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O nonsense em Finnegans wake

Quando James Joyce se mudou para Paris com sua família em 1920, a capital francesa era o centro vital dos modernistas. Joyce influenciou as novas tendências literárias dessa época e também se deixou influenciar por movimentos como surrealismo, dadaísmo, cubismo etc. Finnegans wake nasceu sem dúvida sob esse impulso renovador.

Finnegans wake igualmente incorporou o nonsense, tal como este foi praticado por escritores da Inglaterra vitoriana. Acredito então que o problema da estabilidade e da instabilidade no romance joyciano não pode mais ser discutido sem se levar em conta esta herança.

Segundo Elizabeth Sewell, o nonsense “é um jogo no qual as forças da ordem, na mente, disputam com as forças da desordem, de modo que elas possam ficar em suspenso”. A inexistência de um ponto de repouso entre presença e ausência de significado, a instabilidade da lógica e instauração da dúvida, que constituem o núcleo do nonsense, estão atuantes também em Finnegans wake.

No livro The books at the wake, James Atherton dedica um capítulo ao estudo da influência do escritor inglês Lewis Carroll, um dos pais do nonsense vitoriano, sobre o último romance de James Joyce. De fato, entre a obra de Carroll e a de Joyce as afinidades são muitas. E afirmar isto não é novo, ao contrário, é reiterar aquilo que os estudiosos mais atentos já demonstraram.

Humpty Dumpty, personagem de uma canção infantil e um dos protagonistas de Através do espelho, de Carroll, é citado no Wake e poderia muito bem ilustrar o propósito da escrita de Joyce.

A própria figura do Humpty Dumpty é desestabilizadora: ele é um ovo que não é um ovo propriamente dito. No livro de Carroll, Humpty Dumpty diz à menina Alice: “Meu nome significa o meu formato… aliás um belo formato. Com um nome como o seu, você poderia ter praticamente qualquer formato”. Humpty Dumpty introduziu, nessa passagem, a questão do isomorfismo fundo-forma, tão óbvio em Finnegans wake, tal qual no capítulo VIII, que “fala” sobre rios e começa com o formato de um delta.

Ao mesmo tempo, esse isomorfismo parece arbitrário, tanto para Joyce quanto para Humpty Dumpty. Nem tudo tem o formato daquilo de que se fala: as gaivotas, ao final de Wake, poderiam fazer as palavras voarem aleatoriamente pelas páginas do livro, mas elas as mantêm organizadas na forma tradicional.

A questão do valor dos enigmas (adivinhas), que todo leitor de Finnegans wake conhece bem, também é tratada por Carroll nesse mesmo episódio de Através do espelho. Quando Alice faz perguntas, mesmo as mais óbvias, a Humpty Dumpty, ele as vê como enigmas a serem desvendados. É assim que, ao final de um longo diálogo, o ovo fala: “Que enigmas absurdamente fáceis você propõe!”.

Os enigmas de Wake também podem ser fáceis de resolver, ou não. Mais uma vez voltamos à estabilidade e à instabilidade do sentido nesse romance.

Assim como o hermeneuta Humpty Dumpty, Joyce, quando usa as mais estranhas palavras no Wake, parece querer que elas signifiquem exatamente o que ele quer que elas signifiquem, “nem mais nem menos”, como diria o ovo de Carroll. Mas quando Alice alega que, no entanto, as palavras podem significar muitas coisas diferentes, Humpty Dumpty conclui que, na realidade, dizemos o que dizemos, “resta saber quem você é e está tudo resolvido”. A respeito do infinito, o romance de Joyce é circular, a última frase dele remete à primeira e assim recomeçamos infinitamente a sua leitura. Cabe lembrar que o romance Sílvia e Bruno, de Carroll, também apresenta essa estrutura circular, que, como se verifica, não é nova na literatura de língua inglesa.

A circularidade é uma característica também dos limeriques de Edward Lear, contemporâneo de Lewis Carroll, cuja influência na obra de Joyce mereceria estudo mais atento. Nos limeriques de Lear, o último verso remete ao primeiro e assim infinitamente. Além disso, as ilustrações desses versos, de autoria do próprio Lear, criam um curioso espelhamento, multiplicando pessoas e situações, como se fossem infinitas.

Cabe lembrar ainda, voltando a Carroll, que Humpty Dumpty recita a Alice um poema sem final, o que deixa a menina perplexa. O ovo simplesmente afirma: “Acabou, até logo”. É assim que Joyce também se despede dos leitores de seu Wake.

Talvez o elemento mais importante do diálogo literário entre Joyce e Carroll sejam as palavras-valise e os trocadilhos. Tais jogos verbais partem de uma estabilidade semântica para chegar a uma multiplicidade de significados que geram a instabilidade.

É Humpty Dumpty quem explica a Alice o significado das palavras-valise (termo cunhado por Carroll), as quais trazem pelo menos dois significados numa só palavra. Joyce construiu palavras-valise muito mais complexas do que essas e trazem às vezes sentidos contrários, “laughtears” (lágrimas-sorriso), por exemplo, e é aí que chegamos ao paradoxo, outro recurso lógico do romance. Segundo Gilles Delleuze, “a força do paradoxo reside em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir à gênese da contradição”. Os paradoxos são, para Delleuze, “a subdivisão ao infinito (sempre passado-futuro e jamais presente).”

Por fim, concluiu o filósofo francês, o paradoxo nos leva a duas direções, sendo contrário ao bom senso e ao senso comum.

Alice parece ter razão ao afirmar, depois de longa conversa com Humpty Dumpty, que é bastante difícil “fazer uma palavra significar”. Cabe então ao ovo admitir que “são temperamentais, algumas… em particular os verbos, são os orgulhosos… com os adjetivos pode-se fazer qualquer coisa, mas não com os verbos… contudo sei manobrar o bando todo! Impenetrabilidade! É o que eu digo”.

A respeito da significação das palavras, Humpty Dumpty dá o seguinte conselho a Alice: “Cuide dos sons que as palavras cuidarão de si mesmas”. É praticamente o mesmo conselho de Joyce aos seus leitores: “Quando estiver em dúvida, leia em voz alta”.

Parece-me que Joyce buscava fazer uma obra total, muito próxima, num certo sentido, à poesia “primitiva” que influenciou grandes nomes da vanguarda, como Artaud, Breton etc. A letra e o som, o sensível e o inteligível, o passado e o futuro teriam o mesmo peso. Para Jerome Rothenberg, aliás, “primitivo significa complexo” e abarca “todas as margens da poesia canônica ocidental, tais como manifestações literárias e rituais diversos, sejam elas judaicas, negras, ciganas, ameríndias, ou mesmo no caso da poesia visionária de figuras como Blake ou Rimbaud”.

De acordo com Rothenberg, “é muito difícil decidir quais são precisamente os limites da poesia ‘primitiva’, uma vez que frequentemente não há nenhuma atividade diferenciada como tal, mas as palavras ou vocábulos fazem parte de uma ‘obra’ total maior que pode continuar por horas, até mesmo dias, numa direção. O que nós separaríamos como música & dança & mito & pintura também é parte dessa obra”.

Parece-me que Joyce não sentia a necessidade da separação desses elementos, aliás, aproveitava-os todos, por tudo o que já disse acima. Por isso, talvez, uma leitura performática de Wake, tal como a que John Cage fez, soe tão eficaz e seja tão coerente.


 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).