acompanhar o pão), padarias sem conta, apresentando ao transeunte uma apetitosa variedade de pão, pequenos restaurantes onde os velhos se sentavam a beber chá e a fumar cigarros enrolados em papel de jornal ou pequenos cachimbos de pólen de marijuana, enquanto as mãos dedilhavam as cordas de aço de um rebab de pele curtida.

Destaco ainda as inúmeras vendas com uma variedade indescritível de chapéus, bonés e gorros: os atributos mais característicos de Kashgar.

Esta praça era um excelente posto de observação. Num dos lados havia um espaço aberto que, durante o dia, servia de parque de estacionamento aos jipes da polícia e a milhares de bicicletas, e, no extremo oposto, a um canto, sentados preguiçosamente ao sol, construtores de instrumentos expunham a sua obra ao olhar do possível comprador: rebabs, temburs, dabs e dotars, todos eles diferentes cordiformes de manufatura local.
Um pequeno jardim com uma torre de cimento com quatro relógios virados para os respectivos pontos cardeais, mas sempre fora de horas, dominava o centro da praça. Posicionados em seu redor, vários fotógrafos apelavam a quem quisesse imortalizar a sua imagem, tendo como pano de fundo a velhinha Id Kha, o ex-líbris da cidade; enquanto vendedores de frutos secos e doce de gula (preparado de pétalas de rosa utilizado com fins medicinais), aninhados ao lado da mercadoria, apregoavam sem cessar, como quem canta ao desafio.

Neste meu exercício de memória, seria um grave erro esquecer o bonacheirão Osman, o melhor fabricante de gelados de toda a Ásia. Para quem não saiba, foi em Kashgar que se confeccionaram os primeiros gelados de que há memória. Já se lambia a doçaria quando Marco Polo por aqui passou, levando com ele o segredo (e a patente). Pelo menos é o que contam as lendas. O mesmo se pode dizer do esparguete, da lasanha, do ravióli e de muita outra comida italiana, que de original nada tem.

O gelado, ou sorvete, como o queiram chamar, era manualmente confeccionado em Kashgar desde há séculos, da seguinte maneira: vertia-se o leite e o açúcar num pequeno barril rodeado de gelo, imediatamente misturados por uma batedeira acionada à manivela. O segredo do negócio estava nos enormes blocos de gelo trazidos das montanhas e guardados debaixo da terra, para assim ficarem protegidos do calor intenso do verão.

Embora nos possa parecer estranho, o mercado negro fazia parte integrante da economia local e a sua ilegalidade era um fato aceite. Ou seja, as autoridades limitavam-se a fazer vista grossa. Por todo lado avistavam-se os marney changer, como eles próprios se apelidavam, munidos de calculadoras, fazendo o negócio às claras. Quando o pretendiam fazer às escondidas, é porque a coisa não era de confiar. E truques, conheciam-nos eles de sobra. Alguns eram mesmo verdadeiros ilusionistas de cartilha. Sem cartola, mas com boné, pois uigur que se preza não dispensa tão importante acessório.

Ao cair da tarde chegavam cozinheiros com as respectivas cozinhas ambulantes e, num instante, a praça transformava-se num ruidoso mercado noturno alumiado com candeeiros petromax ou simples velas alimentadas a gordura de carneiro. Guerreavam-se os pregoeiros num imenso zunido e chamariz constante, nada faltando: arroz pulau, peixe do rio frito, frango e ovos cozidos, pastéis de carne e os sempre solicitados shish kebab, aquilo a que chamamos espetadinhas.

Junto a um amontoado de melões, hirtos como estacas, homens e adolescentes disponibilizavam, ao preço da chuva, apetitosas talhadas de melão, cortadas a olho e com o sumo ainda a escorrer pelo fio da faca afiada. “Ishke mao chen, adam!” (dois mao cada, ó pessoal), gritavam eles, e logo dentes apressados e bocas sôfregas, sem se fazerem rogadas, aceitavam a “oferta”.

Nos férteis e reputados oásis do Xinjiang cresce em abundância trigo, milho, algodão, leguminosas e frutas, entre as quais aquele que é talvez o melhor melão do mundo, o famoso hamigua, embora não lhe fiquem atrás, em doçura e qualidade, as uvas, os pêssegos, os alperces, as maçãs, as romãs, as melancias e os figos. Os uigures têm imenso orgulho na fruta que cultivam. Aliás, têm orgulho em tudo o que lhes pertence.

As vendedoras de ovos (a coloração a vermelho ou amarelo diferencia os cozidos dos crus) e das duas variedades de pão de trigo (nan e bolka) alumiavam bancas com velas e candeeiros. E, ocasionalmente, disponibilizavam cestos cheios de deliciosas pequenas broas de milho branco, as konak nan. Eram essas mesmas mulheres que todas as manhãs traziam para a praça o iogurte fresco em malgas de cerâmica, chegando algumas delas a ir vendê-las à entrada dos hotéis onde se alojavam os estrangeiros.

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Os mais sofisticados vendedores de frutos secos possuíam carroças adaptadas em cima das quais expunham, em compartimentos estanques, pevides de girassol (esta semente era consumida em grande quantidade por toda a China), pevides de abóbora, amendoins, favas fritas, passas de uva branca, nougado de nozes e sésamo; e posicionavam-se sobretudo em frente dos cinemas e teatros, sendo os primeiros a montar a banca e os últimos a desmontá-la.

Numa das minhas últimas deslocações ao Xinjiang, reparei que a difusão de vídeos indianos (introduzidos pelos comerciantes paquistaneses, tornaram-se rapidamente muito populares) tinha alterado o ambiente do mercado noturno, pelo menos no que se refere à quantidade de decibéis.

Capítulo 3: Visita ao oásis do Taklamakan

Numa das minhas incursões pelo interior da província de Xinjiang consegui uma boleia na camioneta de uma trupe de cantores, músicos e dançarinos residentes em Kashgar, que iam em digressão. Durante quinze dias acompanhei-os nesse seu périplo numa região que, na altura, estava interditada a todos os estrangeiros, sem exceção. Mas, passando umas vezes por tajique, outras por russo, outras ainda por elemento da companhia, consegui evitar o controlo das autoridades locais, e assim viajar mais ou menos despercebido.

Os espetáculos decorriam em velhos teatros com um charme muito próprio que, poucos anos depois, os bulldozers reduziriam a um monte de escombros, tendo sido erguidos em sua substituição caixotes de vários andares cobertos de ladrilhos brancos e vidros escuros. Nos anos que se seguiriam teria ocasião de testemunhar diversos atentados contra o patrimônio arquitetural, como seja a demolição de uma parte significativa do Hotel Qinibagh, onde fui agredido só porque tentava resgatar alguns dos livros da biblioteca que levavam em carros de mão para uma fogueira…

O fascínio que sentia pela cultura local levou-me a aprender algo do idioma uigur, mas não o suficiente para me comunicar razoavelmente. Não obstante, estabeleceu-se entre mim e a trupe um forte elo de amizade, sobretudo na pessoa de Abdul Imit, um dos solistas de tembur, um instrumento tradicional de cinco cordas, braço comprido e som metálico. Foi na dupla condição – de uigur e músico – que Imit conseguiu ultrapassar fronteiras, atuando em Tunes, Paris, Java e nalgumas cidades do Japão, o que fazia dele um dos raros cidadãos chineses comuns que cometera a proeza de viajar no estrangeiro. E não fora através de qualquer conhecimento nas esferas do Partido Comunista ou por sucesso econômico de mérito próprio. Apesar de jovem, Imit era já um virtuoso na arte de bem tocar esse instrumento tão determinante na execução das mokam, as sinfonias que retratam as tragédias e alegrias na história dos uigures.

“Todos os mokams reunidos perfazem mais de trinta horas de música”, dizia ele. Falava disso e de outros aspectos da cultura do seu povo, sempre que o visitava na sua modesta casa situada no complexo habitacional que rodeava a escola de música. Na China de então, os artistas – músicos, dançarinos, atores ou pintores – viviam sempre nas imediações dos locais de trabalho ou de estudo.

Abdul Imit prezava os costumes antigos que valem a pena guardar, nunca se esquecendo de apresentar ao visitante o jarro com a água morna, para que este lavasse as mãos antes de beber o chá e comer o pão de rosca ou o melão que lhe eram oferecidos, como manda a tradição. Vivia para o tembur e para o filho de cinco anos que transportava no selim da bicicleta sempre que ia ao mercado fazer as compras caseiras. Nas horas livres, interessavam-lhe os livros de História e Geografia, mas também os episódios sagrados do Corão. As ruidosas comezainas e bebedeiras dos amigos deixavam-no com um sorriso ao canto da boca e nos olhos semicerrados, como quem dizia, “já dei para esse peditório”.

Alheio a vedetismos, Imit dedicava-se com corpo e alma ao instrumento que elegera, costumando tocar o Bella Ciao e fazendo algumas incursões despretensiosas no universo musical ibérico. Foi com espanto que o ouvi tocar Abril em Portugal, com todo o sentimento de um guitarrista de fado, apesar de estar longe de saber que executava uma cantiga portuguesa.

No regresso de uma das visitas a casa de Abdul Imit, desta feita acompanhado pela japonesa Yasue Maeda, que só nesse dia conhecera devidamente, apesar de partilharmos dormitório no Qinibagh Hotel havia já uma semana, decidi explorar melhor o centro histórico. Depois de uma longa caminhada, sentamo-nos à entrada de uma das muitas mesquitas espalhadas pela cidade-labirinto, para descansarmos um pouco antes de regressarmos ao hotel.

Passava da uma da manhã. A lua, cheia como um balão, alumiava os becos e brincava com as casas de taipa e terra batida, projetando as suas sombras no chão térreo e nos muros altos.

De repente, um zelota de trazer por casa, embriagado como uma cuba, estancou na rua em frente e achou que devia embirrar conosco. Num súbito ataque de histeria começou aos gritos, dizendo que os estrangeiros – “esses tcheteliks de um raio”estavam a fazer indecências junto da mesquita.

Apesar da hora tardia, o chinfrim atraiu uma meia dúzia de noctívagos, fracas peças, por sinal. O fundamentalista – ele próprio em estado de pecado, pois estava a transgredir o sagrado mandamento do Islão: não bebarás bebidas alcoólicas! – apressou-se a contar-lhes a sua versão inventada. Pormenorizou e convenceu. Incapazes de nos comunicar devidamente na língua local, engolimos a difamação e fizemos tenção de regressar ao hotel, só que o bêbado nos impediu. Que não, senhor! Que devíamos ir com ele ao posto da polícia. E às palavras juntou gestos, puxando-me pela roupa com alguma violência. Surgiu então um homem de bicicleta, matulão quanto baste e com um aspecto menos mau. Mas qual quê! Também ele queria briga. Sem realmente querer saber o que se estava a passar, atirou a bicicleta ao chão, entrou de rompante no círculo que entretanto se formara e, com um valente sopapo, estendeu no chão o difamador.

Nós, claro, aproveitamos a confusão para dar à sola. Mas o bêbado, uma vez recomposto, correu na nossa peugada, aos gritos, como um possesso. Não havia alternativa. Perante tal insistência só havia uma coisa a fazer. Paramos e, prontos para o que desse e viesse, aguardamos… Trinta segundos depois, o homem veio de encontro ao meu pé certeiro que o rasteirou, fazendo-o estatelar-se no macadame como um espantalho desfeito. Mas logo um dos seus apoiantes saltou como uma mola da bicicleta e deu-me um murro na cabeça, o que me deixou zonzo. A este pequeno grupo de khomeinis prontos a linchar os infiéis, veio juntar-se o guarda-noturno da mesquita principal, brandindo um enorme bastão, disposto a estripar tudo e todos em nome da fé. A coisa estava feia… Salvou-nos um velhote que surgiu na hora H, também ele com um varapau, só que virado contra os arruaceiros. “Mas o que é que vocês estão a fazer”, gritava ele para o bando de desvairados. “Os estrangeiros são nossos hóspedes, e como tal devem ser tratados”, continuava o velho. Os outros, contrariados, calaram, mas não consentiram. O estatuto do ancião impunha o devido respeito, mas o melhor seria mesmo ir à polícia e tirar as teimas.

O oficial de serviço, um chinês han de olhar complacente, recebeu-nos com uma interrogação no olhar, como quem dizia: «o que fazem na rua a uma hora destas?». Complicações entre os residentes e os raros estrangeiros que cruzavam a cidade, era um caso insólito na sua carreira. Depois de ter ouvido a história e registado a queixa, mandou embora o zeloso muçulmano, satisfeito pela missão cumprida; quanto a nós pediu-nos que esperássemos um momento na esquadra, “caso o bêbado estivesse ainda pelas redondezas”, e depois, num tom quase paternal, aconselhou-nos a não andarmos pelas ruas da cidade até tão tarde.

Chegado a terras arbitradas pelo rei de Kashgar, e revelada a sua verdadeira identidade, também o nosso Bento de Góis, com a dupla desvantagem de ser forasteiro e homem religioso, foi posto à prova por diversas ocasiões.

Ricci conta que, um dia, estando o açoriano sentado a comer com “alguns mouros”, convidado por um deles, “entrou não sei quem, furioso, com um alfange na mão” e, encostando-lhe a arma ao peito mandou-lhe que invocasse o nome do profeta Maomé.

Mas esse foi a exceção numa maioria que sempre se mostrou hospitaleira e muito curiosa pela presença na sua terra de tão singular personagem. Prova disso é a reação imediata dos restantes convivas: “Defendiam-nos os que estavam presentes, e expulsaram de casa o louco. Isto mesmo de o quererem matar se invocasse o nome de Mafamede conta ter-lhe sucedido uma e muitas vezes, mas Deus livrou-o até ao fim da jornada”.

O caricato episódio de Kashgar recordou-me um outro ocorrido uns meses antes, em Peshawar, no Paquistão, quando me encontrava alojado no National Hotel, um desses locais com carisma onde as teias nunca chegam a montar arraiais apesar do correr dos anos. Foi construído, ainda no século XIX, no seio de Kissa Kani Bazar, o miolo comercial de Peshawar, capital da província paquistanesa da Frontier e quartel-general dos patanes, o mais poderoso, aguerrido e orgulhoso clã que algum dia pôs pé no Paquistão.

O National Hotel foi em tempos a catedral, o ponto de encontro dos aventureiros e hippies que faziam o caminho para a Índia, via Cabul, na ida década de 1970. A malfadada guerra do Afeganistão (a primeira delas) veio pôr fim a essa rota. Sem viajantes a ocuparem os seus quartos ou a apanharem o ar fresco ao cair da noite, deitados nas camas de corda montadas no terraço, o albergue definhou muito rapidamente, passando a acolher apenas os hóspedes da terra: gente que vinha em negócio à cidade, estudantes ou vendedores de rua que alugavam os quartos ao mês, artesãos que aproveitaram para montar ali a sua oficina. Resultado: muitos dos quartos do hotel passaram a funcionar como residência permanente.

Os estrangeiros acabariam por lá voltar, mas muito timidamente, até porque, entretanto, tinham aberto muitas outras hospedarias mais modernas e com melhor serviço.

Havia no National Hotel um pequeno quarto erguido no terraço ao jeito de águas-furtadas onde, ao cair da tarde, se podia observar o esvoaçar dos papagaios de papel, rodopiando à mistura com bandos de milhafres que, em voo picado, vinham apanhar os pedaços de carne que as pessoas lhes atiravam de cima dos terraços. Não havia melhor posto de observação.

Foi aí que voltei a encontrar o Carlos, um lisboeta ruivo, de mãe dinamarquesa, que ficara perdido pela Índia havia já muito tempo. Conhecera-o pela primeira vez há oito anos, na altura em que a guerra entre o Irão e o Iraque estava ao rubro.

Acompanhado pela minha namorada belga, tentava obter um visto de trânsito junto da embaixada iraniana, em Nova Deli, que me permitisse atravessar o reino do aiatolá. Ainda me lembro das palavras que Carlos me dirigiu na sala de espera, assim que nos reconhecemos como patrícios, devido aos nossos passaportes, ainda verdes da cor da esperança. “Olha, olha… um outro português”, exclamou. E depois, ao ver-me acompanhado por uma estrangeira, acrescentou: “Devias vendê-la aos mouros. Loura como ela é, ainda ganhavas uma pipa de massa”.

Nunca cheguei a perceber se o Carlos “cenourinha” tinha dito aquilo a sério ou a brincar. O certo é que ele era dos duros e agora estava ali de novo. Incrível! Resistira à passagem dos anos todo aquele tempo. Vinha ao Paquistão, pela primeira vez, porque necessitava de um novo visto indiano para voltar o mais rápido possível à sua querida Goa, onde se sentia como peixe na água, vendendo, para sobreviver, algum do haxixe que ia trazendo das montanhas do Himachal Pradesh. Queixava-se de que não podia sair à rua com a namorada, porque “os tarados dos paquistaneses não paravam de a apalpar”. Tive vontade de rir. Com certeza que se esquecera da sugestão que me dera há oito anos atrás, em Nova Deli.

Nesse dia houve eleições gerais e Benezir Bhutto perdeu em favor do latifundiário Nawaz Shariff. O matraquear das metralhadoras em comemoração impediu-me de dormir, numa noite em que o céu, mais estrelado que o costume, foi atravessado pelo tracejado das balas luminosas que se cruzavam como num fogo de artifício. Um hóspede paquistanês aconselhou-me a sair do terraço, onde estava a apreciar o espetáculo: “É perigoso. Por causa das balas perdidas”. De fato, tinha ouvido contar muitas histórias acerca das balas perdidas e de gente inocente que era atingida com projéteis vindos do céu, disparados desportivamente sabe-se lá por quem.

De manhãzinha, pouco depois de ter adormecido – quando as metralhadoras, finalmente, se calaram –, a terra tremeu. Durante alguns segundos, o National Hotel abanou bem abanado, houve alguma poeira, mas as paredes aguentaram-se. Passado o susto, ficaram as rachadelas para confirmar o sismo que acabara de ocorrer. Valor 6 na escala de Ritcher. Foi a legítima vingança da noite, cansada de tantas balas. Disseram-me mais tarde, enquanto comia o curd matinal na leitaria ao lado do hotel, que muitas das balas “comemorativas” tinham servido para eliminar alguns inimigos políticos indesejáveis. Em terra de patanes era assim. Quem quiser… que se armasse!

Carlos, desgostoso com “esta terra de malucos”, partiu no mesmo dia para a Índia, jurando nunca mais voltar. O National Hotel, esse, resistiu a mais uma ameaça dos tempos e presumo que continua a acolher os seus hóspedes habituais.

Capítulo 4: A morte de uma cidade

A partir da praça de Id Kha, a cidade velha espalhava-se em todas as direções, assemelhando-se a uma gigantesca teia de aranha num emaranhado de pequenas calçadas, vielas e becos sem saída. No centro, a omnipresente mesquita amarela era a aranha que esperava, paciente. Sabia que mais tarde ou mais cedo todos iriam ter com ela. E uma vez caído prisioneiro nas malhas desta cidade, era muito difícil voltar a sair.

Em Kashgar, aventurar-se em ruelas aconchegadas pelo bonito casario de adobe, tabique e taipa caiado a branco, protegido por grossas portas com batentes de ferro e varandas de madeira cuidadosamente trabalhada, era como percorrer a intimidade dum conto de as Mil e Uma Noites. Ao contrário da parte moderna – ocupada por edifícios públicos e com a face alterada a quase cem por cento –, a cidade velha, inteiramente habitada por uigures, mantinha a magia de urbe encantada. Durante o trabalho de restauro das suas casas, os uigures – cientes do facho que deviam transmitir às gerações vindouras – respeitavam quase religiosamente a essência da arquitetura tradicional.

Alguns vestígios da muralha da cidade, com mais de dez metros de altura, ainda ali estavam. Pelo menos há quinhentos anos, mas parecia não haver intenção oficial de os conservar por muito mais tempo.

Espalhadas pelas ruelas da cidade antiga existiam, pelo menos, dezenas de outras pequenas mesquitas – quase à média de uma por esquina –, verdadeiras miniaturas da Id Kha materna. Foi em frente de uma delas que, num dia enevoado, vi um jovem estudante desenhar um retângulo no chão e dentro dele uma meia-lua com uma estrela em frente, dizendo o seguinte, antes de rapidamente apagar o desenho que fizera: “Um dia, o Xinjiang será de novo livre e independente!”.

No solo poeirento do bairro de casario em terra batida, fora retratada, por breves instantes, a bandeira da República do Turquestão Oriental, estabelecida nesta cidade durante a guerra civil chinesa, em 1944, e à qual pôs termo, cinco anos depois, o Exército Popular de Libertação, vencedor do confronto que levou Mao Zedong ao poder. Já uma década antes, em 1933, com a ajuda dos soviéticos, uma República da China em gestação suprimira a fugaz República Turca e Islâmica do Turquestão Oriental, símbolo de um pan-islamismo emergente.

Ainda recentemente, no mês de março de 2009, enquanto Pequim concentrava as atenções no Tibete, centenas de pessoas saíram à rua em Khotan, outra das cidades oásis do Xinjiang, alegadamente para protestar contra medidas restritivas aplicadas ao uso do véu islâmico pelas mulheres, havendo quem tivesse aproveitado para exigir a independência da província. As autoridades chinesas atribuíram a responsabilidade a “maus elementos” que “exercem influência perniciosa na sociedade”, e logo foi apontado o dedo ao Hizb ut-Tahiri al-Islam, grupo radical que pugna por um estado islâmico à escala planetária.

Duas semanas antes, a polícia anunciara a descoberta de uma tentativa de transporte de materiais inflamáveis, num voo com destino a Pequim, por uma mulher uigur acompanhada por dois paquistaneses. Grupos uigures na diáspora, porém, consideraram essa notícia falsa, lembrando que, dias antes, os dirigentes chineses tinham acusado, “sem qualquer prova”, os monges tibetanos de estarem a preparar atentados bombistas.

Se bem que inspirados pelos acontecimentos no Tibete, essas manifestações no Xinjiang obedeceram a um descontentamento nacionalista já com longo historial, que se contrapõe a uma secular reivindicação histórica da China, baseada em períodos de ocupação nunca aceites pelas tribos nômadas locais. Um descontentamento que continuava a assumir contornos violentos.

No relato que deixou, Bento de Góis refere que os habitantes do Turquestão não comiam arroz nem legumes, tão só carne, “inclusivamente de cavalos, mulas e camelos”, lembrando a fama que têm “de viverem muito tempo, ultrapassando na sua velhice os cem anos”, mas ao mesmo tempo afirma que “os mouros desta parte que confina com a China são cobardes, e os chineses poderiam sujeitá-los com facilidade se cuidassem de conquistar nações estrangeiras”. Um comentário que, de algum modo, antecipa os acontecimentos históricos que viriam a acontecer séculos depois e que levariam a anexação daquele território pela China.

O Xinjiang é uma região rica em petróleo e gás natural, e é, em pleno Taklamakan, nas imediações do lago de Lop Nur, que os chineses conduzem todos os seus testes nucleares. É, por isso, considerada uma zona de enorme importância geoestratégica. A animosidade entre chineses e uigures é mais óbvia aqui do que no Tibete entre chineses e tibetanos, pois são ainda mais gritantes as diferenças que separam comunidades “obrigadas” a viver em conjunto. A religião surge como principal fator de clivagem.

Antes das vagas migratórias de colonos chineses de etnia han, processo iniciado nos anos 50, as minorias constituíam 80 por cento da população do Xinjiang, a “Nova Fronteira”, como a apelidaram os manchus. Hoje, a percentagem baixou para os 40 por cento e os uigures são agora uma minoria num território que é um terço da área total da China, com a população han a dominar a economia local e a estrutura do poder, se bem que, numa tentativa de equilibrar a balança, Hu Jintao, presidente da China e secretário-geral do Partido Comunista, tenha promovido dirigentes comunistas de etnia uigur (e também tibetana) a cargos no governo central.

Elementos han mais radicais não hesitam em afirmar que “os uigures não têm cultura” e que têm “péssimos hábitos”, acusando-os ainda de falta de honestidade, de serem arruaceiros e uns ingratos, por “ignorarem o desenvolvimento” que lhes trouxe a China. Mas a que preço chegou esse desenvolvimento?

Encontramos a resposta se recuarmos no tempo duas décadas, quando da implementação da política reformista de Deng Xiaoping. Em nome do progresso, descaracterizaram-se as cidades do Xinjiang, marcadas pelos seus edifícios públicos construídos nos anos 50 pelos soviéticos, pintados com cores garridas e decorados a gesso, que, num repente, foram considerados obsoletos e sistematicamente demolidos. Em nome da “higiene urbana”, foram arrasados – como atrás já ficou dito – muitos dos mercados tradicionais, palco de práticas ancestrais na Rota da Seda. O de Kashgar, por exemplo, tinha mais de dois mil anos.

Além do mercado, centenas de belos e coloridos edifícios neoclássicos, onde funcionavam hotéis, teatros, escolas e outras instituições públicas, foram literalmente arrasados para dar lugar a edifícios de construção duvidosa e avenidas largas que desvirtuaram o traçado arquitetônico tradicional das cidades. E tudo foi feito sem qualquer consulta à população diretamente afetada.

Resistiram os bairros uigures, mas não em todas as cidades. Urumqi, capital da província, por exemplo, não se diferencia em nada das restantes urbes chinesas.

As zonas rurais, na sua essência, escaparam também a essa “Revolução Cultural revisitada”, ocorrida em finais de anos 80 e ao longo da década de 90 do século passado. Aqui, pouco ou nada se faz sentir o fluxo migratório dos han, e assiste-se até a um crescimento demográfico que põe em risco os recursos locais, pois no campo não é aplicada a política de filho único imposta nos centros urbanos. O uso de drogas duras tem aumentado significativamente entre os mais jovens, assim como o número de casos de sida, sem que o governo local tome medidas conformes à gravidade do problema.

Ciente não só das inevitáveis transformações em curso como das futuras, prometi não mais voltar ao Xinjiang, pois estava bastante apegado à “minha” Kashgar e não admitia outra, por mais argumentos de modernidade que me pudessem tentar apresentar. A mudança era inevitável, e eu até estava preparado para ela, o que não estava à espera é que a coisa chegasse ao nível do extermínio.

Soube recentemente que Kashgar foi condenada a desaparecer pelo mesmo tipo de gente que há décadas tem vindo a destruir muito do patrimônio histórico de toda a China, em nome de uma sempre questionável modernidade. A decisão do governo central de demolir o centro histórico da capital cultural dos uigures – “o mais bem preservado exemplo de uma cidade islâmica da Ásia Central”, nas palavras do arquiteto e historiador George Michell, citado pelo The New York Times – gerou uma onda de protestos com repercussões internacionais.

Centenas de famílias foram de imediato deslocadas desse centro histórico, e, para evitar eventuais engulhos no processo, o canal televisivo regional transmitiu regularmente um apontamento de quinze minutos que nos mostrava radiantes bailarinos e músicos de um grupo folclórico uigur em plena atuação, enquanto, em voz off, se teciam loas aos benefícios da vida em blocos de apartamentos e largas avenidas. Chegaram a afirmar que nunca houvera “evento tão importante na cidade”.

Estratégia semelhante é utilizada quando grupos de jornalistas estrangeiros são convidados a ver e ouvir aquilo que as autoridades querem que vejam e ouçam. Conduzem-nos a uma aldeia modelo, para falarem com pessoas previamente contactadas e com um discurso previsível, e servem-lhes deliciosas fatias de melão e melancia, à sombra das latadas da vinha, enquanto artistas contratados na cidade animam o ambiente.

A respeito desta polêmica, Amin, um velho amigo uigur, que regularmente visita Macau, pois reside na vizinha cidade de Cantão, disse-me o seguinte: “Há vinte anos, usaram uma alegada ausência de higiene como motivo para a destruição de um mercado ancestral situado no coração de Kashgar; hoje, justificam uma barbárie ainda maior, pois toda cidade islâmica está em risco, com a ameaça da possível ocorrência de um sismo. Francamente! Podiam usar um argumento mais válido, já que este é um insulto à nossa inteligência. Se a cidade aguentou, incólume, dois mil anos, por que razão não há de aguentar outros tantos?”.

O discurso paternalista das autoridades chinesas corrobora as palavras de Amin. Argumentam que nenhum governo digno do seu bom nome se esquivaria a proteger os seus cidadãos de uma ameaça natural tão terrível como um sismo, sugerindo ainda que o povo uigur deveria estar eternamente grato aos han por estes lhe terem proporcionado os benefícios da civilização moderna. “Esquecem-se de dizer que a maioria dos edifícios que, em 2008, ruíram na província de Sichuan, sepultando milhares de pessoas, eram de construção recente, alegadamente novos”, ironizava, a propósito, Amin.

O plano de realojamento da população é gigantesco e prevê a mudança de sessenta e cinco mil famílias, cerca de 220 mil pessoas, para zonas residenciais construídas de raiz. A oferta de casas novas é tentadora e são muitos os uigures que apoiam a operação.

Tradicionalmente, a Kashgar das ruelas apertadas e labirínticas, ao estilo das medinas, ia sendo remodelada pelos próprios habitantes, à medida que conseguiam fundos para o fazer. Agora serão forçados a abandoná-la, recebendo até 200 yuans (23 euros) por metro quadrado, se o fizerem dentro de um prazo definido. Quem não aceitar estas condições será desalojado sem qualquer tipo de indenização.

Uma pequeníssima área da cidade será preservada, tendo em vista futuras visitas turísticas. Aconteceu exatamente o mesmo com os hutongs, os bairros tradicionais de Pequim, sacrificados em nome de uma moderna e asséptica anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2008. Apenas um desses bairros sobreviveu, para turista ver.

Prevê-se que os trabalhos de demolição – nos quais serão gastos 440 milhões de yuans – ocorram ao longo de três anos. Mas, na China, estas coisas passam-se muito mais depressa e tudo indica que em menos de um ano a Kashgar que durante séculos a tudo resistiu, mesmo às investidas das hordas mongóis lideradas por Gengis Khan, não passe de uma simples recordação.

Abrindo as hostilidades, uma reputada escola corânica foi o primeiro edifício a ser arrasado, apesar de estar classificada como monumento histórico. Datava do século XVI e nela terá estudado o poeta e escritor Mahumud Al Kashgari, referência maior da intelectualidade uigur.

Muitos acreditam que a principal razão deste plano de Pequim é destruir os símbolos da cultura local – e Kashgar, importante centro de saber islâmico, é certamente um dos mais importantes –, alterando, ao mesmo tempo, o espaço organizacional de um povo visceralmente distinto do povo han, para além de prevenir, no futuro, possíveis focos de rebelião.

“Ainda cheguei a acreditar que o governo não cometeria mais erros desses”, dizia Amin, a propósito dessa tal segunda Revolução Cultural, que, pelo visto, continua em curso.
Curiosamente, quem agora chama mais a atenção para o irremediável desaparecimento deste patrimônio único são os próprios chineses han. O Beijing Cultural Heritage Protection Center foi o primeiro a lançar um pungente apelo para tentar salvar a cidade de Kashgar, considerando-a bem mais relevante que os bairros tradicionais da capital ou até de Lhasa, a cidade santa do Tibete.

A este respeito, Amin, pessimista, comentava: “Se eles próprios não conseguiram salvar o patrimônio da sua cidade, duvido que consigam fazê-lo neste caso”. À semelhança dos muitos apaixonados por Kashgar, também este uigur achava estranho que uma cidade com tão grande importância histórica e arquitetônica não usufruísse já do estatuto de Patrimônio da Humanidade. Fazia todo o sentido, por isso, a pergunta que alguém começou a fazer circular na internet: “Será que a imediata integração de Kashgar na lista do Patrimônio da Humanidade poderá impedir a sua destruição?”. Também no ciberespaço, circulava uma petição que foi enviada a Cai Wu, o ministro da Cultura da República Popular da China, e que até a altura tinha recolhido pouco mais de uma centena de assinaturas.

Como se constata, mais do que a expressão de um movimento com aspirações autonomistas, a revolta dos uigures prende-se com o que classificam e consideram atitudes discriminatórias e ataque à sua identidade cultural e religiosa. Porém, a causa dos uigures (e quem diz uigures, diz cazaques, quirguizes, tajiques e outras etnias dessa imensa província, que engloba um sexto do território chinês) peca pela falta de mediatismo na arena mundial.

“Temos um problema, que nos reduz a visibilidade”, lamentava Amin. “Somos muçulmanos. E essa condição, sobretudo desde os atentados de Onze de Setembro, limita-nos a capacidade de cativarmos gente para a nossa causa junto da comunidade internacional.”

Na verdade, após o Onze de Setembro, a China não só não teve qualquer dificuldade em associar os nacionalistas uigures ao terrorismo internacional, como conseguiu que os Estados Unidos e a própria ONU classificassem de terrorista o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM), organização com pouca expressão no Xinjiang. E fizeram-no com base nas alegadas ligações da ETIM à Al-Qaeda, em cujos campos militares recebe recrutamento um número indeterminado de uigures, se bem que sejam mais uigures da diáspora do que propriamente habitantes do Xinjiang.

Mais do que uma hipotética comunhão de ideais com a Al-Qaeda – até porque os uigures perfilham o sufismo, antagônico ao salafismo preconizado por essa rede terrorista – são o desemprego, a repressão religiosa e a assimilação à cultura han os verdadeiros motivos que colocam os uigures no trilho da revolta.

O impedimento de jejuar durante o Ramadão e a proibição de acesso às mesquitas a jovens com menos de dezoito anos, assim como do uso de barba comprida e de lenços na cabeça a quem desempenhe cargos na função pública, são alguns exemplos apontados como atentatórios da identidade cultural dos uigures. Que também se queixam da escassa publicação de livros no seu idioma e do fato de a instrução escolar ser ministrada em mandarim.

Wuer Kaixi, um dos estudantes revoltosos de Tiananmen, uigur de nascimento, poderia ser um trunfo, não fosse o caso de o dissidente nunca ter demonstrado qualquer interesse por essa matéria. Antes pelo contrário. Exilado em Taiwan, Kaixi parece perfeitamente integrado na comunidade han e planeia até entrar na política ativa da ilha nacionalista. A integração é, aliás, o caminho seguido pelos uigures mais pragmáticos, que podemos encontrar por toda a China, envolvidos em diferentes tipos de negócio, lícitos ou não. Eles veem a integração na cultura dominante han como um caminho certo para o sucesso. Mas também há quem tenha aprendido a conviver pacificamente com os han, sem nunca abdicar das suas tradições. E esses constituem a esmagadora maioria da população no Xinjiang.

Não falta quem tente apresentar ao mundo o Xinjiang como “o outro Tibete da China”, só que os uigures não têm qualquer líder carismático nem as múltiplas organizações que os representam conseguem expressão que se veja a nível internacional. Também não existe uma individualidade com credenciais disposta a apoiar a sua causa, como acontece com a causa tibetana, que tem no ator Richard Gere, assumido lamaísta, um verdadeiro paladino. Como se não bastasse, e pelo fato de serem muçulmanos, os uigures vivem sob o espectro da “desconfiança” e do “medo do terrorismo”.

Mas esta é uma luta de cuja importância os uigures estão cada vez mais conscientes. Nas imagens difundidas pelas televisões vimos um grupo de mulheres de lenços coloridos na cabeça a fazerem um pacífico sit in de protesto em frente aos carros blindados da polícia. Certamente, ficará para a história a imagem de uma mulher idosa com muletas que avança, com dificuldade mas sem receio, fazendo-nos lembrar aquele anônimo de camisa branca e saco plástico na mão que, em 1989, fez parar uma coluna de tanques na Praça Celestial, transformada então num inferno.

O nacionalismo uigur está presente em dezenas de organizações espalhadas pelo mundo, umas optando por meios violentos, outras renunciando-os veementemente. Dentro das fronteiras, as atividades separatistas existem desde os anos 70 e traduzem-se em assassinatos de elementos da polícia e do exército, assaltos a bancos e atentados bombistas – atividades que se intensificaram após o desmembramento da União Soviética.

Em 1990, uma querela entre um uigur e um chinês, na localidade de Atso, provocou a morte do primeiro e deu origem a um motim. Chamados a intervir, os militares perseguiram os revoltosos até uma aldeia nas proximidades, acabando por cair numa cilada. O alto comando chinês não hesitou: enviou aviões para bombardear a aldeia. O líder da rebelião, Zahideen Yusuf, e outros cinquenta militantes foram mortos, enquanto os sobreviventes escapuliram-se para as montanhas onde, durante semanas, travaram uma luta de guerrilha com o exército, antes de passarem para o outro lado da fronteira. Quanto aos prisioneiros, foram transportados na caixa de camiões pelas ruas da cidade, exibidos publicamente, momentos antes de serem executados com um tiro na nuca, como era usual. Desde então, a China manteve o exército em alerta em todo o Xinjiang. Mas a atividade separatista se estenderia a todo o país. Em 1997, houve ataques à bomba num autocarro em Pequim e noutros lugares, fatos que a China teve o cuidado de ocultar. Adotaria, contudo, outra atitude quando, em 2000, combatentes talibãs arriscaram incursões no Xinjiang, a partir do Afeganistão. Foi então constituída, por iniciativa da China, a Organização para a Cooperação de Xangai (SCO), que junta este país aos seus vizinhos, com o duplo objetivo de combater os movimentos islâmicos radicais e fortalecer as relações comerciais, reforçando a vigilância nas fronteiras.

Após o Onze de Setembro, a China não hesitou em apresentar-se ao mundo como “vítima do terrorismo islâmico”, admitindo os ataques a que foi sujeita e divulgando uma lista pormenorizada dos incidentes.

A senda de atentados, entretanto, continuou. Em 2004, militantes uigures estiveram envolvidos numa explosão na província paquistanesa do Baluchistão, que vitimou três engenheiros chineses. No ano seguinte, dois bombistas suicidas mataram treze pessoas e feriram outras dezoito na fronteira com o Cazaquistão. Em janeiro de 2007, de novo em Atso, numa razia a um alegado campo de treino da ETMI, dezoito islamitas foram abatidos e um vasto arsenal de explosivos e armas foi desmantelado. Dele fazia parte um vídeo onde se apelava aos muçulmanos que “aproveitassem todas as oportunidades” para dar a conhecer ao mundo “o sofrimento do povo uigur”, classificando o território chinês como “campo para a guerra santa”. Pequim reagiu a tudo isto com mão de ferro, fazendo muitos prisioneiros e levando a cabo algumas execuções.

Capítulo 5: Entrada na China

Era minha intenção, depois de visitado o Xinjiang, regressar ao Paquistão, e, desta vez, iria acompanhado pela japonesa Yasue Maeda O problema é que já há vários dias voltavam da fronteira, com carimbos vermelhos de recusa nos passaportes, muitos dos colegas alojados no Qinibagh, que eram agora de diferentes nacionalidades: alemães, franceses, britânicos, enfim, o costume. Mas o finlandês Anno Pekka, um desses viajantes de sete costados, conseguira atravessar a fronteira, mesmo sabendo que as autoridades paquistanesas tinham passado a exigir visto obtido de antemão na embaixada, o que, no caso da China, obrigava a uma viagem de muitos milhares de quilômetros. A nova exigência apanhara de surpresa muita boa gente. Yasue, pelo sim pelo não, obtivera o seu visto na embaixada do “País dos Puros” (assim chamam ao Paquistão) em Pequim, mas eu, que viera do subcontinente há uns meses apenas, não estava preparado para tal. Mesmo assim, arrisquei.

No posto fronteiriço chinês ainda consegui iludir a mulher polícia, mostrando-lhes um visto paquistanês já usado, o que me permitiu entrar nesse longo troço de terra de ninguém. Vieram depois as dez horas de viagem, estrada a rasgar rocha, até Sost, o lado paquistanês. Quando chegamos era já noite, e eu estava otimista e confiava no laissez faire, laissez passer dos paquistaneses, mas infelizmente o oficial de serviço não esteve pelos ajustes e disse-me, de forma categórica: “Vai de volta para a China. E é já, amanhã de manhã”.

Dito e feito. Na manhã seguinte, vi-me de novo na terra de ninguém, arrastando comigo a pobre da Yasue, que não se importou de me acompanhar nessa minha primeira aventura pela China Profunda. Ia enfrentá-la num momento particularmente difícil, sem ser essa minha intenção, se bem que, para atenuar as agruras desse país que se abria ao mundo, sempre havia Macau, território que me suscitava muita curiosidade e que passou a ser meta provisória.

Para chegar a Urumqi, o ponto mais ocidental da extensíssima e complexa rede dos caminhos de ferro chineses, a única alternativa era o avião (muito dispendioso) ou, então, três dias de autocarro numa travessia do Taklamakan com paragens em nada aconselháveis hotéis de beira da estrada, erguidos nos oásis intermédios. A cozinha de um deles, no oásis de Acsu, retratava na perfeição a sordidez desse edifício ladrilhado, erguido no meio do nada como um fantasma de néon. Era aí que, juntamente com as seis dezenas de passageiros, iríamos dormir algumas horas, antes de retomar viagem, ainda de madrugada. O fumo das panelas envolvia os cozinheiros e as cabeças de porco alinhadas no pavimento com uma bruma que parecia chegar das entranhas da terra. Nem foi preciso fazer apresentações: o local tresandava a encrenca.

A um canto de uma sala ampla, com grossos cadeados na porta da entrada principal, onde comiam, esfaimados, personagens grotescas, havia uma pequena janela por onde as mãos apressadas dos nossos companheiros de viagem iam adquirindo os bilhetes que lhes davam direito a um catre num dormitório sujo e sobrelotado. Assim que a angustiada menina que estava por detrás do guiché viu a nossa cara de forasteiros, a parada subiu logo em flecha. De quatro saltou para quarenta yuans o preço da dormida, e sem direito a qualquer conforto extra.

Foi bem melhor recebido Bento de Góis no século XVII, que chegou a Acsu depois de atravessar a seção oeste do temido Taklamakan, em vinte dias apenas. De Iarcanda a Acsu, passando por lugares míticos como Talik, Kurma e Kaptar Kol, o leigo jesuíta seria solicitado pelo governador local, que “era um neto do rei, de doze anos”, a quem Góis presenteou com “alguns brinquedos, açúcar e outras coisas semelhantes”. Esse soberano recebeu-o bem, e como havia uma festa, pediu a Góis “que bailasse ao modo da sua terra”. O nosso aventureiro anuiu ao pedido, “para não parecer que lhe negava uma coisa tão pequena”.

O destemido português teve plena consciência de que a China e o Cataio eram uma mesma realidade logo na cidade de Cialis (a atual Korla, na província de Xinjiang), quando alguns mercadores vindos de leste lhe mostraram uma carta escrita em português, pois “tinham convivido com os nossos em Pequim, no Palácio dos Estrangeiros, e deram notícias seguras do padre Mateo e dos seus companheiros, com regozijo do nosso Bento de Góis, por haverem falado da China em vez do Cataio”. Contentes com a boa nova, Bento e o seu companheiro “dali em diante não tiveram dúvida alguma de que o Cataio só no nome se diferenciava da China, e de que a própria corte, que os mouros chamavam Cambalu, era Pequim”.

Infelizmente, Bento de Góis não conseguiu concluir a sua saga, tendo morrido, provavelmente envenenado, às portas da Grande Muralha, na cidade de Socheu (Soh-Chow), em 1607, onde estava retido havia já dois anos, doente e sem meios financeiros que lhe permitissem seguir viagem. E assim desapareceu o primeiro verdadeiro explorador europeu dos inóspitos reinos da Ásia Central, cujo nome continua a ser praticamente desconhecido.

Na estação rodoviária de Urumqi conhecemos três uigures que nos foram providenciais. Eram duas quarentonas, daquelas bem aviadas, de face rosada e língua afiada, lenço colorido enrolado em volta da cabeça, como há muitas em Xinjiang, e um homem de meia-idade, franzino, o obrigatório boné na cabeça e o bigode retorcido nas pontas, a realçar ainda mais o seu sorriso enigmático. Tinham uma loja de panos no bazar central de Urumqi, mas era em Cantão que o grande comércio se desenrolava, e, por isso, para aí viajavam com bastante frequência.

O trajeto entre estas duas cidades levava quatro dias e quatro noites de viagem num comboio cheio de histórias para contar. Quem não adquiria reserva de beliche com antecedência ficava sujeito às regras arbitrárias do mercado negro, que operava em frente das estações de todas as grandes cidades chinesas. É que viajar noventa e seis horas naquilo que os chineses denominam de “assento duro” era uma experiência a nunca mais repetir, a não ser que tivesse mesmo de ser.

Enquanto atravessávamos o corredor árido da província de Gansu, enfiando-nos nas entranhas do deserto de Gobi, onde repousam algures os restos mortais de Bento de Góis, um arraial colorido de vendedores ambulantes percorria as carruagens de lés a lés, apregoando frango frito, cerveja choca e amendoins. Por sua vez, o quase sempre mal-encarado empregado de limpeza, de vassoura em riste, levava todo o lixo pela frente com uma raiva avassaladora. Amontoava tudo sob a ameaça convincente da piaçá, abria a porta do comboio em andamento, e, ala que se faz tarde, tudo pela borda fora!

No interior, a atmosfera permanecia densa, graças ao esforço conjunto de centenas de fumadores inveterados que muito se orgulhavam disso. Para além de comer e fumar, a atividade favorita dos passageiros chineses era o jogo. Faziam-no com exagerada exuberância de gestos e exclamações. Cada vez que um deles perdia era obrigado a beber um copo de baiju, a típica aguardente de arroz. Como se pode imaginar, as bebedeiras eram inevitáveis e muitas das vezes acompanhadas de atos de violência pouco ortodoxos. Testemunhei o espancamento de um homem que, aproveitando a paragem numa estação, tentara roubar o casaco de um dos jogadores. Este e os seus comparsas não estiveram pelos ajustes: despejaram, simultaneamente, sobre o gatuno todo o ódio acumulado. Depois, insatisfeitos com a proeza, deitaram-no pela janela fora como se se tratasse de um saco de batatas.

Na carruagem, nós e os uigures éramos uma minoria no meio de uma maioria irrequieta e ensurdecedora. Depois de três dias e duas noites de viagem chegamos a Zengzhung, monstruosa teia urbana que só interessa como encruzilhada ferroviária. Aí se funde a linha vinda do oeste com a linha de Pequim, dois dos mais importantes veios ferroviários da China. Passava já da meia-noite e, no entanto, na estação e suas imediações a confusão era, como sempre, simplesmente dantesca.

Havia que apanhar outro comboio, que partia na manhã do dia seguinte. Se para o comum cidadão chinês, comprar um bilhete era um bico-de-obra, para o estrangeiro era um verdadeiro trabalho de Hércules. Mas o trio de uigures, desenrascados como manda a reputação, soubera desencantar cinco miraculosos bilhetinhos. Para eles e para os seus amigos, o Portugalia helik e a Iaponia helik.

Ganha a primeira batalha, faltava assegurar alojamento para essa noite, o que não era tarefa fácil já que a política oficial chinesa para com os estrangeiros resumia-se à seguinte frase: “Façam-nos gastar o máximo de dinheiro possível”. Era por isso que, entre muitas outras coisas, proibiam que nos alojássemos nas pensões mais baratas. E àquela hora, verdade seja dita, não havia muito por onde escolher. Mais uma vez, os uigures vieram em nosso socorro. Sob as suas asas maternais, as volumosas matronas fizeram-nos passar, sorrateiramente, para o interior do quarto de seis camas de uma hospedaria local, enquanto o homem registava e pagava alojamento para três pessoas.

Antes de adormecer ainda comemos pão de cebola, uvas-passas e fatias de melão, e o homem do bigode cantou, acompanhado do seu dotar – instrumento tradicional uigur de braço comprido e cordas de tripa de ovelha, decorado com corno de iaque. Este povo hospitaleiro do oásis, que não se cansa de afirmar a sua alma turca, é assim: afasta os maus presságios com risos e cantigas.

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 Sobre Joaquim Magalhães de Castro

É escritor e jornalista de viagens. Acabou de publicar o seu terceiro livro, O Mar das Especiarias, pela editora Presença.