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O teatro está morto?

Considerado o sucessor do dramaturgo Eugène Ionesco (1909 – 1994), um dos mestres do “teatro do absurdo” europeu, o também romeno Matéi Visniec (1956 – ) acaba de ter sua obra publicada no Brasil pela É Realizações Editora, de São Paulo. Como Ionesco, ele também trocou sua terra natal por Paris, onde alcançou a consagração. Alguns dos títulos já à disposição dos brasileiros são: Teatro decomposto ou homem-lixo, A história do comunismo contada aos doentes mentais, A palavra progresso na boca de minha mãe soava terrivelmente falsa. Um título, no entanto, chama a atenção nessa coleção agora disponível ao leitor brasileiro: O último Godot (1987), que narra o encontro inusitado entre o escritor irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989) e seu personagem Godot (Esperando Godot, 1952). Godot, na releitura contemporânea de Visniec, tem uma visão bastante apocalíptica do teatro:

Beckett: Eu também quero dizer uma coisa. Lamento tudo que aconteceu. Se quiser, você pode entrar no final, como queira.
Godot: E pra quê? O teatro está morto.

Ao ser perguntado sobre o que quis dizer com “o teatro está morto” e se teria alguma relação com a situação do teatro na Romênia, Visniec explicou que, no seu país, o teatro “vivia (ou antes sobrevivia) enquanto teatro vigiado, perseguido (pelo poder), frequentemente desfigurado pelos pequenos ‘compromissos’ que os autores aceitavam para ver suas peças representadas.” Cabe citar, então, esta súplica de Godot:

Godot (choramingando): Eu não poderia viver sem o teatro … Não duraria muito…  Toda a noite, eu estava na plateia, estava entre as pessoas, vivia … Sofria como um animal, mas vivia… Vivia em tudo, em cada palavra… Como eles podem fechar tudo? Como podem jogar as pessoas pra fora? O que será de mim agora?

Porém, pode-se também pensar que a “morte do teatro” estaria relacionada com a descrença atual de que a arte (ou o teatro, mais especificamente) ainda poderia “salvar” o mundo; ou, também, com a ideia de um teatro que se esgotou enquanto função e meio. Segundo Jean-Jacques Roubine, “confrontado com o cinema, depois às técnicas audiovisuais, o teatro se revelou incapaz de redefinir sua função e seus meios. Do mesmo modo, pouco a pouco perdeu sua especificidade. Por não ter sabido inventar caminhos originais, esgotou-se numa tentativa vã de imitar o cinema.”

Na opinião de Patrice Pavis, ainda se experimenta um certo mal-estar ao se falar do teatro como uma mídia. Mais do que isso, as mídias e as tecnologias novas e antigas (filme, vídeo, projeção de imagens) “invadem o espaço inviolável da representação, ela própria limitada ao desempenho do ator.”

Essa atitude defensiva, diz Pavis, testemunha uma visão essencialista do teatro, que exige dele uma pureza midiática, como queria Grotowski, Kantor, Brook, entre outros grandes diretores do século XX.

Segundo essa concepção essencialista, o teatro, ainda que disponha cada vez mais de recursos materiais e técnicos, tornou-se incapaz de inventar e de afirmar a sua necessidade. Estaria estagnado entre as outras artes, como afirma Roubine.

Como então analisar o teatro multimídia, o teatro cibernético? Para Patrice Pavis, o teatro multimídia não seria simplesmente um acúmulo de artes (teatro, dança, música, projeções), mas um encontro de tecnologias. Já o teatro cibernético, diz Pavis, “é a utilização de mídias na representação teatral, sendo também, sobretudo, a utilização da Internet para produzir espaços virtuais.” Nesse sentido, um conceito de teatro puro estaria “morto”. As mídias fornecem outros modos de se ver o mundo, outros modos de se ver o teatro. Godot realmente ganharia as ruas, deixando para trás definitivamente o teatro convencional.

Segundo a teoria de Grotowski, tudo pode ser sacrificado no teatro, menos seu núcleo vital, que é a relação entre ator-espectador: “suprima-se um desses dois termos e estará se aniquilando, ao mesmo tempo, o fenômeno teatral”. Um ator privado desse face a face não poderá senão se dissolver no narcisismo, já que se tornará, em suma, seu único espectador. Contudo, o cyberteatro, afirma Pavis, usando um exemplo radical, “abandonou definitivamente o escrínio seguro do palco e da sala pela tela, lugar de projeção do cinema ou emissão (vídeo digital).” Muito antes disso o músico norte-americano John Cage, que tinha uma noção bastante abrangente de teatro, já dizia que “se você está num quarto e um aparelho de áudio está tocando e a janela está aberta e a brisa sopra a cortina, isso é suficiente, parece-me, para produzir uma experiência teatral”.

O teatro se arrisca cada vez mais a “perder” sua alma, como diria Grotowski, mas também se regenera nesse perigoso processo: é assim que ele se diversifica, se atualiza e se refaz, como lemos ao final de O último Godot. Depois de expulso do teatro,

Godot (olha em torno, assustado, a multidão sentada na rua): Meu Deus, o que é que eu vou dizer?
Beckett: Pergunte-me se eles me bateram … Enquanto eu tiro o sapato e olho para ele. Depois, você me pergunta o que estou fazendo. (Tira o sapato).


 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).