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O PADRE VIEIRA

VIEIRA E A CONDUÇÃO DO ÍNDIO AO CORPO MÍSTICO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS (MARANHÃO 1652-1661)

A compreensão que o jesuíta Antonio Vieira (1608-97) tem do índio é em grande parte uma retomada de questões consideradas pelos tratadistas espanhóis da Segunda Escolástica que, no século anterior, discutiram os títulos de justificação da Conquista. Exemplo disso é a glosa que faz do tema da obrigação evangélica de “pregar a toda criatura”, contraposta à recusa tradicional de estender-se a fé ao índio sob a alegação de sua pouca inteligência e disposição espiritual. Para ele, como para os escolásticos, o esforço da conversão é dever religioso inalienável do conhecimento dos novos povos, seja qual for seu grau de polícia ou racionalidade. O indígena participa da lei natural implantada no homem por Deus, que o cria capaz de pertencer ao grêmio da Igreja e à relação hierárquica que ordena o Estado católico. Isto significa tanto que o índio adquire um conjunto de direitos comuns a súditos e fiéis, quanto que deve reconhecer um direito missionário natural; deduzido do mandado divino de pregação a toda criatura, determina que nenhum povo age legitimamente ao impedir a pregação cristã entre sua gente. O dominicano Francisco de Vitoria, um dos principais nomes da Segunda Escolástica, afirma no De Indis[1] que “os cristãos têm o direito de pregar, de anunciar o Evangelho aos bárbaros em todas as regiões”. No De Temperantia[2] especifica que “se a pregação for impedida, os espanhóis podem aceitar ou declarar a guerra, por causa disto, se for necessário”. Por outro lado, “se os bárbaros permitirem aos espanhóis a pregação do Evangelho, livre e sem impedimentos, quer aceitem, quer não aceitem a fé, não é lícito fazer-lhes guerra nem ocupar-lhes as terras”[3] . Ou seja, a mesma inclusão dos índios no direito natural e das gentes determina que não podem, sob pena de guerra justa , impedir a ação missionária, causa providencial da descoberta do Novo Mundo. Também de acordo com a posição defendida pela maioria dos autores da Segunda Escolástica, Vieira vai admitir como legítimos a organização política dos índios e o direito de manutenção da posse de seus bens, o que impedia que se tomasse como justa causa de guerra a recusa das tribos de se mudarem para as missões.

Da mesma maneira, critica o cativeiro a partir do argumento escolástico de que a condição natural do ser humano, criado por Deus à sua imagem e semelhança, é a de liberdade. A redução do indígena à situação de escravo, agravada pela coação violenta, é crime temporal e espiritual. Apenas a prédica pacífica justifica-se quando não há impedimento do direito missionário. Tais argumentos estruturam o tema do “pecado mortal do cativeiro”:

 

“Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, o qual é o jejum que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão, estes são os que Deus me manda que vos anuncie: Annuntia populo meo scelera eorum . — Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides direitos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida”[4] .

 

Vieira ainda refere os efeitos desastrosos da manutenção dos cativeiros injustos tanto para os senhores particulares como para o conjunto da Colônia:

 

“Sabeis quem traz pragas às terras? Cativeiros injustos. Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses? Quem trouxe a praga das bexigas? Quem trouxe a fome e a esterilidade? Estes cativeiros”[5] .

 

Em carta dirigida formalmente ao Rei D. Afonso VI, em 57, ainda no período de sua menoridade, quando os negócios do Brasil, na verdade, estavam nas mãos da Rainha-regente D. Luísa de Gusmão e do Conselho Ultramarino, Vieira responsabiliza duramente a omissão da cabeça do Estado diante da prática injusta do cativeiro:

“Senhor, os reis são vassalos de Deus, e, se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de se não perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura sagrada; e entre todas as injustiças nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham”[6] .

 

Lembra mesmo a desgraça anterior dos Avis, como figura de um crime que traz funestos presságios para o futuro dos Bragança:

 

“A perda do Senhor rei D. Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu a todo o reino, notaram os autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros, que na costa da mesma África começaram a fazer os nossos primeiros conquistadores, com tão pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias”[7] .

 

A partir daí, trata de apertar a consciência real com o nó de sua descendência:

 

“Com grande dor e com grande receio de a renovar no ânimo de V.M., digo o que agora direi: mas quere Deus que eu o diga. A El-rei Faraó, porque consentiu no seu reino o injusto cativeiro do povo hebreu, deu-lhe Deus grandes castigos, e um deles foi tirar-lhe os primogênitos”[8] .

 

A figura deste castigo fúnebre aplica-se cruamente à situação da Rainha-Mãe, que, em 1653, perdera o filho mais velho, D. Teodósio, e a primeira das filhas, a Infanta D. Joana. Vieira explica ambas as mortes por haver-se criado, naquele ano, uma lei com muitas “larguezas na matéria do cativeiro dos índios”, revogada tarde demais para valer aos príncipes.

Mas para ficar no tema da coação violenta do índio, Vieira supunha-a ilegítima e também ineficaz. Já na Carta Ânua , afirmava que os índios ficavam “cativos” do “bom trato e conversação”[9] que lhes dispensavam os jesuítas. Isto supunha evidentemente a idéia de que os índios eram inteligentes e capazes de aprender a doutrina cristã, bem estabelecida pelos tratadistas espanhóis que lançaram cerrado combate às teses conhecidas de John Major, Juan de Quevedo e Juan Ginés de Sepúlveda. Estes buscaram aplicar ao índio o conceito de servo por natureza , utilizado por Aristóteles no Livro Primeiro da Política , Capítulo V , sobretudo, para referir os indivíduos em que predomina a força física sobre o entendimento e não mostram capacidade para governar-se[10] . Um argumento pouco comum que Vieira traz para o debate é a lembrança irônica, dirigida às mulheres dos senhores de escravos, de que também às almas do seu gênero “não faltou quem dissesse que não foram criadas à imagem e semelhança de Deus”[11] .

Em carta escrita ao Provincial do Brasil, Vieira refere a “memória e inteligência” e a “brevidade com que aprenderam” os guajajaras, que respondiam com “prontidão e viveza de memória” e muita “expedição de lingua”[12] . Retoma portanto a posição dos tratadistas espanhóis que reconhece o “bom natural” dos índios, que os inclina à correta leitura do catecismo, “o qual tomavam com tanto gosto que nunca foi necessário que o Padre os chamasse, antes eles buscavam e chamavam o Padre muitas vezes”[13] . Mesmo os ferozes Nheengaíbas, em relação à Cruz, “a tiveram sempre guardada e com grande decência, e respeitada com tanta veneração e temor, que nem a tocá-la nem ainda a vê-la se atreviam”[14] .

Isto obrigava o Rei a integrar o indígena ao corpo político do Estado enquanto súdito naturalmente livre, segunda vez libertado pelo nascimento na fé através da conversão. Com efeito, a partir por exemplo de 2 Cor 12, 12ss., assinala que Cristo e os cristãos compõem um só corpo, por virtude da fé e do batismo, “sem o qual ninguém pode se salvar” e cujo “poder de consagração”, que reside na própria Igreja, representa para o gentio, nascido primeiramente sem fé, um “segundo e novo nascimento”[15] .

Para tais católicos, pois, a condução do gentio ao corpo místico da Igreja, através de seu conhecimento e prática da doutrina, representa a mais alta finalidade do descobrimento. Compreender a perspectiva em que se deu a conversão no Novo Mundo, implica em reconhecer que era entendida como possível e necessária, sendo o gentio apto para receber a revelação divina e a bem-aventurança, negada apenas pela circunstância atual da ignorância de Deus e da separação do corpo da Igreja.

A condenação da coação violenta, já comentada aqui, não significa absolutamente então a aceitação de qualquer forma de relativismo religioso. Vale bem para Vieira, a observação de Joseph Höffner de que Cristo “não foi nenhum livre pensador liberal do século XIX a anunciar o Evangelho sem exigência de espécie alguma”[16] ; acrescento que não foi nenhum teólogo da libertação a fazer mea culpa do “projeto autoritário” da Cristandade colonial.

A ortodoxia católica diante da Conquista prevê, assim, um esforço de ordenação interna, a partir da integração do gentio na “comunidade sobrenatural” e na “unidade jurídico-moral”, indissociáveis, da Igreja[17] , e não uma ação de guerra contra um corpo estranho ao Orbis Christianus . Isto é muito distinto do modelo adotado, nos séculos anteriores, face ao gentio maometano, quando a questão era destruí-lo enquanto ameaça ao corpo universal, aonde não tinha lugar, e não compeli-lo a entrar neste corpo, cuja universalidade de certo modo dependia de seu ingresso. A obrigação da conversão era estranha ao ambiente medieval das Cruzadas e guerras da Reconquista, constituindo-se em uma grande novidade das Descobertas, uma nova “norma nacional e religiosa”[18] a participar da fundação da era moderna[19] .

Com respeito à argumentação de época de que a existência de práticas contra-natura entre os indígenas, como a poligamia e o canibalismo, fornecia causa justa de guerra contra eles, Vieira, no rastro dos escolásticos, considerava que, conquanto anti-naturais, eram consequências de costumes viciosos corrigíveis e não da má disposição do indígena, desumana e irracional. “Muitos há muito rudes e bárbaros” — vai escrever ao Provincial do Brasil, em 54 –, “mas por falta mais de cultura que de natureza”[20] . No geral, porém, é gente que “não tem os vícios, nem os embaraços de consciência, com que vivem pela maior parte os homens de maior polícia”[21] . Reparo que repõe um argumento de Manoel da Nóbrega em seu Diálogo sobre a Conversão do Gentio : entre o vil costume dos índios e a vã soberba dos filósofos, maior é o pecado destes, já que “não guardam a lei natural posto que a entendam”[22] . Mau costume e “ignorância invencível” são pois atenuantes importantes que impedem a caracterização monstruosa dos pecados dos índios, que impedem a sua caracterização monstruosa ou desumana.

Mas o ponto principal pelo qual Vieira bate-se é certamente o do reforço das missões jesuíticas como condição do êxito da ação espiritual da Igreja e do fortalecimento temporal do Estado português. Para aí faz convergir as lições da Segunda Escolástica que visavam balizar a ética da Conquista espanhola, nos termos irredutivelmente religiosos de uma “consciência cristã”[23] e de uma codificação jurídica assentada no Direito natural.

Visto no interior do corpo místico a que passa a pertencer, o gentio ocupa um lugar hierárquico definido, pelo qual responde jurídica, política, moral e religiosamente. Em primeiro lugar, o nascimento para a fé implica em que, mesmo quando cativo, o gentio seja consciente de que experimenta a Graça do ingresso no seio da verdadeira religião e que o cativeiro tem valor negativo menor que o positivo da conversão. Sem retirar o sentido originalmente injusto da escravidão, Vieira considera que a nova situação vivida pelo gentio, desde que o faça ingressar na religião cristã, é melhor do que a anterior, ignorante de Cristo, ainda que livre. Pois catolicamente apenas agora, mesmo cativos, os gentios conheciam a liberdade, que não se define como ausência de subordinação temporal a um senhor, mas como exercício do arbítrio que reconhece e elege para si o bem de Cristo. A liberdade cristã é, acima de tudo, conhecimento do bem, ou, numa palavra, impecabilidade: o pecado, e não o cativeiro temporal da vontade caracteriza a essência da escravidão[24] . Assim Vieira, com os escolásticos, reconhece, por meio de argumentos de fé e razão, a injustiça do cativeiro, mas considera maior o ganho da Salvação eterna, advindo do reconhecimento da nova fé, do que o custo em si do cativeiro.

A esse respeito, ainda, é interessante destacar o que Vieira escreve, em 54, ao Provincial do Brasil, sobre os termos ajustados entre os padres para tocar no confessionário o assunto das obrigações cristãs envolvidas no cativeiro:

 

“cuidamos muito, nas confissões dos senhores, em lhes dizer tudo o que convém para o bem de suas almas, e também tudo o que for a bem dos índios, para que não cativem injustamente os livres, nem tratem mais rigorosamente do que convém os escravos. A estes, da mesma sorte, quando os confessamos lhes dizemos tudo o que for por parte de seus senhores, para que os respeitem, obedeçam, e sirvam em tudo o que os senhores lhes mandam”[25] .

 

Obediência do escravo, enquanto gratidão pela graça recebida da religião, e caridade do senhor, para zelar pela alma do cativo, são as duas virtudes cristãs a que se obrigam uma e outra ponta do “laço diabólico” da escravidão. Bem resumido tudo, “paciência”, análoga à do Senhor, é a virtude essencial que se pede a ambos: ao primeiro, para aceitar sem rebeldia os trabalhos exaustivos que semelham a via crucis ; ao segundo, para fazer jus à posição de senhor que tem almas à sua contas, e, obrigando-se assim a salvá-las.

Destas considerações, vê-se que o conceito de liberdade dos índios entre os jesuítas portugueses não tem valor absoluto ou autônomo à esfera religiosa. A categoria substancial a definir a existência da liberdade é a adesão ao grêmio da Igreja e o serviço da religião, não a independência liberal da vontade própria ou da ausência de superior hierárquico. O mesmo vale para a idéia de igualdade. Define-a a referência ao corpo místico da Igreja, nunca a inexistência de hierarquia na Igreja ou no Reino, que, de resto, para eles, seria uma iniqüidade, uma vez que consideram-se os homens desiguais por natureza, e justa a preservação da proporcionalidade de origem no lugar relativo que ocupam no organismo coletivo.

Vieira, aqui, levanta argumentos muito afins, por exemplo, aos do jesuíta espanhol Luís de Molina, que ensinou em cátedras portuguesas no último quartel do XVI. Defende Molina que “a escravidão sob domínio cristão conduz ao bem espiritual dos escravos” e é mesmo “um ato de caridade comprar a liberdade” deles “para que se tornem cristãos”[26] .

Em resumo, aplica-se perfeitamente a Vieira a afirmação do Bispo de Münster de que os teólogos espanhóis do século de ouro “jamais propugnaram por uma total igualdade de todos os povos e homens”, sendo “doutrina católica a desigualdade humana, em talentos naturais, em valores morais e em graça”[27] . Catolicamente, igualam-se apenas na crença de que todos fazem naturalmente jus à remissão. Assim, para os escolásticos, a redução do gentio boçal a membro da Igreja hierárquica, afetando nele um sentimento de homogeneidade e de finalidade política comum ao corpus mysticum do Estado cristão, era a melhor medida da liberdade e igualdade a que podiam chegar. Pois pertencer ao corpo místico, de acordo por exemplo com o jesuíta Francisco Suárez, é completamente distinto de encontrar-se numa “multidão de homens”, ou num “agregado qualquer sem nenhuma ordem ou união física ou moral”. Ele reúne os homens “mediante uma vontade especial ou de comum acordo” de modo a “se ajudarem mutuamente” na obtenção de seu fim[28] .

A incorporação do índio ao corpo místico é mais eficaz, para Vieira, não apenas com o abandono da sua subjugação violenta, mas principalmente com o fim da interferência do governo colonial nas missões, que deveria ficar a cargo exclusivo da Companhia. Nesse sentido, sustenta a coincidência entre a segurança das consciências dos moradores do Brasil e do próprio Rei, responsável por todas elas, e a garantia do bem êxito de suas conveniências. Agir com tal justiça frente aos índios significaria, igualmente, tratar com eficácia os sucessos terrenos. É essencial em Vieira este tipo de argumentação que busca acomodar aspectos temporais e espirituais e evidenciar os frutos políticos advindos do plantio religioso.

Essa acomodação não nasce do confronto externo ou posterior de sua perspectiva cristã favorável à liberdade indígena com as condições reais das práticas coloniais, que o induzam a concessões contraditórias aos moradores. Com efeito, já a formulação de seu projeto nunca se dá em chave exclusivamente espiritual ou idealista, no sentido de que os bens da eternidade cristã possam dispensar-se de responder objetivamente às duras práticas terrenas. O topos da conciliação, aplicado por Vieira entre as posições contrárias de jesuítas e colonos, e a acomodação dos mundos material e espiritual é essencial ao entendimento de suas posições. Em termos amplos, assenta-se no pensamento neo-escolástico que repõe a analogia tomista essencial entre os dois universos, sem que percam as suas diferenças de natureza, isto é, sem que o mundo temporal seja tomado apenas como decaído ou desviante em relação ao espiritual.

Esta vizinhança estreita entre a consciência cristã e as práticas de eficácia temporal são sem dúvida efeito da resposta jesuítica ao maquiavelismo ineludível da modernidade. Assim, de início, vale a pena observar as formas de conciliação propostas por Vieira aos moradores do Brasil, adversários óbvios de toda lei favorável à liberdade dos índios. No Sermão da Primeira Dominga da Quaresma , de 53, pregado em S. Luís, Vieira encarece o valor sem preço da alma, mas garante “que não é necessário chegar a tanto nem a muito menos”. E trata de apontar a solução do ponto, estudado com toda a diligência e afeto, “seguindo as opiniões mais largas e mais favoráveis”, de modo que seja possível ter “muita pouca perda temporal” e ainda “segurar as consciências de todos os moradores deste Estado”. Mais ainda: de modo a que estes, mantendo “muitos grandes interesses”, possam até mesmo “melhorar suas conveniências para o futuro”[29] .

No caso das missões, a acomodação que propõe é, resumidamente, a seguinte: posse apenas de escravos voluntários, sendo os demais levados para as “aldeias d’el rei”; garantia de entradas ao sertão; resgate e cativeiro justo de índios “em corda”, isto é, aprisionados e condenados à morte por tribo rival; manutenção de cativeiro de índios escravizados em “guerra justa”; julgamento de todos os cativeiros por uma Junta de que participariam Governador, ouvidor-geral dos índios, vigário do Maranhão ou Pará, e prelados das quatro religiões atuantes na Província; repartição pro rata , entre todos os moradores, dos cativos por justa causa; condução dos índios, cujo cativeiro não fosse confirmado pela Junta, para as aldeias, sendo que, durante seis meses, trabalhariam para a própria familia, e durante os outros seis trabalhariam em casa de colonos, mediante pagamento de duas varas de algodão por mês. “Pode haver coisa mais moderada?” — pergunta ele:

 

“Pode haver coisa mais posta em razão que esta? Quem se não contentar e não satisfizer disto, uma de duas: ou não é cristão, ou não tem entendimento”[30] .

 

Da aceitação da proposta decorreriam vários bens para os moradores: ficarem “com as consciências seguras”; tirarem de suas casas “esta maldição” de servirem-se “com suor e com sangue injusto”; haver “muitos resgates, com que se tirarão muitos índios, que de outra maneira não os haverá”; e, por último, ter uma proposta “digna de ir às mãos de Sua Majestade” que a aprove e confirme, por proveitosa e justa[31] . Ou seja, tais bens são a garantia de perfeita acomodação entre a salvação espiritual, ameaçada pelo pecado do cativeiro injusto dos índios, e a manutenção de certa prática dele, agora regulada por disposições de justiça jurídica e teológica.

Com o mesmo propósito de produzir o ajuste entre as razões de Estado e a Religião, Vieira justifica as dezenove medidas que, em carta de 54, Vieira propõe a D. João IV: “aqui nao se trata só do justo” — escreve — “senão também do justificado”[32] . Vale dizer: ao zelo espiritual e ético deve somar-se a conveniência temporal; ou, ainda mais claramente: a conveniência dos negócios necessariamente participa das formas mais fundas do zelo religioso. O topos da conveniência é, de fato, onipresente em Vieira. Na matéria indígena, apresenta-se usualmente como argumento que tenta desmanchar a resistência dos moradores diante de leis contrárias ao cativeiro injusto, assim diante de projetos favoráveis à direção exclusivamente jesuítica das missões e entradas de resgate. Aplica-o também aos discursos que representa ao Rei e aos grandes do governo português, como justificativa da necessidade de mudança de disposições legais sobre as missões que a “experiência tem mostrado” insatisfatórias, de modo a dar-se remédio “mais conveniente e praticável”[33] à questão. Igualmente lança mão deste topos como prova da temperança e boa-vontade de sua própria posição, disposta a tudo em favor da pacificação dos coloniais enquanto estes, ao contrário, tomam decisões heréticas e desleais em vista do bem comum da república, fazendo do Maranhão e Pará “uma Rochela de Portugal”[34] . Neste caso, a idéia que pretende demonstrar ao rei é a de sua própria tolerância e flexibilidade diante da irredutibidade da cobiça dos moradores. Quer dizer, o topos da conciliação faz pensar que sempre esteve disposto a transigir e a encontrar uma solução comum para o assunto e que furtar-se a ela é intolerância, facciosimo e sem-razão da parte exclusiva dos moradores. Sustentando o ecletismo casuísta destes empregos, está a sua convicção fundamental de que, havendo ou não resistência ao projeto das missões, o bem comum da República é análogo ao projeto de salvação da comunidade religiosa. Isto equivale a crer que a verdade de toda consciência ou prática cristã correta supõe necessariamente uma acomodação que produza um desdobramento eficaz da história. Deixar de conciliar, ou acomodar, deste ponto de vista, é abdicar do jesuiticamente inabdicável: a eficácia histórica da pregação cristã.

Quando Vieira faz publicamente um mea culpa da intenção de conciliação de suas posições com as dos moradores, ele constrói uma grave acusação, mas não para si mesmo. Ele não se penitencia do seu esforço de harmonização das partes em conflito para assentamento de um meio termo adequado; ao contrário, ele acusa os que, com tanta demonstração de boa vontade e desejo de concórdia, ainda permaneceram faltos de piedade, apegados a sua cobiça invencível e prática facciosa, indiferentes a Deus como às leis do Reino. Para evidência disto basta a leitura da suposta auto-acusação contida no sermão da Epifania, pregado diante da Rainha-regente, do Príncipe e toda a grandeza de Portugal:

 

“Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque, devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós, acomodando-nos a fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defensa. Como defendeu Cristo os Magos? Defendeu-os de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade; e nós não só consentimos que os pobres gentios que convertemos percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos com eles, só para ver se pode contentar a tirania dos cristãos: mas nada basta”[35] .

 

Nada basta, pois, para contentar a tirania dos falsos cristãos do Maranhão. A culpa dele, Vieira, foi apenas a do excesso de zelo de concórdia, insuficiente ainda para comover aos da colonia. Ou seja, quanto mais contundente o mea culpa que faz de sua própria flexibilidade, tanto mais torna criminosa a irredutibilidade dos coloniais:

 

“Mas nada disto basta para moderar a cobiça e tirania dos nossos caluniadores, porque dizem que são negros, e hão de ser escravos”[36] .

 

O “remorso” que exibe é demonstração da “calúnia” que sofre, não de uma imoralidade praticada por ele. Se é possível enxergar-se aí algum arrependimento não é o de esforçar-se por conciliar as posições em jogo, mesmo à custa da limitação das liberdades indígenas, mas o de tê-lo feito sem sucesso, sem chegar a um acordo com os moradores para que as tais limitações se estabelecessem, de fato. Se há um erro aventado é o da estratégia equivocada da acomodação, não o da má consciência por havê-la proposto. A sua consciência está bem segura, mais ainda por ter tentado tudo e até arriscar-se a si mesma, em nome da concórdia do Corpus mysticum .

Ao redimensionar a questão deste modo, gostaria de deixar claro que a este trabalho não interessa demonstrar o grau de imoralidade ou falsa consciência seja de Vieira, da Segunda Escolástica ou da Igreja colonial. Bem ao contrário, a imagem de Vieira surge aqui como a de um perfeito exemplo da moralidade eclesiástica mais sincera da Península nos seiscentos. Pretender a a sua condenação, parece tão anacrônico e revisionista quanto reclamar, para ele, o louro do avanço ilustrado.


1: Relecciones Teologicas , Madrid, Ed. de Luis Getino, 1933-4, vol. II, p. 368. ^ voltar ao texto

2: Madrid, Annuario de la Asociación Francisco de Vitoria, 1931, vol. II, p. 63. ^ voltar ao texto

3: De Indis , op. cit., II, p. 370). Para um comentário geral da questão entre os neo-escolásticos, ver Höffner, Josef: Colonização e Evangelho , RJ, Presença, 1977, 2a. ed., p. 304ss.) ^ voltar ao texto

4: Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, de 1653. Para todas as citações dos Sermões uso a edição paulista, de 1957, em 24 volumes, da Editora das Américas. Citação à p. 184 do volume XXI. ^ voltar ao texto

5: Idem, p. 187. ^ voltar ao texto

6: Cartas , op cit., I, p.467-8. ^ voltar ao texto

7: Cartas , I, p. 468. ^ voltar ao texto

8: Idem, p. 468. ^ voltar ao texto

9: Cartas , I, p.68. ^ voltar ao texto

10: Sobre a utilização do texto aristotélico nas disputas sobre o estatuto dos índios, ver em especial os trabalhos de Lewis Hanke ( Aristotle and the American Indians . Bloomington, Indiana Univ. Press, 1970; La humanidad es una , México, FCE, 1985, 2a. ed.) e Silvio Zavala ( Filosofia de la Conquista , México, FCE, 1a. reimpr. da 3a. ed., 1984). O Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los indios , de Sepúlveda, tem uma boa edição moderna da FCE, com estudo de Manuel Garcia-Pelayo. Li-a na 2a. reimpr., de 1987. Uma comparação lado a lado dos textos de Aristóteles e Sepúlveda é feita por Pelayo à p. 21ss. ^ voltar ao texto

11: Sermão da Primeira Oitava da Quaresma in Sermões , VII, p. 212. ^ voltar ao texto

12: Cartas , I, p. 397-8. ^ voltar ao texto

13: Idem, I, p.396. ^ voltar ao texto

14: Idem, p. 562. ^ voltar ao texto

15: Idem, p. 247. ^ voltar ao texto

16: Höffner, Joseph: Colonização e Evangelho — Ética da Colonização Espanhola no Século de Ouro , RJ, Presença, 1977, 2a. ed.. Citação à p. 48. ^ voltar ao texto

17: Idem, ibidem. ^ voltar ao texto

18: Conferir Höffner, op. cit., p. 98. ^ voltar ao texto

19: Ver a propósito o que diz Lewis Hanke em La humanidad es una , México, Fondo de Cultura Económica , 1985: p. 28ss. ^ voltar ao texto

20: Cartas , I, p. 398. ^ voltar ao texto

21: Idem, I, p. 400. ^ voltar ao texto

22: Nóbrega, Manuel da: Diálogo sobre a Conversão do Gentio , ed. de Mecenas Dourado, RJ, Ediouro, s/d. Citação à p. 118. ^ voltar ao texto

23: A propósito, e para que se evite uma leitura exclusivamente “intelectualista” das motivações que conduziram aos esforços mais decididos de balizamento ético das Conquistas, ver sobretudo a terceira parte do já citado livro de Höffner: p. 177ss. ^ voltar ao texto

24: Sobre a noção de “liberdade” no cristianismo, especialmente em sua linhagem tomista, ver Gilson, Étienne: L’Esprit de la Philosophie Médiévale, Paris, Vrin, 1983 (2a. ed., 4a. tiragem). Consultar especialmente p. 284ss. ^ voltar ao texto

25: Cartas , I, p. 404. ^ voltar ao texto

26: Apud Hoffner, op. cit., p. 346. ^ voltar ao texto

27: Idem, p. 376. ^ voltar ao texto

28: Cf. De Legibus , lib. III, c. 2, n. 4. ^ voltar ao texto

29: Sermões , op. cit., XXI, p. 193. ^ voltar ao texto

30: Idem, p. 196. ^ voltar ao texto

31: Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, XXI, p. 196-7. ^ voltar ao texto

32: Cartas , I, p. 439. ^ voltar ao texto

33: Cartas , I, p. 309. ^ voltar ao texto

34: Cartas , I, p. 422. ^ voltar ao texto

35: Sermões , VII, p. 368. ^ voltar ao texto

36: Idem, VII, p. 369. ^ voltar ao texto


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos