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O romancista Altair Martins

Se, em 2009, Altair Martins ainda demonstrava algum desgosto com sua pouca exposição alcançada como escritor, sobretudo obviamente em São Paulo,[1] hoje podemos afirmar que ele já se tornou um nome bastante festejado. Ganhador de prêmios literários, vai compor mesa com André de Leones e Carlos de Brito e Mello (mediação de João Cezar de Castro Rocha) na Flip 2012.

Apesar de se ter destacado como contista, sua consagração se deu por conta do primeiro romance, A parede no escuro, publicado em 2008, que levou, entre outros, o Prêmio São Paulo. É um livro interessante e, diferentemente daqueles menos simpáticos com o leitor, faz o que pode para ganhar a amizade. Outro romance é aguardado e, segundo o autor, abordará o tema da identidade.

 

A profundeza e a superfície da alma

Diferentemente de sua referência imediata, enquanto lemos A parede no escuro não somos mergulhados no abismo da alma a que a poderosa voz de Clarice Lispector nos conduz em A maçã no escuro.

Em A parede no escuro, a estrutura narrativa é montada sem a necessidade de um “pai narrativo” pegando o leitor pela mão, e qualquer sensação incômoda gerada por isso tem efeito semântico. Feito para funcionar sem esforço.[2] Até mesmo porque, em nome da coerência, um narrador tradicional não seria possível na forma como Martins investe na questão do desamparo, que é motivo do livro.

O que não quer dizer que não haja um diálogo entre Martins e Clarice.[3] Ambos caem nos abismos das relações humanas. Ambos trazem uma ressaca moral em sua mise-en-scène: o personagem do professor Emanuel no livro de Altair, recebendo o dia seguinte sob uma ótica do desamparo, por um lado; e o protagonista Martim na obra de Clarice, acordando para a emancipação por meio da culpa e do consequente amparo social, ainda que seja a punição prevista na Lei, por outro.

A relação mal explicada entre Adorno e sua filha e toda a crise do “pai”, da figura paterna, patriarcal, positivista, que condicionam o formato do livro de Altair Martins, andam lado a lado com a profundeza maternal, uterina, ancestral, com que Clarice Lispector narra o contato do protagonista com as mulheres, sobretudo, e com a metáfora da maçã no escuro.

Enquanto Emanuel não consegue lidar com seu desgastado papel masculino, historicamente dominante e decadente, mesmo diante de uma jovem aluna, os personagens masculinos em A maçã no escuro têm seus objetivos plenamente definidos, e mesmo a crise do protagonista – que passa por um retorno ao ponto zero da alma, quando qualquer palavra soa impura, repleta da presença do outro – é uma forma de autoconstrução, de autoconsciência e de tomada de consciência de sua função social.

Nem Emanuel nem qualquer outro personagem masculino do livro consegue lidar com as mulheres, elas tendo que suportar as consequências dessa situação. Já Clarice Lispector vislumbra através da fronteiriça solidão com que lidamos com o outro e todo esse inferno, assim como Sartre, que consagrou a ideia.

Em A maçã no escuro, a figura masculina é o símbolo do amparo. Daí a importância que Martim dá à pureza de seu vocabulário; ele passa a maior parte do tempo flertando com o silêncio, pois a construção de uma voz própria é sua forma natural de encarar sua existência perante o outro, e está envolvida no processo de “se fazer um homem”.

Clarice potencializa o eu dentro de um universo dos “milhões”; no livro de Altair Martins temos inúmeros personagens conectados por meio dos atos de apenas um indivíduo, que se desintegra nas consequências de seu convívio social, assim como o enredo, que não termina, desintegra-se até restar somente uma casca de pão sem miolo. Integração e desintegração.

 

Descaminhos de uma agonia

As I lay dying, traduzido no Brasil com o título de Enquanto agonizo, escrito por William Faulkner em 1930, também se alimenta de uma crise em meio à estrutura familiar sulista dos Estados Unidos, que vê o esfacelamento da figura tradicional de um narrador, bem como da autoridade paterna.

Em Faulkner, apesar de Enquanto agonizo trazer os nomes dos personagens nos títulos dos capítulos, e da estrutura mais simples, que restringe a uma voz narrativa cada capítulo, a sensação nauseante das primeiras páginas dessa montagem diferenciada é mais evidente. No meu caso, precisei chegar à última frase do livro para compreender melhor o início.

Enquanto agonizo
se volta para o inferno familiar, símbolo da relação do indivíduo com a sociedade patriarcal, e constrói a realidade a partir do caos.[4] Faulkner é um virtuose, mistura flashbacks, prosa poética, fluxo de consciência etc., de maneira também mais intensa. Mas afirmo que, nesse sentido, o romance de Altair Martins pode ser visto até mesmo como detentor de uma estrutura e um ritmo que facilitam a relação com o leitor: não lava a alma num tanque com as mãos de Clarice, nem é tão vertiginoso como Faulkner.

 

Narrador calado

Se o livro de Martins, a partir do fato, fragmenta o indivíduo – afinal, a conclusão do fato, perseguida o tempo todo, dá lugar a outra ordem de importâncias –, Reflexos do baile, de Antonio Callado, fragmenta não apenas isso, bem como a maioria dos aspectos da individualidade, transportando seu leitor para o tom impessoal de uma estrutura narrativa que mais parece um dossiê. O social é dominante.

Antonio Callado, justamente para adquirir essa impessoalidade, recorre não à voz dos personagens, mas terceiriza a versão do fato para as evidências, como bilhetes, cartas e outras formas de registro, o que não acontece na obra de Altair Martins. Ainda assim, com seus personagens sempre em busca de algo mais – seja uma forma positiva de alteridade ou uma figura paterna para recuperar a ordem do mundo –, A parede no escuro dá uma abordagem diferenciada a esses usos de certas metalinguagens do gênero. Não vai até onde os outros chegaram com a mesma engrenagem, mas faz bom uso dela.

 

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Notas:
1.
Entrevista à revista Literatura, ed. 27, http://literatura.uol.com.br/literatura/figuras-linguagem/27/artigo158314-1.asp
2.
Prova indireta disso é que A parede no escuro já vem com sua própria autocrítica imanente, uma dissertação de mestrado de Altair Martins em Literatura Brasileira pela UFRGS.
3.
Veja uma opinião diferente em:
http://oemporiodocesar.blogspot.com.br/2012/03/parede-no-escuro.html

4.
Harold Bloom menciona Faulkner em:
http://www.theparisreview.org/interviews/2225/the-art-of-criticism-no-1-harold-bloom


 Sobre Fabio Riggi

Jornalista, canhoto. Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 e 1959.