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NOEL: CARNAVAL E INVENÇÃO

Noel de Medeiros Rosa, cantor, compositor, bandolinista e violonista. Nasceu num chalé da rua Teodoro Silva, em Vila Isabel (RJ), no dia 11 de dezembro de 1910 e lá morreu, em 4 de maio de 1937. Filho de Manoel Garcia de Medeiros Rosa, funcionário público, e de Martha de Medeiros Rosa, professora, que o iniciou nas primeiras letras, na escolinha que mantinha em sua própria casa.

Noel nasceu de um parto extremamente difícil, “arrancado” a fórceps, sofreu afundamento e fratura do maxilar, o que lhe causou uma paralisia parcial no lado direito do rosto, como conseqüência carregou o defeito no queixo, o qual acentuava nas suas autocaricaturas, ao mesmo tempo que se mantinha sempre tímido em público, evitando ser visto comendo. Sob o efeito da bebida e nas rodas de músicas descontraía-se, deixando vir à tona o seu humor inteligente e sarcástico.

Com a mãe aprendeu a tocar bandolim e com o pai violão, pelo qual troca o bandolim, evoluindo como autodidata. Desde cedo, mostrou interessar-se mais pela música do que pelos estudos. Com dezesseis anos já havia feito uma composição e tornara-se um bom violonista, freqüentando as reuniões do Bar dos Cem Réis, próximo à sua casa. Torna-se um assíduo participante das serenatas organizadas pelos amigos, ao mesmo tempo em que estabelece contato com os sambistas do Estácio de Sá e dos morros do Rio de Janeiro, atento à cadência e à forma de compor e cantar destes sambistas negros.

Ainda no “Colégio São Bento”, presta exames para o “Pedro II”, quando é beneficiado pelo decreto do presidente Getúlio Vargas, que assumira o governo pela Revolução de outubro de 1930, dispensando a avaliação e aprovando os alunos. Assim, Noel bacharelou-se, tornando-se apto para prestar exame para a escola de medicina. Mas o ano de 1930 lhe reservava, ainda, uma outra surpresa, que definiria a sua vida como artista profissional e o faria abandonar o curso de Medicina ainda no primeiro ano: o convite para integrar o Bando dos Tangarás, ao lado de Almirante, João de Barro (Braguinha), Alvinho e Henrique Britto. Começam as apresentações públicas de Noel e, aos poucos, o meio radiofônico e o público toma conhecimento daquele que, em menos de oito anos, construiu uma obra notável, não só pelo número de composições — mais de 250 –, mas, principalmente, por sua genialidade de músico e letrista. A importância de Noel Rosa para a cultura brasileira já era clara na época, como atestam as palavras de Orestes Barbosa, dezoito anos mais velho, para Nássara: “Sabe de uma coisa, Nássara? O sem-queixo é um gênio”.

Ao lado de Almirante e do Bando dos Tangarás, introduziu a “cozinha”, como a batucada com latas, feita na gravação da música “Lataria”, de Almirante e João de Barro; bem como dos instrumentos de percussão como pandeiro, reco-reco, cuíca, surdo e cuíca, entre outros, nas execuções dos conjuntos musicais e das orquestras.

Além disto, o fascínio que os “malandros” dos “morros” exerciam sobre Noel e da música feita por eles, fez com que ele incorporasse não só a forma de compor, mas também a cadência melódica, marcando, em definitivo, a difusão e aceitação do samba como música de qualidade, contribuindo para a superação dos preconceitos que identificavam o samba como “música de negro”, coisa de um povo “bárbaro”.

Por outro lado, Noel usou o seu talento para realizar nas suas músicas uma brilhante crônica social do Rio de Janeiro, que se urbanizava com rapidez, crônica também das injustiças sociais do país, da política, das relações amorosas e das mudanças culturais provocadas pelo crescimento do cinema falado e do rádio. O “Bernard Shaw do samba”, ou o “filósofo do samba”, como era chamado por alguns radialistas e jornalistas da época, deixou registrado em suas composições o universo histórico-cultural do final dos anos 20 e meados dos 30.

Mas, Noel de Medeiros Rosa foi também um homem atormentado e descrente, que não concebia a vida sem a boêmia, a malandragem, os botequins, os cabarés, os prostíbulos — como os do Mangue, que freqüentou desde o início da adolescência — e as grandes bebedeiras. Esse era seu modo particular de amar a vida, a tal ponto que mesmo sabendo que a tuberculose lhe corroía os pulmões nunca largou o cigarro, a bebida e a boêmia. Foi um sedutor incorrigível, envolvendo-se com várias mulheres ao mesmo tempo, o que lhe custou um casamento forçado com Laurinda, embora não a amasse, e se declarasse um inimigo mortal do casamento. Amou intensamente Ceci, para quem deixou como última composição, entre as inúmeras feitas para ela, Meu Último Desejo, em parceria com Vadico, lembrando o dia que se conheceram numa festa de São João, no cabaré Apollo, fazendo uma espécie de samba-testamento. Sua relação com Ceci foi longa, intensa e tumultuada.

Ao morrer aos 26 anos de idade havia construído uma vasta obra. Participou dos mais importantes programas radiofônicos da época, como o Programa Casé, teve grandes parceiros como Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Vadico, Lamartine Babo, Braguinha, entre outros, e conheceu o sucesso desde a sua primeira gravação Com Que Roupa?, cantada à exaustão no carnaval de 1931.

Exemplo de uma polêmica musical, curta mas muito comentada, foi com Wilson Baptista, em virtude de um samba deste enaltecendo a malandragem Lenço No Pescoço, duramente criticada por Orestes Barbosa, num artigo de jornal e numa música de Noel, Rapaz Folgado. Wilson respondeu com O Mocinho Da Vila, na qual critica o compositor e o seu bairro. Noel então dá-lhe o troco com a brilhante Feitiço Da Vila. Wilson não se dá por vencido e compõe Conversa Fiada, recebendo como resposta Palpite Infeliz. Ao invés de reconhecer a sua incapacidade de competir com Noel, mas possivelmente interessado em se aproveitar da evidência e do sucesso dele, Wilson “comete” Frankstein Da Vila, referindo-se ao defeito físico de Noel, e este não se manifesta. Um dia encontram-se no Café Leitão e Wilson mostra-lhe Terra de Cego, Noel pede-lhe para colocar outra letra, e nasce assim Deixa De Ser Convencido. Termina dessa forma inusitada a famosa “polêmica”. O menino que gostava de parodiar o Hino Nacional com letras pornográficas, continuava a viver no homem dos improvisos.Talvez Noel Rosa soubesse, enfim, mais do que ninguém, que “quem acha vive se perdendo”. E assim escolheu viver e morrer.

 

A.b. surdo

(70-sul)

Nasci na Praia do Vizinho, 86
Vai fazer um mês
(Vai fazer um mês)
Que minha tia me emprestou cinco mil réis
Pra comprar pastéis
(Pra comprar pastéis)

É futurismo, menina,
É futurismo, menina,
Pois não é marcha
Nem aqui nem lá na China

Depois mudei-me para a Praia do Cajú
Para descansar
(Para descansar)
No cemitério toda gente pra viver
Tem que falecer
(Tem que falecer)

Seu Dromedário é um poeta de juízo
É uma coisa louca
(É uma coisa louca)
Pois só faz versos quando a lua vem saindo
Lá do céu da boca
(Lá do céu da boca)

 

A.e.i.o.u

Uma, duas, angolinhas
Finca o pé na pampulinha
Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar
Dabliú, dabliú
Na cartilha da Juju, Juju
Dabliú, dabliú Na cartilha da Juju, Juju A Juju já sabe ler, a Juju sabe escrever
Há dez anos na carti…lha
A Juju já sabe ler, a Juju sabe escrever
Escreve sal com cê-cedilha!
Sabe conta de somar, sabe até multiplicar
Mas, na divisão se enras…ca
Outro dia fez um feio
Pois partindo um queijo ao meio
Quis me dar somente a casca!
Sabe História Natural, sabe História Universal
Mas não sabe Geografi…a
Pois com um cabo se atracando
Na bacia navegando, foi pra Ásia e teve azia

 

Com que roupa?

Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta, pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com força bruta
Pra poder me reabilitar

Pois esta vida não está sopa
Eu pergunto com que roupa
Com que roupa . . .eu vou?
Pro samba que você me convidou
Com que roupa . . .eu vou
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou

Seu português, agora, deu o fora
Já foi-se embora e levou seu capital
Esqueceu quem tanto amou outrora
Foi no Adamastor pra Portugal
Pra se casar com a cachopa

Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubú
Já estou coberto de farrapos
Eu vou acabar ficando nú

Meu paletó virou estopa
Eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou . . .

 

Gago apaixonado

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Tem tem pe-pena deste mo-moribundo
Que que já virou va-va-va-va-ga-gabundo
Só só só só por ter so-so-sofri-frido
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu tens um co-coração fi-fi-fingido

Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago
Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago
Não po-posso com a cru-crueldade da saudade
Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago

Teu teu co-coração me entregaste
De-de-pois-pois de mim tu to-toma-maste
Tu-tua falsi-si-sidade é pro-profunda
Tu tu tu tu tu tu tu tu
Tu vais fi-fi-ficar corcunda!

 

Na Bahia

Aonde é que o nosso grande Brasil principia?
Na Bahia! Na Bahia!
Aonde foi que Jesus pregou sua filosofia?
Na Bahia! Na Bahia!

Todo santo dia
Nasce um samba na Bahia
Samba tem feitiço
Todo mundo sabe disso!

A minha Bahia
Forneceu a fantasia mais original
Que se vê no carnaval!

Em São Salvador
Terra de luz e de amor
Só o samba cabe
Disso todo mundo sabe!

 

O X do Problema

Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
Eu fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê

Nasci no Estácio
O samba é a corda e eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer gostar de você

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o X do problema

Você tem vontade
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de copacabana

 

Pierrô apaixonado

Um pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma colombina
Acabou chorando, acabou chorando

A colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim

Dizendo: pierrô cacete
Vai tomar sorvete com o arlecrim

Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim

 

Positivismo
Noel Rosa e Orestes Barbosa

A verdade, meu amor mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por seu pescoço
O autor da guilhotina de Paris

A verdade, meu amor mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por seu pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris

Vai, orgulhosa querida
Mas aceita esta lição
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração

O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim

O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim

Vai, coração que não vibra
Com teu juro exorbitante
Transformar mais outra vida
Em dívida flutuante

A intriga nasce num café pequeno
Que se toma pra ver quem vai pagar
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar

 

 

Noel em livros

Dentre os livros a respeito do compositor, duas obras são de grande importância: No Tempo de Noel Rosa, de Almirante, e Noel Rosa: Uma Biografia de João Máximo e Carlos Didier. Recomenda-se também Noel Rosa: Língua e Estilo, de Castellar de Carvalho e Antonio Martins de Araujo ;  Songbook Noel Rosa 1, 2 e 3, de Almir Chediak; e Noel Rosa: Para Ler e Ouvir de Eduardo Alcantara de Vasconcellos.

 

 

Noel Rosa – Com que Roupa?