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Uma palestra com Graciliano Ramos: Vidas secas

A Gazeta,2 1938

Rio, 14 — Graciliano Ramos recebe-nos às nove horas da noite, em sua residência, dos lados de Bento Lisboa.3 Nós lhe havíamos pedido uma entrevista sobre o seu último livro, Vidas secas, que aparecerá dentro de poucos dias em edição de José Olympio,4 e o romancista de S. Bernardo, com a simplicidade de seu trato, se dispõe a falar.5 Estamos numa pequena sala de jantar, por onde entra, de vez em quando, uma leve viração, amenizando o mormaço da noite carioca.

Graciliano tem uma certa dureza no olhar, dureza que logo se desfaz no sorriso de franqueza e simpatia com que o romancista entremeia, a todo momento, a palestra.

Um mundo com cinco personagens

Vidas secas será um romance?
— Sim, um romance, mas um romance cujos capítulos podem ser considerados destacadamente como contos, tal a maneira por que nele se desenvolvem e encontram o seu desfecho e uma determinada situação. Publiquei vários capítulos de Vidassecas, aqui e na Argentina, e todo mundo os considerou como narrativas independentes.6 O livro tem, entretanto, uma unidade e o entrelaçamento de todos esses capítulos forma a tessitura perfeita de um romance.

— Por que Vidas secas?
— Acha o título um tanto estranho, não? São as vidas dos sertanejos nordestinos, existência miserável de trabalho, de luta, sob o guante da natureza implacável e da injustiça humana.

— Qual o ambiente do romance?
— O de uma cozinha de fazenda velha na zona árida do sertão. Apenas cinco personagens evoluem no livro: um homem, uma mulher, dois meninos e uma cachorrinha. Com essa comparsaria limitadíssima, criei o meu mundo. Aliás, não se trata de um romance de ambiente, como geralmente costumam fazer os escritores nordestinos e os regionalistas em geral. Eles se preocupam apenas com a paisagem, a pintura do meio, colocando os personagens em situação muito convencional. Não estudam, propriamente, a alma do sertanejo. Limitam-se a emprestar-lhe sentimentos e maneiras da gente da cidade, fazendo-os falar uma língua que não é absolutamente o linguajar desses seres broncos e primários. O estudo da alma do sertanejo, do Norte ou do Sul, ainda está por fazer em nossa literatura regionalista. Quem ler os romances regionalistas brasileiros faz uma ideia muito diversa do que seja o homem do mato. A falsidade e o convencionalismo são berrantes. Quer que eu os acuse num detalhe apenas? O sertanejo nordestino aparece na literatura como um tagarela, fazendo imagens arrevesadas e desmesurando-se numa loquacidade extraordinária. Pois nada mais postiço: o sertanejo daquelas bandas é de pouquíssimo falar. Sisudo e macambúzio, ele vive quase sempre fechado consigo mesmo, sendo difícil arrancar-lhe uma prosa.

Pesquisando a alma do primário

— O romance passa-se na zona árida do sertão?
— Sim, mas não me preocupo em pintar o meio. O que me interessa é o homem, o homem daquela região aspérrima. Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece na literatura. Os romancistas do Nordeste têm pintado geralmente o homem da zona do brejo. É o sertanejo que aparece na obra de José Américo7 e Zé Lins.8 Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do mundo físico e da injustiça humana. Por pouco que o selvagem pense — e os meus personagens são quase selvagens — o que ele pensa merece anotação. Foi essa pesquisa psicológica que procurei fazer, pesquisa que os escritores regionalistas não fazem e nem mesmo podem fazer, porque comumente não conhecem o sertão, não são familiares do ambiente que descrevem.

— E o senhor esteve muito tempo nessa região?
— Nasci na zona árida, numa velha fazenda, e ali passei quase toda a minha infância, convivendo com o sertanejo. Fui depois para a cidade estudar e mais tarde diversas vezes visitei o meu recanto natal, bem como outras paragens do sertão nordestino. Os meus personagens não são inventados. Eles vivem em minhas reminiscências, com suas maneiras bruscas, seu rosto vincado pela miséria e pelo sofrimento.

— Quer dizer que o senhor aplicou o princípio que Jacques de Lacretelle9 julga básico para o romancista: inventar com o auxílio da memória?
— Isso mesmo. Acho que ainda não descobrimos a alma do nosso primário e que o regionalismo, contra o qual se tem erguido uma certa grita, ultimamente,10 é coisa que ainda está por fazer. Os sertanejos aparecem sempre transplantados para outro meio e nunca no seu “habitat”. O que procurei fazer foi mostrar o homem no seu ambiente, vivendo a sua vida e falando a sua língua. É um livro amargo, duro, ríspido, mas verdadeiro, profundamente verdadeiro…

E, nessa altura, Graciliano desvia a palestra para outro assunto, achando talvez, na sua modéstia excessiva, que já falara demais sobre o seu livro. O calor da noite carioca continua cada vez mais abafado. E, na pequena sala onde nos encontramos, Graciliano, no seu falar simples e no seu rosto vincado, onde se vê o sinal de uma vida que não tem sido de sorrisos e amenidades — a áspera vida do intelectual no Brasil — é bem o tipo do sertanejo do Nordeste, o homem da zona árida, o beduíno do deserto brasileiro, mal-aclimatado neste recanto da terra carioca.

Do livro Conversas, de Graciliano Ramos. Organização de Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 66-72.


Notas

  1. Broca, Brito. “Vidas secas: Uma palestra com Graciliano Ramos — O sertanejo da zona árida — O homem no seu habitat”, A Gazeta, “Livros e Autores”, São Paulo, 15 mar. 1938, p. 8.
  2. A Gazeta: diário vespertino, fundado em 1906 por Adolfo Araújo, na rua Quinze de Novembro em São Paulo, com espírito republicano. Modernizou-se e teve êxito a partir de 1918, sob o comando do jornalista Cásper Líbero (Bragança Paulista, 1889–Rio de Janeiro, 1943), com a valorização de temáticas locais, regionais, culturais, esportivas e sociais, e a criação de suplementos inéditos na imprensa brasileira, como A Gazeta Esportiva (que depois se tornou jornal) e A Gazetinha (de histórias em quadrinhos). Como se opôs à Revolução de 1930, foi empastelada por getulistas. Em 1979, devido a uma crise financeira, passou a suplemento de A Gazeta Esportiva, que deixou de ser publicada em 1999 (GONÇALO JUNIOR. A guerra dos gibis: A formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 48-9; MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo, 1890-1922. cit., p. 189).
  3. Trata-se da pensão de d. Elvira, localizada na rua Correia Dutra, 164, quase na esquina da Bento Lisboa, Catete, Rio de Janeiro, na qual também morava Rubem Braga. Diz o cronista: “Estive outro dia me lembrando dele [Graciliano] e da pensão em que a gente morava, no Catete, no tempo em que ele estava escrevendo Vidas secas. A comida era simples e sadia, e geralmente abundante. […] A dona não acertava seu nome, e o chamava de Brasiliano; ele a princípio reclamava, depois se conformou, me explicando: ‘Eu pago tão pouco que ela pode me chamar como quiser.’” (RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 126).
  4. José Olympio (Batatais, São Paulo, 1902–Rio de Janeiro, RJ, 1990): Em 1936, lançou Angústia quando Graciliano ainda se encontrava encarcerado pelo governo getulista. Manteve-se como editor da obra do autor alagoano até o princípio dos 1960, quando os direitos autorais em torno de toda a produção do escritor foram adquiridos pela Livraria Martins Editora, de São Paulo. No “Autorretrato de Graciliano Ramos aos 56 anos”, recolhido nesta edição, Graciliano coloca José Olympio entre seus maiores amigos, ao lado do capitão Lobo (um oficial conhecido na prisão, em Pernambuco), de Cubano (preso comum que conhecera quando se encontrava na Colônia Correcional) e de José Lins do Rego.
  5. Em carta ao escritor Lúcio Cardoso, datada de 17 de junho de 1938, Brito Broca explicita que, antes de publicar as entrevistas que então vinha fazendo com diversos intelectuais brasileiros, apresentava-lhes o texto resultante da conversa, pedindo que emendassem possíveis equívocos. Adotou tal procedimento nas palestras com Arthur Ramos, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Com Lúcio Cardoso esse procedimento não teria sido levado a termo, o que gerou atritos entre entrevistador e entrevistado: este não se responsabilizava pelos mal-entendidos publicados, e aquele afirmava haver reproduzido fielmente tudo o que o romancista dissera (Cf. BROCA, Brito. “Carta a Lúcio Cardoso”. Rio de Janeiro, 17 jun. 1938, Fundação Casa de Rui Barbosa, not. LC Cp 036).
  6. Entre maio de 1937 e abril de 1938, dos treze capítulos de Vidas secas, dez foram publicados na imprensa carioca, antes que o livro viesse a público. Os textos, na ordem cronológica de sua primeira veiculação em suporte jornalístico, são os seguintes: “Baleia”, O Jornal, Rio de Janeiro, 23 maio 1937; “O mundo coberto de penas (trecho de romance a sair — Vidas secas)”, Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 32, nov. 1937, p. 3; “Pedaço de Romance” (excerto do capítulo “Cadeia”), Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 5 dez. 1937 (“Cadeia”, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 26 mar. 1938, Il. Borsoi, pp. 26 e 27); “Mudança”, O Jornal, Rio de Janeiro, 19 dez. 1937; “Trecho de romance” (parte do capítulo “Sinha Vitória”), Anuário Brasileiro de Literatura, Rio de Janeiro, 1938; “Travessura” (do capítulo “O menino mais novo”), Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jan. 1938 (Copyright de I.B.R); “Fabiano”, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 29 jan. 1938, pp. 22 e 23; “Serão” (fragmento do capítulo “Inverno”), Folha de Minas, Belo Horizonte, 16 mar. 1938 e Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 3 abr. 1938 (Do romance inédito Baleia — Copyright de I.B.R); “Festa”, Lanterna Verde, Rio de Janeiro, abr. 1938; “Viagem” (fragmento do capítulo “Fuga”), Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 14 abr. 1938 (Do romance Vidas secas — Copyright de I.B.R). Contos-capítulos do “romance desmontável” (como o chamou Rubem Braga no “Discurso de um ausente” em 1942) também foram publicados no jornal argentino La Prensa. Em carta a um de seus tradutores argentinos, Benjamín de Garay, Graciliano destaca: “Fiz, como lhe prometi, umas histórias do Nordeste, com bichos e matutos: tentei mostrar o que se passa no interior desses animais.” [Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia. Salvador: Edufba, 2008, p. 59].
  7. José Américo de Almeida (1887, Areia, Paraíba–1980, João Pessoa): Autor de A bagaceira (1928) e de Coiteiros (1935), entre outras obras, foi ministro da Viação e Obras Públicas nos dois governos de Vargas e pré-candidato às eleições presidenciais de 1938, que não chegaram a acontecer em decorrência do golpe de 1937 promovido por Getúlio. Participou da roda de conversas da Livraria José Olympio e chegou a ser retratado na célebre crônica que Graciliano dedicou a essa casa editorial. “Há um ar de família naquela gente. Otávio Tarquínio deixa de ser ministro e Amando Fontes deixa de ser funcionário graúdo. Vemos ali o repórter e víamos o candidato a presidente da República, porque José Américo aparecia algumas vezes.” (RAMOS, Graciliano. “A Livraria José Olympio”. In: Linhas tortas. 21. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 170).
  8. De sua íntima relação com a “zona do brejo”, o autor de Menino de engenho (1932) extraía sua força. “O sr. Lins do Rego criou-se na bagaceira dum engenho, e julgo que nem sabe que é bacharel. Conservou-se garoto de bagaceira, o que não lhe teria acontecido se morasse no Rio, frequentando teatros e metendo artigos nos jornais.” (RAMOS, Graciliano. “O romance do Nordeste”. In: Garranchos. cit., p. 140).
  9. Jacques de Lacretelle (1888, Cormatin, França–1985, Paris): Escritor, membro da Academia Francesa, autor de L’Écrivian public (1936), entre outros.
  10. Graciliano alude às críticas que o romance nordestino vinha recebendo, sobretudo da parte dos defensores da dita literatura intimista (escritores que deixavam de lado a representação de problemas sociais para privilegiar, no universo temático dos grandes centros urbanos, dramas individuais das classes mais abastadas da população). Destaque para o papel beligerante adotado pelo crítico e romancista católico Octávio de Faria, autor do polêmico “Excesso de Norte”. Nesse texto, vociferava que o movimento literário nacional se deslocara “gritantemente do Centro para o Norte”, depois de um processo que mais se assemelhava a “uma invasão, quase um delírio” (FARIA, Octávio de. “Excesso de Norte”,Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano IV, nº 10, julho de 1935, p. 263).

 Sobre Brito Broca

(Guaratinguetá, São Paulo, 1903 – Rio de Janeiro, 1961): Crítico literário e historiador que, a partir de 1934, se tornou responsável pela seção “Livros & Autores”, publicada pelo jornal A Gazeta, de São Paulo. É autor de, entre outras obras, A vida literária no Brasil: 1900 (1956) e Machado de Assis e a política mais outros estudos (1983). Foi Brito Broca quem pediu a Graciliano um artigo para a seção “Variedades” da revista Publicações Médicas e lhe sugeriu o assunto: o resultado é “Alguns tipos sem importância”, de 1939 (Confiram-se: BROCA, Brito. Prefácio a Linhas tortas. 5. ed. São Paulo: Martins, 1972; Remate de Males, Publicação do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Campinas, v. 11: Brito Broca — Vida literária e história cultural, 1991).