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PARA LER VIEIRA: AS TRÊS PONTAS DAS ANALOGIAS NOS SERMÕES

E como se para um mistério tão alto fosse pouco tempo um dia,
e pouca celebridade uma festa,
a torna hoje a celebrar com repetida veneração esta nossa igreja.
(Antônio Vieira, Sermão da Santa Cruz, 1638)

E não em outro dia senão hoje!
Grandes suspeitas me dá este Santo que vem ajudar-nos
a celebrar a nossa festa,
mais que desejoso de celebrarmos a sua.
(Idem, Sermão de São Roque, 1644)

 

Há tempos, formulei a hipótese de uma unidade teológico-retórico-política dos sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697) . Em termos restritos, ela está em oposição direta ao lugar comum da fortuna crítica do jesuíta que entende sua obra como essencialmente “contraditória”. Em termos mais amplos, opõe-se à tese corrente da existência da “literatura brasileira” como “reflexo” ou “representação” de certa “brasilidade”, cujos traços “prefiguradores” poderiam ser descobertos, isolados e conservados em diversos lugares da produção letrada colonial, considerada ainda portuguesa ou internacional, até serem integrados, como sistema, ao capital intelectual do país no século XIX.
Contrariamente à idéia de um Vieira contraditório, penso que a sua pregação ordena-se sistematicamente segundo uma matriz sacramental, entendida como uma técnica de produção discursiva do que se supõe ser uma ocasião favorável à manifestação da presença divina, cuja latência nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover o auditório. Movê-lo, aqui, significa basicamente, em termos individuais, reorientá-lo na direção das finalidades cristãs inscritas na natureza divinamente criada; em termos de ação coletiva e institucional, implica dizer que o sermão deve estar apto a formular hipóteses para uma política pragmática e legítima a ser conduzida pelos Estados católicos na história. Nessa perspectiva, não é verossímil postular, como se costuma, haver contradição em Vieira porque ele contempla ou confunde ostensivamente aspectos temporais e espirituais, seja em sua atuação missionária, seja em sua pregação da doutrina cristã. Para o jesuíta, no âmbito da história, aspectos temporais e espirituais, na medida em que são efeitos que, em última instância, reportam-se a Deus, não podem ter completa autonomia de ser em relação ao outro. Da mesma maneira, nenhum desses aspectos pode ser absoluto na determinação do gênero do sermão, que contempla justamente a descoberta da articulação entre ambos.
Quanto às questões relativas à maior ou menor “brasilidade” dos sermões, penso que o melhor, decididamente, seja dissolvê-las. Cada um dos sermões integra-se ao conjunto da produção internacional jesuítica da Contra-Reforma e, ao mesmo tempo, participa do encargo de propor uma política de expansão do Estado português na América. E os sermões jamais propõem tal política como se fora um projeto de “dominação externa” sobre colônias virtualmente autônomas e “oprimidas”, quer dizer, como se já houvesse aqui sentimento nativista espontâneo, lutas de classes e vontade de independência frente à metrópole, caracterizada, por sua vez, como entidade externa e intrusa.
Mais verossimilmente, para Vieira, trata-se de sustentar e ampliar o mesmo Estado que se desdobra nas várias partes de um mundo em expansão, com base tanto na doutrina neotomista de condução do gentio ao orbe cristão, isto é, de sua integração hierárquica ao corpo místico e institucional da cristandade, quanto no enfrentamento caso a caso de dificuldades surgidas nas várias frentes de colonização. Nenhum “Brasil”, portanto, parece necessário postular nesse período, a não ser o que se pode contar como parte atuante de um Império que busca integrar os vários pontos de sua expansão, ao mesmo tempo em que procura lidar com uma ruptura européia radical, manifesta em termos do cisma religioso.
Com base nessa hipótese, tenho procurado examinar o alcance do verossímil da unidade teológico-retórico-política como categoria pertinente para a análise de obras, de diferentes gêneros, produzidas nos séculos XVI, XVII e, ao menos, em parte do século XVIII. No entanto, gostaria de considerar essa unidade, aqui, não de um ponto de vista teórico, mas operacional e heurístico. Tenho em mente discorrer, em particular, a propósito de certa técnica básica de leitura dos sermões seiscentistas, útil para reposição verossímil de alguns de seus sentidos no âmbito da liturgia católica, em geral pouco considerada nas análises contemporâneas. A técnica básica a que me refiro é a de estabelecimento de analogias entre três linhas semânticas necessariamente envolvidas no sermão: primeira, a das comemorações do ano eclesiástico ou litúrgico (tempo santo); segunda, a das passagens escriturais do Evangelho do dia, definidas, por sua vez, pelo calendário litúrgico; terceira, a das circunstâncias presentes na enunciação do sermão, entendidas como circunstâncias do tempo comum ou histórico do sermão, que, segundo a ortodoxia católica, não nega, nem está em contradição com o tempo santo.
A seguir, explico-me melhor a respeito de cada uma dessas linhas de ponderação analógica.

A. O ano litúrgico ou eclesiástico

O ano eclesiástico, como é sabido, diz respeito à série de tempos e dias santos, definidos pela Igreja, que começa com a Primeira Domingo do Advento e fecha na última semana depois de Pentecostes. A celebração periódica dessas solenidades refere a memória, guarda e ensino dos mistérios e dogmas da Igreja, entendidos ortodoxamente como legados de Cristo. Assim, um pregador, quando diz o seu sermão, deve ajustá-lo necessariamente aos significados doutrinários da ocasião. Apenas a título de lembrança, especificaria que o calendário eclesiástico compõe-se basicamente de 3 tempos santos, a saber:

1º tempo: do Advento à Septuagésima.
Os temas genéricos dos sermões desse período são a promessa da vinda do Messias; o mistério da Encarnação; o nascimento de Jesus, sua juventude e ministério (portanto, a graça de Deus ao enviar seu filho à terra); e, por último, o chamado “segundo advento”, isto é, a volta de Cristo como juiz ao fim da história. Todo o período adventício significa catolicamente uma preparação para o Natal, e o seu primeiro Domingo é contado 4 semanas antes dele (caindo, assim, em novembro). Nesse período, portanto, as principais solenidades são: o 1º Domingo de Advento (ou Dominga, como se dizia no XVII), que constitui justamente a abertura do calendário litúrgico; o Natal; e a Epifania, que trata da manifestação divina como chamado (ou vocação, como se dizia) à verdadeira religião, que se comemora no Dia de Reis, em 6 de janeiro.

2º tempo: da Septuagésima à Ascensão.
Os temas tratam genericamente da redenção e misericórdia de Cristo. As principais datas a balizar esse período são: a Septuagésima, que conta os 70 dias faltantes para a Páscoa, quando se celebra a ressurreição de Cristo; a Sexagésima, que celebra os 60 dias antes dela e que, no caso de Vieira, dá nome ao mais conhecido de seus sermões — paradoxalmente, não tenho notícia, em toda a imensa fortuna crítica a respeito dele, de um só artigo em que a festa tenha sido seriamente considerada como capaz de trazer alguma elucidação aos argumentos e metáforas ali empregados); a Qüinquagésima, que está a 50 dias da Páscoa, ainda em fevereiro; a Quaresma, que nomeia o período de 46 dias que vai da 4ª feira de Cinza (assim mesmo, no singular, como se diz no século XVII) e vai até o 1º Domingo da Páscoa; e, ainda, a Semana Santa, que fecha esse período, contando-se do Domingo de Ramos (entrada de Cristo em Jerusalém) ao Domingo de Páscoa. Este, por sua vez, conta-se como o primeiro domingo depois da lua cheia do equinócio de março. O período, como todos sabem, vai de fevereiro a finais de abril. Ainda neste segundo tempo santo, convém referir a Quinzena da Páscoa, período que inclui a Semana Santa mais a semana seguinte, que vai do Domingo de Páscoa ao Domingo da Pascoela, ainda em abril.

3º tempo: da Ascensão a Pentecostes.
Neste intervalo são celebrados basicamente os benefícios do Espírito Santo. Fazem parte dele as festas da Ascensão e de Pentecostes, que se dão respectivamente a 40 e 50 dias depois da Páscoa, celebrando-se, nesta última, a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos em línguas de fogo.
Tais referências genéricas dos tempos litúrgicos, por sua vez, estão articuladas necessariamente, na composição dos sermões, aos passos dos Evangelhos previstos para serem lidos nas missas a cada dia do ano. Assim, quando o pregador faz o seu sermão, ele o apresenta justamente como um comentário apropriado, mais ou menos dilatado, à leitura que se acabou de fazer do Evangelho do dia, ouvida pelos fiéis presentes à cerimônia da missa. Com base nesse texto, as tópicas mais gerais ditadas pelo calendário litúrgico subdividem-se ou especificam-se segundo novas linhas de ponderação ou de proliferação de analogias conceituosas.

B. O Evangelho do dia

Para que a exposição se torne menos óbvia e mais demonstrativa, considere-se, por exemplo, um sermão do tempo adventício, que justamente abre o calendário litúrgico. O Sermão da Primeira Dominga do Advento, que Vieira refere ter pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1650, está entre os mais celebrados e conhecidos dos duzentos e poucos que deixou registrados em sua editio princeps. Não se trata, porém, aqui, de examiná-lo com minúcia, mas de utilizá-lo como forma de apresentar essa chave de leitura, que considera prioritárias as relações significativas propiciadas pelas categorias litúrgicas.
Como se viu já, os mistérios típicos do Advento são: a promessa do Messias; a Encarnação; o nascimento de Jesus; a sua juventude e ministério; o Juízo Final. Antes de seguir adiante, segundo o eixo analógico de 3 pontas que mencionei, é obrigatório deter-me na consideração do Evangelho do dia. No caso, trata-se de Lucas 21, 25-33 — cuja “lembrança na Igreja” é justamente a do último ponto referido: o Juízo Final. Talvez pareça excessiva a idéia de se ler o Evangelho do dia tão logo se considere determinado sermão, mas efetivamente não se trata aqui de propor nenhuma forma reciclada de beataria. O que Vieira e os católicos lêem como ritual de fé, considero-o aqui como articulação de sentido prevista nas determinações de gênero, nem mais, nem menos. Isto dito, na Vulgata, Lucas 21, 25-33 reza o seguinte:

LUK 21 25 et erunt signa in sole et luna et stellis et in terris pressura gentium prae confusione sonitus maris et fluctuum
LUK 21 26 arescentibus hominibus prae timore et expectatione quae supervenient universo orbi nam virtutes caelorum movebuntur
LUK 21 27 et tunc videbunt Filium hominis venientem in nube cum potestate magna et maiestate
LUK 21 28 his autem fieri incipientibus respicite et levate capita vestra quoniam adpropinquat redemptio vestra
LUK 21 29 et dixit illis similitudinem videte ficulneam et omnes arbores
LUK 21 30 cum producunt iam ex se fructum scitis quoniam prope est aestas
LUK 21 31 ita et vos cum videritis haec fieri scitote quoniam prope est regnum Dei
LUK 21 32 amen dico vobis quia non praeteribit generatio haec donec omnia fiant
LUK 21 33 caelum et terra transibunt verba autem mea non transient

Dentre os temas principais do Advento, portanto, o Evangelho em questão selecionou aquele relativo ao tempo terrível do Juízo Final, tendo em vista mover o auditório à penitência e à emenda dos costumes. Mas é possível ir bem além disso e  especificar alguns lugares de significação particularmente relevantes na tradição exegética da passagem, disponível na invenção retórica do sermão. Vale dizer, importa agora, sobretudo, levantar as tópicas do repertório tradicional da parenética e da teologia bíblica associadas ao tema do Juízo Final. Entre elas, a título de exemplo, alguns lugares comuns da teologia bíblica empregados a propósito da categoria mística do Juízo são:

  1. A articulação semântica entre “julgar” e “reinar”.

Tais termos, aparentemente distantes numa gramática contemporânea, aparecem estreitamente ligados na Bíblia (por exemplo, em Jz 16, 17: Então o Senhor fazia surgir juízes que os libertavam dos assaltantes.) Essa articulação está patente também no livro dos Juízes, cujo esquema geral, segundo Pesch, é basicamente quaternário: Israel peca/ Deus pune/ Israel se arrepende e suplica/ Deus salva por meio de um juiz (que pode ser “maior”, isto é, carismático, inspirado; ou “menor”, tratando-se tão somente de ocupar o posto de líder ou governante);

  1. O alerta contra os abusos praticados pelos Juízes.

Aos juízes cabe garantir a cada um o lugar que lhe é devido segundo a vontade de Deus no corpo de seu povo; todo poder cuja fonte não se fundamente na justiça, que reporta a Deus, é vício daquele que manda (por ex: Lev. 19,15: Não cometais injustiças em juízo… Julga o próximo conforme a justiça);

  1. A implicação de castigo e salvação, na ocasião do Juízo.

A purificação do povo por meio do julgamento tem o propósito de reaproximá-lo de Deus e, portanto, deve ser compreendido no interior de uma economia salvífica;

  1. O anúncio da proximidade do Juízo.

Tal proximidade, por sua vez, acentua a seriedade do julgamento e a exigência de uma decisão imediata de emenda da vida (Mc 1, 15: Completaram-se os tempos, está próximo o reino de Deus, convertei-vos e crede no Evangelho);

  1. A salvação para todos os que confessam na fé.

As decisões que contam para a salvação já são tomadas durante esta vida, sobretudo na perspectiva joanina (Por exemplo em Jo 3, 18: Quem crê nele, não é julgado, e quem não crê, já está julgado, porque não creu no nome do Filho…).

Todos os lugares referidos são conhecidos da tradição da leitura bíblica associada ao tema do Evangelho em questão. Vieira, como qualquer pregador eficiente do período, domina perfeitamente esses lugares; para dizê-lo corretamente, eles já estão dados no repertório possível a ser selecionado em seu sermão. Quer dizer, são lugares argumentativos que estão desenvolvidos ainda antes que Vieira sequer comece a compor o sermão pela primeira vez. Mas antes de falar propriamente das escolhas feitas pelo jesuíta na produção desse Sermão da Primeira Dominga do Advento, que interessa aqui mais como exemplo de articulação disponível ou provável do que como andamento argumentativo específico, gostaria de considerar rapidamente a terceira ponta em jogo na produção das analogias de base de um sermão de matriz ibérica seiscentista.

C. As circunstâncias da enunciação

Vieira, como é sabido, chegou ele próprio a editar os seus sermões, após reescrevê-los nos últimos 18 anos de sua vida por ordem do Geral dos jesuítas, Padre Giovanni Paolo Oliva, um fino homem de letras. Nesse caso, as circunstâncias a considerar nos sermões compõem um domínio verdadeiramente complexo. Em primeiro lugar, é possível falar em circunstâncias “diretas” da pregação, que levam em conta a própria atribuição do jesuíta, ou de comentaristas, do local e data onde ela teria sido efetuada oralmente — no caso, a Capela real lisboeta, com a presença na missa do próprio rei D. João IV e de alguns de seus principais conselheiros. Em segundo lugar, cabe falar em circunstâncias “indiretas”, ou seja, aquelas que atuaram no momento da reescrita do sermão. Por vezes, como aqui, ele está distante muitos anos do suposto ato original da pregação, com alterações enormes na situação de sua produção. Apenas para dar uma breve idéia do tipo de distância envolvida aqui, basta observar que, desde a data atribuída de pregação, 1650, até a data possível de sua reescritura tendo em vista a edição ordenada pelo Geral, passaram-se mais de 30 anos, pois o sermão só é publicado na Terceira Parte da editio princeps, em 1683. A considerar o local da pregação e o da reescrita, a distância não se reduz. Houve deslocamento não apenas de cidade, mas de continente: da Capela do Paço Real da Ribeira, em Lisboa, ao Colégio da Companhia de Jesus, na cidade da Bahia, Província do Brasil.
Não é preciso, aqui, esmiuçar essas diferenças, mas apenas evidenciar as variáveis complexas que elas envolvem. Em termos da situação em jogo nas circunstâncias diretas do sermão, pode-se lembrar, ao menos, dos 5 ou 6 anos anteriores a ele, nos quais Vieira ocupou-se com importantes missões diplomáticas nas cortes de Haia, Paris e Roma, que lhe foram confiadas pelo primeiro rei Bragança, D. João IV. Nesse período, empenhara-se também na “reforma dos estilos” da Inquisição, que dava como necessária e decisiva para o retorno providencial dos cristãos-novos a Portugal. As suas atuações nesses episódios, entre outros, como é sabido, trouxeram-lhe inúmeras amizades e obstáculos naquela mesma corte que estaria assistindo à abertura do ano litúrgico no ano de 1650.
Já nas circunstâncias indiretas do sermão, pode-se aludir a um Vieira septuagenário, vivendo na Bahia, sem mais nenhuma expectativa razoável de retorno ao conselho real de Lisboa. Agora, a sua preocupação centrava-se, ao que consta, nas questões hermenêuticas lançadas nos escritos ainda parcialmente inéditos conhecidos como Clavis Prophetarum; nas disputas internas e externas da Ordem em relação aos negócios indígenas, e nas violentas desavenças, na cidade da Bahia, entre o grupo político de sua família, os Vieira Ravasco, e o dos Sousa e Meneses. Diante dessas diferenças acentuadas, algumas perguntas acabam sendo inevitáveis; por exemplo: de que modo as circunstâncias “diretas” poderiam ser relidas pelas “indiretas”? Isto é, de que modo “1650” é apropriado por “1683”? Qual a fala de “1650” que apenas se acaba de escrever em “1683”? De que maneira as tópicas litúrgicas e bíblicas determinantes do sermão permitiriam a (re)construção dessa fala?
Seja como for, é interessante notar que, se “1650” é o tempo de disputa do Vieira valido em busca de proeminência junto ao rei, “1683” é o o tempo de exílio definitivo da corte, quando a antiga disputa já estava definida contra o jesuíta. Assim, não parece abstruso imaginar que, da superposição dos tempos nos sermões, resulte um Padre Vieira que já não tem a perder por escrito o que pleiteava na suposta situação original da prédica. Essa circunstância poderia levá-lo, por exemplo, a tornar mais ousada ou mais dura a censura ao Rei e à Corte na versão reescrita em comparação com a que ele havia produzido na prédica diante d eles? São questões que exigem o cotejo de outros papéis e que ficam aqui apenas para assinalar a complexidade desse jogo de duplos temporais presente nos sermões.
Cabe considerar agora os argumentos efetivamente empregados no sermão de modo a amarrar as 3 pontas de significação analógica de que venho falando.

D. Os argumentos do Sermão do Advento, 1650.

Assim, considerando finalmente o sermão produzido por Vieira, é interessante notar que ele o inicia por uma ponderação misteriosa, como era prática comum nos sermões engenhosos seiscentistas. Pergunta Vieira pela razão oculta sob o mistério de caberem todos os homens de todas as épocas no mesmo Vale do Josafá, onde desceria o Cristo no tempo do Juízo Final; amplifica o mistério com a comparação irônica do vale do Juízo com a praça do Paço da Ribeira, onde os enormes séquitos de poucos grandes do reino, bastavam para tomar toda a sua extensão. Para apresentar a sua resposta ao caso, Vieira propõe ao seu auditório, à maneira inaciana, uma imaginação ou “composição de lugar” da cena do Juízo, de tal modo que as autoridades temporais e espirituais portuguesas, supostamente ali presentes, deveriam, então, imaginar-se como “réus” na expectativa do seu julgamento final naquele dia sublime, em que poderão salvar-se ou danar-se eternamente. Para o propósito particular desta comunicação, interessa apenas notar que, centrado na encenação do momento dramático da separação entre os bons e os maus, o sermão é levado a afirmar 3 aspectos decisivos do Juízo:

  1. a ressurreição na fé significará uma reparação, com arbítrio, da fortuna do nascimento;
  2. não haverá privilégio de “estado”, seja da nobreza, da realeza ou do eclesiástico: a investidura não determinará a salvação ou a condenação, mas tão somente as obras da vida;
  3. reis e cortes serão objeto de juízo especialmente rigoroso, por incorrerem em dois pecados principais: o “pecado da omissão”, quando se deixa de fazer o que o cargo obriga e onde a ocasião exige ação decidida, e o “pecado de conseqüência”, quando a corrupção do “voto” ou de um ato inicial traz sucessivos desmazelos. Ou seja, governantes e ministros deverão pagar com a própria condenação eterna os desastres em cascata causados pelas ações necessárias e justas que deixam de fazer na hora certa e pelas errôneas e injustas que fazem quando não deviam.

Bem defendidos os pontos elencados acima, Vieira já pode então revelar a razão oculta do mistério de caberem todos, vivos e mortos, a um só tempo, no estreito vale de Josafá. Propõe então que, na situação da vida presente, os homens que têm poder sentem-se imortais e incham de vaidade e soberba, ocupando grandes espaços com falsos bens, enquanto, no tempo do Juízo, esses mesmos outrora poderosos — que, por isso mesmo, tinham muitos outros homens a sua conta, sem que tenham sabido zelar por eles –, em vez de inchar, encolherão, mirrarão de tanto medo da sentença que se abaterá sobre eles. Caberão então todos, facilmente, onde antes não cabiam uns poucos. Combina-se, pois, um andamento ameaçador, acentuado pela composição cenográfica do tempo fatal do Juízo, e uma ponderação que se resolve, senão de maneira maldosa, ostensivamente irônica. Tal combinação é certamente um dos trunfos dos sermões bem temperados de Vieira.
Entretanto, o que mais me interessa notar é que os lugares argumentativos destacados acima, ajustados ao desfecho da razão oculta, mostram que Vieira, durante todo o sermão, esteve operando fortemente balizado pela tríplice articulação semântica que referi. Evidência ostensiva disso é a metáfora que finalmente decide o sermão, qual seja, “mirrar de pavor”. Se ainda cabe lembrança do início deste texto, ela estava dada já no Evangelho de Lucas ([…] arescentibus hominibus prae timore et expectatione […]) . O sermão determina, pois, uma espécie de “razão de lugar na República”, que se ilustra na comparação entre os antigos costumes virtuosos dos ministros, onde cada coisa era cabida, isto é, decorosa, e as práticas dos seus pares contemporâneos, nos quais ampliando a soberba já não cabem a honra, o decoro, a política e, enfim, perde-se a alma.
Assim, para encerrar, diria que o sermão tem seu início antes ainda de o padre Vieira compor uma só linha dele. Quando começa a pregação já uma máquina de composição está em andamento, pronta a fornecer-lhe os principais análogos da invenção e metáforas da elocução, bem como os cruzamentos entre eles. Esse aspecto básico do gênero parenético, que postula uma hermenêutica na qual as tópicas políticas ajustam-se à tradição bibliológica e litúrgica, segundo o jogo complexo dos tempos de sua produção, pode, entretanto, ficar soterrado sob as considerações tão entusiásticas quanto anacrônicas da “genialidade” de Antônio Vieira. Seja lá o que se queira indicar com os termos “gênio”, “genial”, “genialidade”, e sem pretender sequer recusá-los, parece-me, contudo, mais pertinente ou funcional referir a produtividade própria dos lugares convencionais do gênero, sobretudo considerado em sua inserção na tradição católica. Não há nada a temer: Vieira não perde nada com isso; ele não se torna um reprodutor vulgar de fórmulas do passado. Ao contrário: ele se torna uma autoridade no gênero ao emular a tradição e propor novas formas particulares de atualizá-lo e de torná-lo eficaz para novos auditórios.

Cf. Teatro do Sacramento (Editora da Unicamp/ Edusp, 1994).

Ou, na tradução portuguesa do Manual do Cristão, do Padre Leonardo Goffiné, cuja primeira edição alemã é de 1690: Naquelle tempo, disse Jesus a seus discípulos: Haverá signaes no sol, na lua e nas estrellas e n terra, consternação das gentes por causa da confusão do bramido das ondas; mirrando-se os homens de susto na expectação do que virá sobre todo o mundo, porque as virtudes do céo se abalarão. E então, verão o Filho do Homem vindo sobre uma nuvem com grande poder e magestade. Quando, pois, estas cousas começarem a cumprir-se, olhae e levantae as vossas cabeças, porque se approxima vossa redempção. E propoz-lhe esta comparação: Vêde a figueira e as mais arvores; quando começam a produzir fructo, conheceis que está proximo o estio. Assim tambem quando virdes estas cousas cumprir-se, sabei que está proximo o reino de Deus, Em verdade vos digo que não passará esta geração emquanto não se cumprirem todas estas cousas. Passarão  o céo e a terra, mas as minhas palavras não passarão.

Cf. “Juízo/Julgamento”, de W. Pesch, no Dicionário de Teologia Bíblica, organizado por Johannes B. Bauer, Volume II (S. Paulo, Loyola, 1983).

Cf., por exemplo, o primeiro preâmbulo do primeiro exercício de meditação dos Exercícios Espirituais: la composición será ver com la vista de la imaginación el lugar corpóreo donde se halla la cosa que quiero contemplar (…) (in Obras de San Ignacio de Loyola, Madrid, B.A.C., 1997). Citação à p. 236.

(…) mirrando-se os homens de susto na expectação (…)


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos