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PIERRE-LAURENT AIMARD, HOMMAGE À MESSIAEN

Lançamento: 14/10/2008
Selo: Deutsche Grammophon (B0012056-02)
Compositor: Olivier Messiaen
Intérprete: Pierre-Laurent Aimard
Stereo
57 min.

Pierre-Laurent Aimard é tido como um dos maiores intérpretes da obra de Olivier Messiaen. Foi um de seus discípulos, junto com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. Em fevereiro de 2008, gravou uma homenagem bastante sensível ao centenário de morte do grande organista e compositor. Tal homenagem, que faz parte de seu novo contrato com o Deutsche Grammophon, foi lançada pelo mesmo selo em agosto do ano passado e acaba de chegar às lojas de São Paulo.

Olivier Messiaen e Pierre-Laurent Aimard
Fonte: www.musicweb-international.com

O trabalho de “curadoria” feito por Aimard é inusitado. O pianista reservou apenas quatro das doze faixas do disco a obras relativamente mais conhecidas e de maior impacto experimental escritas por Messiaen. A maior parte do trabalho foi reservada a oito dos doze Préludes pour piano, compostos na década de 1920, quando seu compositor era ainda um estudante no conservatório de Paris.

A obra de Olivier Messiaen é de extrema importância para o desenvolvimento da música de vanguarda da segunda metade do século xx. Entre suas maiores contribuições, a ela e ao pensamento musical de seu tempo, estão a capacidade de se manter vinculado à tradição de forma extremamente inventiva e transformadora, com a criação e o emprego, por exemplo, dos “grupos-pedais”, que ampliam tecnicamente o conceito de pedal (som de obstinado prolongamento), transformando-o em grupos ostinatos de sons, ou a (re)descoberta da impossibilidade – ou do “encanto das impossibilidades”, como ele mesmo o chamava – enquanto fio de condução e enlace da obra.

Entretanto, não são essas as razões que levam Pierre Aimard a escolher, para a sua homenagem, os prelúdios para piano. Esses prelúdios foram escritos por Messiaen logo após a morte de sua mãe e apenas uma década após a morte de Claude Debussy, grande influência para a formação do compositor. Desse modo, os Préludes carregam alta carga emocional e revelam um momento decisivo na formação das primeiras idéias, experiências de vida e concepções musicais e estéticas de seu criador.

Além de poderem ser vistos como uma espécie de elaboração da circunstância da morte – o que certamente acarretaria em observarmos tais peças enquanto objetos muito caros ao lírico e ao topoi da efemeridade da vida –, pode-se dizer que, ao tomar Debussy como ponto de partida, os Préludes pour piano de Messiaen se inserem dentro da longa tradição pianística do prelúdio, que se caracteriza pelas formas curtas e de motivos improvisados e da qual fazem parte mestres como Beethoven, Chopin e Scriabin.

Messiaen atualiza o gênero e descobre, nesse ato, muito de suas potencialidades como compositor singular de amplo domínio da composição musical: cores, movimentos, paisagens, atmosferas e intensidades de afectos são a matéria que proporciona ambiente aos Préludes. Nota-se, já nos títulos dados a cada uma das oito peças, o interesse pelo universo dos sons dos pássaros, a exemplo de La colombe (A pomba), que nessa fase inicial do compositor evidencia mais uma atenção ao voo e ao movimento desse pássaro do que ao seu som propriamente dito – o que mostra, ainda, uma forte ligação com os prelúdios de Debussy, muito preocupados com as relações de movimento efetuadas entre os sons.

Olivier Messiaen e Pierre Boulez
Fonte: www.boulezian.blogspot.com

Nota-se ainda nesses prelúdios um diálogo do jovem Messiaen com a poesia surrealista – da qual foi um assíduo leitor –, como no título e na atmosfera suspensa de Les sons impalpables du rêve, em que se opera um intenso trabalho de cores entre, segundo o próprio Messiaen, tons “azul-laranja […] e violeta” entre “arborescências cabeludas, turbilhões de sons e confusões de arco-íris”.

Além disso, os prelúdios se mostram dotados de um alto coeficiente de ambientes emocionais que se distribuem das paisagens tristes, noturnas e misteriosas a uma agressividade e vigor dos fluxos rítmicos e harmônicos, dignos da superação vigorosa que tais peças representam na vida de seu criador em relação ao prematuro falecimento materno.

Anteriores ao Quatuor pour la fin du temps – obra escrita entre 1940 e 1942, enquanto Messiaen esteve confinado no campo de concentração Stalag viii-A, marco na carreira do compositor –, os Quatre études de rythme (1949), dos quais os dois últimos movimentos (“Île de feu i” e “Île de feu ii”) foram incluídos por Aimard na gravação, são de extrema relevância à técnica de composição do século xx. São estudos de ritmos não-ocidentais que buscam relativização e independência do ritmo enquanto parâmetro da obra musical.

Nesses estudos Messiaen confere ao parâmetro rítmico, por meio de dinâmicos turbilhões de colorida percussividade ao piano, total independência da função de criar sentido e unidade nas peças (que passa a ser contemplada por parâmetros harmônicos e melódicos), tornando-se um elemento sujeito a uma condução altamente orientada pela composição motívica e geométrica.

Pode-se dizer, dessa forma, que tais estudos são, do ponto de vista estético, o avanço dado por Messiaen à perspectiva que Stravinsky propôs à musica moderna na Sagração da Primavera. Além disso, segundo o historiador da música Roland de Candé, os Quatre études de rythme adquiriram uma importância histórica particular por pretenderem um “prolongamento das idéias de Einstein sobre a interpretação dos parâmetros temporais e espaciais”.

Estão inclusas ainda na homenagem prestada por Aimard duas peças que compõem o Catalogue d’oiseaux (Catálogo de pássaros): L’alouette lulu (A cotovia pequena), que trabalha dégradés de sons descendentes à imitação do marulhar da cotovia, e La bouscarle, nome de um pássaro nativo da Europa, presente apenas nesse continente, que trabalha grande variedade de pios e marulhos, organizando-os com estremo dinamismo e originalidade.

O teatro ornitológico de Messiaen, composto pelas obras Le réveil des oiseaux (1953), Oiseaux exotiques (1956) e Catalogue d’oiseaux (1958) – as duas primeiras para piano e orquestra e a terceira para piano solo –, faz parte do projeto, ao mesmo tempo radicalmente experimental e de um naturalismo empirista, que procurou por uma solução anticonservadora e original para o totalitarismo da técnica serial que se instalava no ambiente erudito da música dos anos 1950, relacionando-se, através da investigação da cosmogonia contida na natureza do canto dos pássaros, a uma religiosidade surrealista e libertária cultivada discretamente.

Em síntese, os concertos de passarinhos, sistematicamente organizados por Messiaen a partir da coleta de intervalos sonoros produzidos por pássaros, se configuram como complexos diálogos dramáticos entre seres não-humanos dotados do conhecimento de milenares mistérios do tempo e do espaço condensados acusticamente pelas melodias, ritmos e harmonias surgidas de um contraponto sistematicamente aleatório.

Olivier Messiaen
Fonte: www.newyorker.com

Reunindo peças que apresentam em comum uma atmosfera noturna, grave, de grande riqueza de cores – mesmo que com tons escuros – e alta complexidade rítmica, harmônica e melódica, Aimard homenageia seu mestre selecionando peças escritas em períodos de grande tensão e importância, tanto para a vida emocional quanto para a carreira de compositor de Olivier Messiaen. Elas foram tocadas pelo pianista com alta precisão técnica, agilidade e vigor rítmicos – elementos demandados em alta proporção pela desafiadora escrita de Messiaen – sem perder de vista a delicadeza e a suavidade características da tradição pianística francesa.

Tanto a interpretação de Pierre Aimard quanto as composições de Messiaen interpretadas nessa gravação são para o ouvinte um excelente contato com as dimensões trabalhadas pela arte dos sons enquanto investigação das propriedades acústicas do tempo e do espaço. O ouvinte é facilmente seduzido pelas surpresas, intensidades e complexidades presentes nesse trabalho, e certamente não sairá ileso ao experimentar sua desafiadora audição.

A audição em si desse excelente trabalho ainda se faz como a única maneira de, realmente, compreendê-lo, já que todo texto sobre música é uma abstração metafórica, sendo a própria música, segundo o esteta musical italiano Enrico Fubini, a arte abstrata de fazer “emergir o que é sufocado ou permanece em estado latente na linguagem”.

A dupla Messiaen-Aimard, reunida nesse disco, fica, por tantas razões, altamente recomendada ao leitor de Sibila por reivindicar, como reivindicou Olivier Messiaen, uma música “furta-cor, que proporcione ao sentido auditivo prazeres voluptuosamente refinados”.


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