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POR QUE EXPULSAR DE VEZ O POETA?

O que crio não é para me expressar,
mas para mudar a mim mesmo.
John Cage

Aos poetas deveria ser dado o direito apenas de escrever poesia. Não há nada mais entediante hoje do que ouvir um poeta falar em público. Isso porque, em última instância, o que ele fala é sobre poesia. É raro, aliás, quando diz qualquer coisa que não seja sobre ele mesmo. Cheguei a dormir em recente conferência onde um desses grandes aedos, que se multiplicam pela cidade e semanalmente opinam nos cadernos culturais, contava em detalhes sua trajetória de vida, antes mesmo de se tornar poeta, provando sua competência em qualquer coisa em que viesse a atuar, mas – para o bem da poesia – se dedicou à escrita. “Eu nem gostava de literatura”, dizia ele, “meu interesse era outro, era polo aquático. Eu era um ótimo jogador de polo… até que conheci os grande autores.” Outro gênio ao lado, também palestrante, no esforço talvez de confrontar a postura por demais elitista do colega, declarou em seguida: “Eu nunca precisei ler poesia, só escrever”. Apesar de terem ali assumido “lados opostos” em relação ao exercício da escrita, eles deixavam ao público apenas a sensação de estarmos testemunhando potências criativas de dimensões avassaladoras. No fim, pouco ou nada disseram sobre poesia, além daquilo que eles, enquanto poetas, deram como contribuição própria.

A postura de ambos, cuja oposição anula-se por uma única e real atitude diante da poesia, deixa entrever uma corriqueira coincidência: o fato desses e de outros gênios escreverem versos que se resumem a uma sutil ostentação de sua joye de vivre, de seu status quo enquanto intelectual e da freguesia na qual se encastelam por falta de leitores – seja partilhando os lugares bacanas que frequentam, as sensações agradáveis, suas conclusões descoladas e seus cosmopolitismos capiaus, seja levantando suas automarginalidades, suas atitudes contracorrentes ou seus estilos junkies de ser como estandartes da obra que produzem. O fato é que, trocado em miúdos, tais ou tais posturas chegam a um denominador comum: o segundo plano legado à poesia diante da figura do poeta – vulgar perpetuação do ideal romântico do artista egocêntrico, aquele semideus do próprio eu, transitando entre mortais, orgulhoso do fato de só ele poder ser ele. Ideia tão vulgarmente atacada desde o século xx e, em certo sentido, “superada”, mas ainda amplamente praticada com outros nomes e critérios.

Num tempo e lugar onde a poesia não passa do mais “fajuto” dos bens culturais, a qual, muito aquém de tornar alguém rico ou famoso, pouco esgota uma edição de quinhentos exemplares – prova quase empírica de que nem mesmo os poetas, uma população em larga expansão, leem os poetas –, essa postura, no meu entender, é o que mais afasta os leitores, tornando o mercado editorial de poesia um salve-se quem puder, onde cada autor luta para morder um pedaço de carne no osso, variando sutilmente o talento e o posicionamento, mas esbanjando vaidade. Apesar de chegarmos à proeza acadêmica de propormos a crítica ao presente, os poetas, mais do que nunca, estão voltados para o passado, recusando todo aquele que lhe seja contemporâneo. Transparece a mensagem na qual cada poeta entende que seria o único vivo merecedor de leitura. E, como acontece com todo bem cultural, sendo a oferta infinitamente maior que a demanda, acaba-se difundindo uma escrita que, quando muito, interessa a uma pequeníssima parcela da população, tornando o universo da poesia cada vez mais um gueto, como são os dos ouvintes de black metal e dos jogadores de rpg. Fica difícil compreender como, no mundo onde o sujeito se afirma sujeito através da subestima ao outro, podemos admirar algo que não seja produto da própria subjetividade. Como dialogar se o interesse se mantém na expressão das vivências pessoais, para aquém de experiências concretas, estas que envolvem um exercício de escuta e abertura ao outro? Não um outro selecionado para constar entre os compadrinhos e amigos, logo, em função de si mesmo, mas o completo outro, indeterminado e desinteressado. A expressão é a moeda de troca vigente, e o artista, sobretudo o poeta, um certo comerciante barganhando seu “universo interior” a quilo. Mas e a arte? O impasse se torna claro no fato de que qualquer viagem de psicotrópicos seria o suficiente para produzir uma obra-prima – o que não acontece.

Curioso, porém, é como essa continuidade da supervalorização romântica do autor acabou por viabilizar hoje, contrariamente aos ideais do próprio romantismo, uma realidade por vezes brutal no que tange a instrumentalização do indivíduo. Mesmo atos normalmente despreocupados, como a eventual citação de um colega numa conferência ou numa entrevista, acaba ganhando tamanha dimensão política que implica na escolha detalhada daquele que será citado – escolha esta que depende de uma ação de canonização do citado para que este possa estar à “altura” de quem o cita –, ainda que seja para atacá-lo.

Antes de se basear na qualidade ou não do citado enquanto escritor, ou mesmo em fatores de natureza estético-ideológica, esta canonização tem posto em jogo princípios outros que pouco se referem à poesia – influência, endogamia, adulação, tensão de forças e poderes. Assusta ainda mais que o mesmo aconteça se o exemplo for transferido para uma mesa de bar ou qualquer outro ambiente informal, onde a escolha do citado não deveria ter uma relevância maior do que a da recordação de um bom encontro, de uma boa anedota ou de um bom porre. Também nesse ambiente, o indivíduo é selecionado segundo a relevância de sua citação. Tal comportamento repete-se largamente em outros exemplos, onde os artistas se veem diante da escolha de qual lançamento, palestra, vernissage ou festa devem comparecer, quais livros comentar em seu blog ou quais nomes citar em uma conversa. Nesta técnica da canonização, o outro perde sua dignidade de indivíduo para se tornar um objeto, um instrumento de reafirmação daquele que o cita, num movimento onde a própria citação converte-se em espetáculo de sua subjetividade – onde a poesia, por sua vez, vê sua dignidade poética alterada em um discurso vazio.

Tal relação entre a valorização romântica do artista e a instrumentalização do indivíduo não apresenta de fato nenhuma contradição quando percebemos que esta se baseia no mesmo princípio do sistema no qual vivemos, onde a reafirmação da crença absoluta no sujeito é a força motriz do módulo de produção e consumo. Para reafirmar o sujeito – através do consumo – é preciso antes reduzir-se a objeto – através da força de produção. Basta observar qualquer comercial de televisão, onde o apelo de exclusividade do indivíduo propiciado por determinado produto varia de acordo com o seu valor de compra. Quanto mais caro, mais “exclusivo” será aquele que o consome. Em outra instância é mesmo óbvia a percepção de que tal comercial é transmitido em rede nacional, propondo “exclusividade” para milhares de pessoas em tempo real, criando assim uma massificação e uma instrumentalização do direito à individualidade. Enquanto valor de compra, a individualidade, a dignidade do – e enfim, a própria condição de – poeta será medida a partir desta lógica da canonização, onde o que se tem em vista é a cotação na bolsa de influências e citações. Eis o canibalismo de todas as carnes.

Partilhando dessa mesma ideologia de transmutação do indivíduo em recurso (canonização), perpetuam-se noções que tanto resistem à construção de parâmetros amplificadores no que tange o diálogo entre leitor e obra, popularizando, pior, massificando eternamente aquela pequena parcela de textos de uma ainda menor parcela de autores resguardados pelo cânone ocidental. Os poucos “gênios” que a história elegeu para excluir todo aquele que não se enquadrava nesta ou naquela escolha política, que em outra dimensão determina esta ou aquela compreensão da realidade, não são nada mais que um subproduto dessa tentativa antiga e eficaz de fundamentar a soberania dos valores da tradição europeia. As centenas de compositores barrocos, das mais diversas nacionalidades, deixados de lado em função daqueles quatro ou cinco italianos e alemães eleitos para representar a música eterna é um verdadeiro massacre intelectual. Um genocídio, com proporções devastadoras, de toda uma gama de riquezas e preciosidades musicais conhecidas apenas de estudiosos e especialistas. Se passarmos da escala diacrônica para a perspectiva sincrônica, excluímos também toda a produção deslocada dos grandes centros culturais, de hoje e de ontem, uma vez que o princípio da genialidade compartilha, sobretudo, do princípio de um espaço adequado ao nascimento desse gênio, onde ele estaria convenientemente exposto, desde o berço, a um fértil terreno de cultura e liberdade (leia-se, projeto civilizatório). Mesmo que, tentando remar conforme a correnteza, elejamos Machado ou Guimarães como “gênios” (e ainda que o sr. Bloom também os reconheça), não esqueçamos que suas obras nunca serão consideradas verdadeiramente “obras da humanidade”, a menos que haja uma drástica mudança geopolítica e linguística, colocando o português no centro das negociações culturais no mundo. Prova real de uma matemática simples: gênio é antes aquele que tem poder para eleger-se. O que sobra é a resignação de não ser lido ou comentado, como não o são os milhares de “gênios” dos países periféricos. E assim, diminuindo a escala do microscópio e direcionando-o ao presente, voltamos à nossa pequena pólis com sua microfísica idêntica àquela praticada em escala global e há muito tempo.

Cheguei a me perguntar se tal característica, a de ferramenta de poder e articulação política, raramente questionada ou mesmo percebida, não seria a verdadeira essência da poesia moderna. Apesar de ser uma questão cada vez mais refletida entre os cientistas políticos e filósofos de nosso tempo, é o poeta que deve (ou deveria) de fato preocupar-se com ela. A poesia é a que tem mais a perder – isso, claro, se entendermos poesia como diálogo e não enquanto meio de expressão e autoafirmação. Mas ainda que resumir-se, a ferramenta venha a ser a real essência da poesia moderna, há uma essência ainda mais essencial a toda poesia de qualquer tempo ou lugar e que, enfim, é o que a caracteriza enquanto poesia: sua recusa em resumir-se ao discurso do poeta. A poesia é um diálogo que faz a mediação entre leitor e mundo, em uma tensão que os reúne e os religa essencialmente, onde o poeta é “intermediário” e nem ao menos deve orgulhar-se disso. A poesia tem, portanto, um papel muito mais profundo e crítico que o discurso do poeta, por melhor que este seja, e já se configura um antidiscurso que traiçoeiramente o coloca em condição também de “leitor”. Esta dimensão de compreensão do que venha a ser poesia precisa ser retomada imediatamente, pois, enquanto interlocutor e interlocução deste colóquio profundo, o leitor, mais cedo ou mais tarde, cobrará sua parte, correndo risco, o poeta, de ser uma outra vez expulso da república, dessa vez, em prol de uma poesia oriunda da terra e do magma vulcânico – e não dos restos deixados pelo suposto fim da história. Contra a cultura letrada, tal debate caminhará para a destruição do conceito de gênio, e o poeta (por extensão, todo artista) irá recuperar o seu papel autêntico, perdido há algum tempo, o de propiciador do diálogo, radicando-se no exercício mundano de compor para o outro.

Compor para o outro por vezes é confundido com o compor pensando num público – mas nada pode ser mais egoísta do que compor segundo demanda de mercado. O mercado promove, através da massificação, a objetivação máxima do outro. Quanto mais o artista permaneça nos moldes preestabelecidos das demandas de mercado – pelo fácil caminho dos modismos estilísticos ou pelas superações supostamente dialéticas exigidas por este –, tendo em vista a ascensão na bolsa da aceitabilidade estética, mais se aprisiona no próprio ego, primando antes pelo uso do trabalho (e do outro) em proveito próprio do que pelo movimento da obra enquanto Obra. O outro é a potência geradora de toda diferença, aquela que evidencia e põe em questão a própria identidade. Ao outro se deve reverência, pois somente através dele nos ordenamos dentro e fora de nós. Observador que nos observa e por onde nos observamos a nós mesmos, é pelo outro que se pode conceber um eu. Enquanto medida, ele nos dá, antes de tudo, algum parâmetro não-metafísico de existência, pois somos sempre outro para o outro, tornando este eu,tão fortemente acentuado pela trajetória racionalista do ocidente (cuja última linha de defesa filosófica havia sido o existencialismo), irrelevante, e anulando-o nas inúmeras possibilidades de ser concebido pelo outro – impossibilitando qualquer fixação de um estado absoluto e real do eu. Em nossa tradição mais recente, a poesia foi considerada a arte do eu por excelência, esta potência egoísta e excludente. Mas somente o cotejo das diferenças e a contemplação da outridade podem autorizar a consumação do estado poético autêntico. Diálogo, a poesia é um movimento dinâmico cujo vetor aponta na direção do caos – gerador de todas as coisas – e só pode ser concebida enquanto potência máxima das possibilidades e impossibilidades – tal potência se configura no outro. Não estamos falando de altruísmo, nem de solidariedade. Consideramos uma escala tão mais amplificada de ação que, dentro de suas aplicações, altruísmo e solidariedade desapareceriam enquanto conceito por serem desnecessários. Notemos também que estanciar na escala do eu não se identifica a escrever um poema em primeira pessoa. Grandes poetas utilizam a primeira pessoa para falar daquele múltiplo que, disfarçado de eu, confunde-se com o outro. Fernando Pessoa talvez seja o exemplo mais adequado, visto que concebeu uma infinidade de outros, nomeados por diversos eus.

Sendo a arte o real espaço da diferença e do desconhecido, cabe ao artista a percepção de que somente pelo compromisso com o outro é que a Obra pode manter-se dinâmica e correr na direção contrária à centralização imposta pelo sistema de bens culturais. Quanto mais o artista se engaje na contramão, quanto mais se aprofunde nessa tentativa de auscultar o mundo, fundamentando poéticas radicais e provocadoras, portanto, diferenças, mais ele se doa ao outro – justamente por doar o que a este jamais havia sido doado antes: uma outra possibilidade de mundo. Mas este é também um caminho ardoroso e por vezes solitário, pois, antes de trilhar os caminhos já trilhados, exige que se abra na mata uma senda inexistente, despertando por vezes o ódio e o desprezo daqueles a quem se quer chegar. Essa postura, que pode ingenuamente ser entendida como vanguardista, não se refere a uma mera inovação formal ou a exclusividade nos modos de criação, mas à sinceridade com a própria Obra.

Há tantas possibilidades de mundo no qual o mundo se ordena, há tanta força na potência oculta, logo infinita, da poesia e da arte, que seria ingenuidade demais acreditar em apenas meia dúzia de caminhos consagrados pela farsa da tradição – este sim é o verdadeiro formalismo, aquele que tem na tradição (instância máxima da lógica da canonização) a alternativa futura de um passado predeterminado. Se até a capacidade da fala é uma adaptação, um “desvio não-natural” do organismo, a partir de órgãos com funções fisiológicas específicas (respiração, digestão etc.), nada pode ser determinístico, nada pode servir como baliza para a consumação das possibilidades plenas da poesia. O sistema fonador é uma dádiva da cultura, fruto da necessidade que tivemos desde o início de falar poesia, onde a própria fala é um poema do corpo, como o mundo é um poema do desconhecido. O desconhecido, por sua vez, é a potência máxima da imagem do outro.

E aqui se conforma um caminho ético. A questão ética não deve ser identificada com questões meramente morais, nem com falsos engajamentos políticos. A ética é a correspondência à interpelação das possibilidades de mundo – interpelação sempre jogada ao desconhecido –, portanto, um caminho mundano que chama em resistência ao que há de falso e secundário no que tange a realização poética. A saber: tudo aquilo que submeta a Obra a outros desígnios que não os dela mesma. A poesia só permanece na totalidade. Sem ética, se esfacela e se estanca em fragmentos meramente formais, se prestando a ferramenta política e moral. A ética é um tal engajamento da vida na escrita que a própria escrita passa a suplantar a vida do autor.

O enorme coração do cavalo bombeia sessenta vezes mais sangue que o do cavaleiro. A poesia bombeia 60 mil vezes mais sangue que o poeta. É preciso deixá-la tomar o controle. A poesia não é o lugar para fazer o que se gosta, mas o que se duvida. Não é um passeio de domingo, mas uma viagem turbulenta por caminhos desconhecidos, sobretudo para o poeta, e que o afeta de tal maneira que não se pode deixar de ser moldado por ela. Por isso o poeta deve ser, antes de tudo, um leitor – para decidir-se poeta somente quando da certeza de suas dúvidas –, isto é: escrever não por expressão, mas pela radical necessidade de vasculhar o que ninguém se atreve a vasculhar por ele. O poeta nunca deve ser maior que a poesia que escreve. Deve sumir diante dela e restar na ordinária condição de indivíduo – aquele que vai à padaria, que assiste a um filme ruim na Tela Quente, que nunca foi o preferido da professora, que não ostenta essa ou aquela condição, que não é melhor ou pior em relação a qualquer outro – de tal forma que falar de aspectos de sua vida não venha a ser mais importante que a poesia contida nela. Em verdade, já não haverá diferença entre vida e poesia, ao contrário dos exemplos citados no início do ensaio, onde a poesia não passa de um recurso retórico tendo em vista a canonização do autor – não é a vida que se impõe à poesia, mas a poesia que gera a própria possibilidade da vida. O poeta deve ser, consequentemente, aquele que se interessa pelas pessoas, poderosas ou não, que se ocupa de todo aquele que não tenha nada a lhe oferecer. Somente assim, lutando em pensamento e ação por uma ética da escrita, a poesia poderá ser, como já foi na antiguidade e em casos muito recentes, a arma mais incisiva e poderosa contra as incoerências da realidade. Ser ético é, portanto, escapar ao próprio ego e engajar-se na quântica das palavras. Essa é a dimensão da qual o poeta não pode abrir mão. Se ele for complacente com o sistema, quem mais deixará de ser? Somente sua simplicidade e renúncia podem redimi-lo, muito além das ilusões criadas para suportar sua real insignificância social. O cinismo só se torna válido quando duvidamos de nós mesmos. O artista que tem medo de duvidar, seja de si, seja do mundo que o aceita, tem medo de deixar de ser como é, pois ainda se admira como o sujeito de uma realidade objetivadamente imutável, e não como centelha de um universo mutável. Este ainda não está pronto para a caminhada. Sua viagem se limita em ir até a esquina e voltar.

 

Do livro Ensaios radioativos

Resposta a Francisco Bosco

Não tenho problemas em receber críticas negativas a meu trabalho. Sempre fui partidário da teoria de que uma opinião divergente é sempre mais útil e por vezes mais sincera, motivada por certo incômodo mais radical, mais primitivo e por isso mais autêntico, sendo fundamental para a caminhada de todo escritor ou artista. Essa crítica negativa, quando honesta, é fruto de um envolvimento profundo do crítico com a obra e merece respeito. Diante disso, eu me sentiria obrigado, desde já, a agradecer a esmerada resenha aos meus Ensaios radioativos publicada por Francisco Bosco no suplemento Prosa & Verso de O Globo da semana passada.

Mas, apesar de toda a atenção dispensada ao livro, o que constatamos é que o resultado nem de longe procede de um exercício crítico. A resenha em questão me soa meramente vexatória. Intitulada ironicamente de “Afirmação poética da vida”, a resenha parece ter o único objetivo de criar um mal-estar sobre o livro e é explícita, do subtítulo à legenda da foto, a intenção de desqualificá-lo por meios espúrios. Tal impressão não me seria tão evidente se a crítica se resumisse a aspectos do livro enquanto obra literária e não a fatores externos (os quais ela mistura com a obra), numa antiga prática de desqualificar um discurso através de armadilhas retóricas. A própria decisão de abrir o texto apontando os pontos positivos do livro nada mais é que um antigo recurso para dar a sensação de neutralidade. Mas, basta passar essa parte inicial para notar que estamos diante de um festival de má vontade: por pura má vontade, desloca fragmentos do livro de seu contexto e os entrega, acrescidos de um julgamento seu, ao leitor do suplemento, que, sem acesso ao original, jamais poderia perceber do que se trata. Por má vontade, o crítico confunde argumentação teórica com “autopromoção” e ironia com “vaidade”.

Pois, no que concerne à crítica efetiva (tirando a parte elogiosa), só há um momento em todo o texto que se refere de fato a algo contido no livro: o momento em que ele afirma erroneamente que eu me aproprio do conceito de “escuta” do filósofo alemão Martin Heidegger. Nota-se que o crítico escolheu, para falar disso, o texto que aborda as relações epistemológicas entre Heidegger, Pound e a física das partículas, e que, portanto, traz diversas citações do pensador alemão, não sendo elas necessariamente conceitos meus e nem apropriados por mim. Para completar, ele conclui demonstrando ter reconhecido algumas das teorias subjacentes ao pensamento do livro, entre elas a da hermenêutica e a dos estudos culturais, sendo lamentável, entretanto, como já as enquadra em categorias estanques, que se anulariam impossibilitando qualquer diálogo entre elas, como se qualquer conceito delas aproveitado evocasse inevitavelmente a totalidade de seus pressupostos e ao mesmo tempo suas previsíveis conclusões.

Um dos focos da crítica do livro Ensaios radioativos é justamente o pensamento puramente epistemológico adotado por intelectuais propensos às segmentações teóricas e limitado em questões meramente disciplinares, que ocultam, por baixo de uma carapuça de intelectualidade e erudição, uma pobreza de pensamento sem limites. O que, na minha opinião, consiste em total incapacidade de prever ou conceber algo novo, evidenciado na aparente incapacidade desse crítico de perceber uma alternativa filosófica a partir de teorias que as cartilhas lhe ensinaram serem antagônicas. Caso sua leitura fosse mais atenta, ele certamente encontraria a tal diferença, seu “critério para a avaliação de uma obra crítica”, que tanto procurava. Esta se encontra justamente no real debate do livro, em nenhum momento comentada por ele: a indeterminação entre ficção e realidade. Mas aqui também fiquei perplexo, pois, em meio parágrafo, o resenhista classificou Heidegger como filósofo imanentista e (não sendo um conceito meu) encerrou as falhas e consequências do conceito de “escuta”, resolvendo problemas colocados por um dos pensadores mais debatidos e contraditórios do século xx – problemas que, ainda hoje, comovem os mais renomados filósofos.

Mas, infelizmente, esta é a única tentativa, em todo o texto, de desqualificar o livro pelo viés do pensamento. O resto da resenha é uma desastrosa sucessão de zombarias que não dizem respeito ao livro propriamente dito. Ora, confundir o discurso interno do livro com a orelha demonstra um estranho desconhecimento das diferenças entre o trabalho do escritor e o do editor, que muitas vezes é obrigado a se adequar a recursos de marketing, impostos pelo mercado. Isso nada tem a ver com vaidade ou com ter-se em alta conta. E, apelando a um exercício básico de abstração, pergunto: se a capa do livro se rasgasse ou se fosse feita outra edição do livro, o texto perderia ou ganharia qualidade?

Há ainda outros casos que não acho necessário comentar, pois parece depor mais contra o próprio Francisco que contra meu livro. Tenho que lembrar ainda que ele, pouco antes da publicação da resenha, escreveu, em outro periódico, um comentário sobre o mesmo livro, onde já destilava a mesma má vontade, a partir de uma pueril teoria sobre o provincianismo brasileiro. No outro caso, preferiu não citar o nome do livro, somente fragmentos, segundo ele “para não dar excessiva importância ao autor”. Questiono-me, diante dessa frase pernóstica: quem afinal se tem em alta conta para sentir-se no papel de conferir ou não importância a alguém?

E o saldo de minha avaliação é que o sr. Francisco me parece ter ficado um tanto incomodado, e certamente atingido, pela crítica contida em meu livro. Eu já esperava que os Ensaios radioativos suscitassem reações extremas, visto que descrevem um ambiente de extremos, mas não imaginei que pudesse despertar discursos tão apaixonados, ainda que inconsistentes. Diante da territorialização, o escritor territorializador demarca o seu campo e assim vão se delimitando as fronteiras, a tomada dos canais, o mapeamento para as próximas gerações dos proprietários dos terrenos entre os “intelectuais” cariocas. E, nesse aspecto, prefiro manter-me à parte. O território é grande, e que fiquem com todo ele.

Coimbra, 26 de fevereiro de 2009.


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