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Sobre a poesia de Fabiano Calixto e Fábio Weintraub

Sou um quase completo idiota. Só não sou um idiota completo porque tenho sabedoria bastante para saber que sou um idiota. Devo tal sabedoria à poesia brasileira contemporânea. Pois só um idiota não vê o óbvio.  E como não vejo o óbvio que todo mundo vê, sou um idiota. Ainda que, felizmente, não completo.

O óbvio que todo mundo vê é o grande e agradável baile dessa mesma poesia brasileira. Baile em que inumeráveis novos e não-tão-novos poetas sorridentes dançam uma bela quadrilha com satisfeitos críticos de jornal e da academia. Quadrilha que, além de uma dança, é também um poema drummondiano: Fulano que amava Sicrana que amava Sicrano que amava Fulana. Suas declarações mútuas, se não de amor, de forte admiração, enchem os ouvidos dos partícipes e as “orelhas” dos livros, além de apresentações ao vivo e impressas, para não falar de risonhas resenhas e releases. Todos muito felizes com o livro em particular que apresentam e com o quadro geral que se apresenta. Todos menos eu, que sou um idiota.

Por isso, ao passar pela seção de poesia da melhor livraria de Florianópolis (como sou um idiota, mas não completo, vivo num lugar em que, se as boas livrarias são raras, mas não inexistentes, pelo menos é alto o número de praias e de belas mulheres que por elas se espraiam), paro e me espanto ao me deparar com a quantidade de novos títulos. Não fosse um idiota, não me espantaria. Sendo-o, espanto-me, e para espantar o desconcerto, decido comprar um par de livros.

Escolho dois pequenos volumes belamente editados pela editora 34. As capas em duas cores são, à primeira vista, abstratas, mas comportam todavia uma segunda mirada, em que se revelam motivadas: a do livro de Fabiano Calixto, que se chama Sangüínea (SP, 2007, 128 p.), é na verdade um detalhe de uma gravura em fundo vermelho quente com o recorte de uma figura em amarelo avermelhado, enquanto a do livro de Fábio Weintraub, que se chama Baque (SP, 2007, 72 p.), é cinza e preta, e revela-se o detalhe da foto de uma esquina de concreto com uma sombra angulosa projetada. Belas capas, belas edições, sendo bela o bastante a poesia, talvez até eu possa ver o óbvio, e deixar afinal a solidão silenciosa da idiotia para adentrar enfim ao baile.

 

Endosso de Kehl

O começo auspicia. Pois começo pelas bordas, ou melhor, pelas “orelhas”, no caso, por acaso, do livro de Weintraub. Ali, leio: “O autor não poderia ter encontrado título mais certeiro para este conjunto de poemas. Baque é o som seco do corpo que desaba na calçada abatido, largado, exausto, bêbado, chapado. Morto, não; os personagens desta poesia estão, à sua maneira, dentro da vida […]. Baque […] também é o nome do abalo que a leitura dos poemas provoca no peito do leitor” (Maria Rita Kehl). Personagens dentro da vida, abalo no peito do leitor, parece bom. Apesar disso não me convenço, e penso: certo, mas e a poesia em si? Impossível saber. Pois o texto segue dizendo que o autor “radicalizou a guinada que inaugurou no livro anterior”, em que “se anunciava um projeto de dessublimação estética”. Sem certeza de entender, prossigo, e chego, afinal, quase à compreensão: “Sua poesia deixava de nomear a paisagem íntima do autor para inventar a paisagem do outro, o infame morador das ruas”. Isto me interessa. Pois sei — trata-se da minha área — que em grego “paisagem íntima do autor” pode ser traduzido por idiotés, o que é privado, particular, em oposição ao que é politikós, ou relativo à pólis, à tribo. E é mesmo isso, pois inventar a intimidade do outro, do morador da rua, é bastante político, nos sentidos lato e denotativo (ser idiota não implica em ser iletrado). Para não restar dúvida, com certeza, pensando em auxiliar sujeitos como eu, o texto insiste, repete e explica: “A vida íntima do autor deu lugar a outra intimidade, inesperada, com o que restou de espírito aos homens e mulheres desprotegidos, expostos às vicissitudes das ruas”. Ignoro por que é “inesperada”, mas, em compensação, entendo o resto, até porque já fora dito antes, e não sou completamente idiota. E eis que aparecem estes versos: “Fica nu / a maior parte do tempo / pra não rasgar a roupa / e engolir as tiras (“Cabeça”)”. E tudo afinal se aclara. Pois tais versos, por um lado, exemplificam a “intimidade, inesperada, com o que restou de espírito aos homens e mulheres desprotegidos, expostos às vicissitudes das ruas”, e, além disso, como diz o texto a seguir, informam que a “linguagem se despe para nomear, tão de perto quanto possível, o homem que a família mantém amarrado desde que perdeu a cabeça”. E tudo falha novamente. Não é o homem que fica nu? Por que, então, o texto afirma ser a linguagem que se despe? Talvez seja uma paráfrase disfarçada de metáfora, mas não posso ter certeza, por causa da minha idiotia e de uma velha tia, que sempre me disse ser idiota ter certezas. Logo, eu deveria ter todas as certezas do mundo, mas falho mesmo em ser idiota o bastante. Em todo caso, percebo que da poesia em si nada se diz.

Diz-se da “percepção”, diz-se dos personagens: “A fina percepção dos detalhes que compõem, em poucas linhas, esses personagens in extremis apurou-se”. Personagens não são coisa de romance, ou ao menos da épica? O grande personagem da poesia, em todo caso, não é sua linguagem? Não sei, não posso saber, mas sei que não devo pensar “que se trata de uma poesia ‘suja’ à maneira da que fazíamos, na década de 1970, para dotar de uma suposta voz autêntica o tal homem da rua. A delicadeza de Weintraub consiste em empregar a máxima elegância ao abordar por escrito esses personagens”. De novo os personagens, e agora ainda a delicadeza e a elegância, o que não há de ser mal, mas a linguagem…? Impossível discernir. Ao menos somos notificados de que não se deve temer o “pôr o dedo na ferida”, expondo assim o leitor à “experiência masoquista da má consciência diante da miséria alheia”. Fico, portanto, mais tranqüilo. Afinal, “os poemas de Baque guardam respeito tanto ao leitor quanto a seus personagens”. Tanto respeito, porém, não compromete o tal “abalo no peito” prometido acima? Não sei. Mas, em compensação, sei que “o poeta combina em doses exatas a indispensável crueldade, sutileza nas tintas e, sem nenhuma concessão sentimental, alguma ternura”. Sem dúvida é bastante coisa. Talvez coisa demais: restará algum espaço para a poesia em si? Tremo, temo, atemorizo-me que não, pois isso ainda não é tudo. Além de crueldade, sutileza, tintas e ternura, ainda há a astúcia: “A astúcia do poeta consiste em não forçar em nada a mão que nos conduz das dores anônimas da alma ao grotesco da carne mutilada”. Num livro tão pequeno?! E ainda a poesia? A poesia?

Sim, a poesia. Pois minha idiotia, para não falar de minha miopia, não me permite leituras tão largas. Estou assim condenado à leitura estreita, à leitura fechada, à leitura idiota que, em tempos de largueza, fim de formas, multiculturalidade, nova religiosidade e saravá, só pode ver o estrito, a forma, a coisa. Afinal — creio que já o disse — sou um idiota. Mas não completo. O que se salva uso, então, para prover minha leitura parca.

“Tão logo alguém se aproxima, joga-se no chão, finge ter sido espancado, roubado até o último vintém. Se o ajudam a erguer-se, abarca a alma caridosa esvaziando-lhe a bolsa. O maligno o arrasta através do fogo, através do vau e do redemunho, do lamaçal e do charco, põe facas em seu travesseiro, ratoeiras em sua sopa. Ele também não faz por menos: bebe pinga com o cachorro, joga dados viciados, cede o corpo a proxenetas. É fustigado nos albergues, nos hospitais públicos, e posto na rua a pontapés quando o amor recupera a visão”. Eis o que leio quando abro o livro, e eis que nada entendo. Ou melhor, entendo que se trata de um pobre coitado, um pobre coitado banal, um homeless qualquer da rua e do jornal, aqui descrito, talvez não por acaso, numa prosa correta, entre literária e jornalística, conhecida por crônica. Tudo isso combina muito bem com o que nos diz e rediz a “orelha”, o haver personagens, o tipo de personagem, o não pôr o dedo na ferida masoquistamente, a sutileza das tintas etc. Mas não era um livro de poesia? Claro, seu idiota. É justamente por isso que essa crônica (“Quando o amor recupera a visão”, pp. 11-2), em vez de escrita em parágrafos, como reproduzida acima, na verdade está escrita, ora, em “versos”:

Tão logo alguém se aproxima
joga-se no chão
finge ter sido espancado
roubado até o último vintém

Se o ajudam a erguer-se
abarca a alma caridosa
esvaziando-lhe a bolsa

O maligno o arrasta
através do fogo
através do vau e do redemunho
do lamaçal e do charco
põe facas em seu travesseiro
ratoeiras em sua sopa

Ele também
não faz por menos:
bebe pinga com o cachorro
joga dados viciados
cede o corpo a proxenetas
É fustigado nos albergues
nos hospitais públicos
e posto na rua a pontapés
quando amor recupera a visão

O que afinal explica a pertinência da “orelha”: como não existe aqui nenhum elemento de linguagem poética, ela nada diz dos elementos de linguagem poética. Pois sua poesia está na crueldade, na sutileza, nas tintas, na ternura e na astúcia.

Mas talvez esteja, também, no paralelismo sintático. Ao menos, é nisso que parece acreditar o próprio Weintraub. Pois se no primeiro poema usa a linguagem prosaica da crônica, no segundo (“Estirpe”, p. 13), volta-se para a linguagem poética propriamente dita, através da parataxe, ou paralelismo sintático — enquanto a prosa é o reino da subordinação, da hipotaxe (não disse que ser idiota não implica em ser iletrado?).

as que enfunam os vestidos
dizendo-se grávidas
as que mastigam sabão
até sangrar o nariz
os que queimam a pele
com pomadas
os que passam no corpo
esterco de cavalo
os que portam chocalhos
à maneira dos lázaros
os que entrevados fogem
com grande velocidade
os que amarram sobre os olhos
lenços ensangüentados
os que em frente às igrejas
espojam-se nus
os que afirmam ter sido roubados
os que pedem apenas o necessário
para inteirar a passagem

O poema, ao ser poético na estrutura (e ainda que na estrutura somente, não o sendo, então, senão levemente, na superestrutura sonora — leia-se rimas e outras reiterações), lembrou-me dois outros poemas recentes que fizeram uso do mesmo mecanismo de sintaxe poética. E como comparar aclara, comparo-o para aclará-lo.

as atrizes
fazem teste de câmera
as donas de casa
cozinham
as enfermeiras
cuidam de ter paciência
as bêbadas
não agüentam seus bebês
as maternais
deixam tudo por um filho
as vaidosas
usam meias sedosas
as velhas
ficam com varizes
as competitivas
as que não deixam
cicatrizar a ferida
as que gostam de gatos
as que gostam de cães
miau!
uma coleção de mamães

As semelhanças são óbvias. Mas se as semelhanças são óbvias, também óbvias são as diferenças.

O poema de Weintraub é, fundamentalmente, uma lista mais ou menos arbitrária (que poderia, portanto, ser maior ou menor), sustentada pela anáfora, ou repetição do elemento inicial das sucessivas frases (“as que” / “os que”), e pelo paralelismo gramatical decorrente. Além disso, há algumas rimas toantes aumentando um pouco a tessitura sonora (cavalos / chocalhos), e, por fim, certa constância rítmica em torno do verso heptassílabo.

O segundo poema, por outro lado (Régis Bonvicino, “Coleção de mamães”, in Más Companhias, SP, Olavobrás, 1987, s.n.p.), tem uma matéria poética muito mais densa — apesar mesmo de aparentar, em função do tema, uma grande leveza rítmica, imagética e vocabular. Essa matéria poética densa se manifesta desde o início, com a sucessão múltipla formada pelas relações recorrentes entre AtriZEs e fAZEm, aTrizES e TESte, fAzEM e cÂMEra. Isto prosseguirá por todo o poema: câmera/casa/cozinham, câmera/enfermeiras/paciência, bêbadas/bebês, velhas/varizes/competitivas etc.

Além disso, há a ambivalência (no sentido de dupla validade) semântica gerada pelo paralelismo sintático, ao ser integrado ao uso sistemático do enjambement: “não agüentam seus bebês / as maternais” faz tanto parte do poema quanto “as maternais / deixam tudo por um filho”, assim como “usam meias sedosas / as velhas” e “ficam com varizes / as competitivas” etc. — possibilidade não explorada por Weintraub que, então, emerge apenas acidentalmente em uma ou duas passagens de seu poema, enquanto aqui acaba por complexizar e multiplicar a aparentemente pequena lista inicial (aumentando exponencialmente sua representatividade quanto aos tipos de mulheres). Lista que tem, porém, à diferença do primeiro, um fim necessário: pois este resume, sintetiza e explicita a lista ou coleção do poema, e é, não por acaso, seu próprio título.

Trata-se, portanto, de um poema que, se reproduzido em arranjo linear-prosaico, como feito com o primeiro poema do livro, teria seu texto substancialmente alterado, pela eliminação de inúmeras frases existentes apenas em seu arranjo propriamente poético — ainda que se mantivessem a tessitura sonora e mesmo o ritmo frasal: “As atrizes fazem teste de câmera. As donas de casa cozinham. As enfermeiras cuidam de ter paciência. As bêbadas não agüentam seus bebês”. O que demonstra serem seus versos não conseqüência de um recorte arbitrário, mas necessário.

Acontece que o autor desse poema vem a ser o editor da revista em que tenho publicado minha crítica (esta mesma). Para piorar, fui um dos editores do livro em que está publicado o poema. E como os espertos, isto é, os que não são idiotas como eu, sempre tomam os outros por si próprios, para não serem pegos de surpresa, e como, não sendo idiotas, sabem dançar a quadrilha, pronto pensarão: ahá. Pensamentos curtos podem ter significados longos. Traduzindo: o idiota aqui não é tão idiota quanto se pretende. Pois ele “espertamente” vê tais e quais qualidades num poema que editou de seu editor, portanto… Portanto, acontece de esse editor por mim editado entender do métier, ora bolas — razão, aliás, de eu haver um dia o editado, em primeiro lugar. Afinal, é preciso ser ainda mais idiota do que eu para não perceber as evidentes qualidades do poema.

Em todo caso, disse que o poema paralelístico de Weintraub me lembrou de dois outros poemas. E o outro, ora, o outro é de um amigo meu… Ahá. Não obstante, não faz diferença. A questão não está na qualidade das amizades, mas na qualidade dos poemas. Se a amizade for boa e o poema ruim, fico com o amigo e deixo o poema para lá. Se a amizade for ruim e o poema for bom, deixo o amigo para lá e fico com o poema. Se calhar de ambos serem bons, fico com ambos. Mas não por ficar com um pelo outro. Sou idiota, mas nem por isso compro gato por lebre.

de manhã
média com pão e manteiga
no almoço
dieta da quantia média
o dia todo
média com o chefe
pra não ficar
abaixo da média dos ordenados
no estacionamento
taxa de carro médio
meio tanque cheio
a volta pra casa
em velocidade média
rádio ligado
em ondas médias
na chegada
metade uísque metade água
média mensal do filho na escola
a cara metade fala de ofertas
com 50% de abatimento
novela o divertimento
(gosta daquela entre a das 6 e a das 8)
depois do banho morno
panos quentes nos desentendimentos
um coito de meia hora
pau tamanho médio
meio duro, gozo mediano
deitado de meias na metade da cama
o jornal da tv: mass-media
pra ficar por dentro da vida

As semelhanças com o poema paralelístico de Weintraub não são tão óbvias, ainda que sejam reais. Por exemplo, a estrutura também anafórica do poema de Marcelo Tápia, apesar de menos evidenciada: de manhã / no almoço / no estacionamento / na chegada. A principal diferença está no fato de que Tápia não faz de fato uma lista, apenas se serve de uma. É portanto a tensão entre a unicidade do tema da mediania, que se desdobra e ecoa de vários modos enquanto a lista das circunstâncias se desenrola, que dá ao poema sua grande carga morfossemântica. Cuja análise detalhada seria longa demais para ser empreendida aqui — afinal sou idiota e míope, mas não cego. Por exemplo: é visível para mim já ter escrito muito pior do que escrevo hoje (!). Basta ler a “orelha” do livro em que foi publicado o poema (“Segunda classe”, in Rótulo, SP, Olavobrás, 1990, s.n.p.). Sim, a “orelha” do livro é minha. Ahá.

Voltando, entretanto, a Baque, basta dizer, para concluir, que sua própria “orelha” está mesmo correta. Pois tomados os dois primeiros poemas como modelos, o dominante é o primeiro, ou seja, o da crônica urbana frouxamente versificada (há outra pequena lista paratática em “Concentração” [p. 31], mas o que predomina é a diluição formal do prosaísmo). Logo, há no livro tudo que vai dito na “orelha”, incluindo um certo silêncio sobre a linguagem poética estrito senso.

 

Orelha de Carlito e endosso de Siscar

Sangüínea, o livro de Fabiano Calixto, além de “orelha” de Carlito Azevedo, conta com um posfácio de Marcos Siscar. Se Maria Rita Kehl, na “orelha” de Baque, dizia, surpreendentemente, que tal livro causa um “abalo no peito do leitor”, Siscar, ainda mais surpreendentemente, ao posfaciar um livro chamado Sangüínea, discorre sobre… a hemorragia: “Há algo de excessivo, num primeiro momento, como em um sangramento. […] Não é puro jorro, mas […]. Sangrar é uma experiência da forma. […] O sangüíneo não é simplesmente um grito de dor. […]. O sangüíneo impõe-se à indiferença das coisas. […] Se não exclui a elaboração do sentido da violência sanguinária…” (pp. 116-8). O que seria de nossa crítica se um legislador louco proibisse a paráfrase como instrumento de “análise”? Se bem que, no caso particular da crítica de poesia, devastador mesmo seria se proibisse a paráfrase somada à ilustração da paráfrase pela interpolação dos versos parafraseados: “A flor sangüínea, para quem a identidade não bastava, torna-se tão próxima a si mesma como ‘o coração / de uma flor’. […] Naturalmente, a vida pulula, a vida localizada ‘escorre / viscosa’, nos poemas de Calixto” (p. 119). Naturalmente. Enfim, as paráfrases sangüíneas de Siscar e suas interpolações de versos diversos prosseguem por sete páginas, com direito a momentos como este: “Mas a flor sangüínea nasce de um outro lugar, que não se reduz à extensão mensurável a priori dos fatos ou das palavras. A flor só pode nascer da revelação das trevas que subsistem nas ‘lacunas ornamentais’, na retórica (poética, histórica) eufemizante com que a vida pretende ocultar seu profundo desalento: ‘observo pequenas trevas / que ainda sobram nas lacunas / ornamentais e fixo / o desalento’. Dessas pequenas trevas, é possível que nasça uma flor sangüínea” (p. 120). É possível. Mas também é possível, portanto, que não nasça. Enquanto o desabrochar da flor sangüínea do possível não se materializa no caule estreito e seco de uma circunstância, porém, ao menos Siscar se lembra, num parágrafo, de referir os procedimentos propriamente poéticos de Calixto, ainda que se trate da mera lista de tais procedimentos: “Do poema fragmentado pela pontuação excessiva (‘barroca’) até a sintaxe mais solta, mais prosaica (perseguindo o ritmo natural da frase longa); do corte quase aleatório do verso até as seqüências compassadas pelo eneassílabo; da brevidade epigramática à longa meditação ou ao soneto despedaçado…” (p. 115).

A verdade, no entanto, é que há no livro um procedimento poético dominante (mesmo se longe de exclusivo), a que se pode chamar de verborragia modernista. Acredite quem quiser, mas não uso aqui verborragia em sentido negativo, e sim descritivo, além de — também sou filho de Deus, apesar de ateu — parafrásico. Verborragia, a hemorragia verbal. Como escrevi recentemente em outro texto, “A poesia moderna, com o fim das formas fixas, entre outras coisas permitiu o surgimento de grandes poetas cuja sintaxe era prosaica, mas cujo prosaísmo foi compensado por um enorme poder discursivo e um não menor senso rítmico, como Whitman, Pessoa (Álvaro de Campos), Eliot, Bandeira e mesmo o Ginsberg dos melhores momentos” (“A poesia em câmera lenta de Eucanaã Ferraz”, in sibila.com.br/batepro200poesiaeucanaa.html). Poetas, portanto, “verborrágicos”, ainda que sua hemorragia verbal seja adensada pelo poder discursivo e pelo senso rítmico. Fabiano Calixto, em comparação (comparar aclara, já disse eu mesmo em algum lugar), se tem um razoável senso rítmico, carece de real poder discursivo.

Grosso modo, o poder discursivo é o poder da empatia verbal. Pois há aqui um discurso, isto é, um logos derivado de lego, de um falar. Há, em suma, uma fala, uma voz. Uma voz, porém, sem uma boca que a articule. Não se trata, assim, do discurso de um demagogo ou de um ator, um, convencendo ser a personificação do que diz, o outro, convencendo ser a materialização de quem diz. Esta é uma voz lírica, uma voz poética, uma voz impressa: enfim, uma voz autônoma. Não existe, porém, autonomia verdadeira. O poder de convencimento dos grandes discursadores da poesia moderna, como Whitman, Álvaro de Campos e Ginsberg, estava justamente em convencer, em primeiro lugar, que se tratava de uma voz autônoma, de uma individualidade irredutível, reduzível apenas às suas próprias palavras. Eliot é um caso diferente, pois sua voz é “borgeana”, no sentido de ser uma colagem de vozes entre conhecidas e desconhecidas, cuja montagem, porém, as particulariza como a voz eliotiana. Se não cabe naturalmente comparar Fabiano Calixto aos maiores nomes da poesia moderna internacional, cabe comparar procedimentos poéticos comparáveis. Não é minha culpa se o procedimento dominante em sua poesia é, basicamente, o mesmíssimo de certa linhagem de grandes poetas modernos. Portanto, cabe neste contexto dizer que a voz de Calixto, apesar de um razoável senso rítmico, é falseada — e por mais de um mecanismo. Os mais evidentes são, primeiro, a literatura — pecado mortal em tal linguagem —, e segundo, a poesia.

O falseamento literário de seu discurso lírico pode ser exemplificado por três poemas. No “Poema n. 56”, todo o discurso desaba a partir do fim, com a enfadonha referência à datada idéia-fixa dos poetas concretos: “onde quer que uma joaninha pouse / acende-se uma flor / de noigandres” (p. 47). Em “Devaneio com canção popular do Centro-Oeste & outras canções”, é também o fim que faz a fala desabar retrospectivamente. Se o poema assim começa: “tenho quase 35 anos / e meus cabelos quase todos brancos / assim caminho pela cidade / hesitando entre a Senador Fláquer / e a Gertrudes de Lima (dores paralelas, / rastros de lesma da face do asfalto” (p. 25), assim termina: “matar a sede, a fome, o desejo / nesta vida que se consulta, se costura / (surda, sonora, insana, sensual) / entre o prefácio e o colofão”. O último verso não passa do velho clichê de que tudo existe para terminar em poesia ou em literatura. Já no caso de “OW”, a coisa tropeça no meio do caminho: “e perceber que / entre múltiplas probabilidades de linguagem / você estava” (p. 107).

O segundo modo mais evidente de falseamento de seu discurso lírico, o “poético”, dá-se pela linguagem poética explicitada como truque. A linguagem poética é, grosso modo, feita de recorrências — em minha formulação particular, trata-se da linguagem verbal da interdeterminação morfossemântica recursiva discreta, ou linguagem recursiva discreta para os íntimos. Interdeterminação morfossemântica, porque forma e significado se retro-alimentam mutuamente. O que diferencia a poesia do trocadilho, então, é que no trocadilho há uma caricatura da poesia a partir de uma determinação meramente (ou forçadamente) formal. É o que faz comumente Calixto em muitos versos trocadilhescos: “a pátria pária patina na escória” (p. 24); “anuncio o escarcéu ao sol” (p. 34); “atropelar / três tetrâmetros trocaicos” (p. 37); “alivia a lira com a saliva da dríade” (p. 70); “abalisa a sílaba / sugere a senda” (p. 110).

Mas apesar da predominância do poema discursivo de tipo modernista, o livro de Calixto, ao contrário do de Weintraub (bastante homogêneo no uso da prosa frouxamente recortada), é de fato polimorfo. Siscar, a propósito desse polimorfismo, refere-se à “experimentação” (p. 115). Mas não há aqui real experimentação, e sim verdadeira idiossincrasia.

Vários poemas, portanto, assumem formas muito particulares, como é o caso de “Adriana Varejão veste flores” (p. 92), todo ele carregado de parêntesis poeticamente inúteis, e portanto cansativos, pois, como regra, não têm dimensão morfossemântica, ao não gerar novos sentidos. Há apenas uma exceção: “(ver) (te) (bradr(o)s) (cadáveres)”, com a decomposição de vertebrados de forma a evocar, ao mesmo tempo, seu desmembramento e sua morte (ver-te [aos] brados, verte[m] brados). No resto do poema, porém, trata-se apenas de um truque “visualista”, de um ruído, de uma complicação, a partir da decisão arbitrária de pôr quase todas as palavras e quase todos os oo entre parêntesis — quase todos, pois ficam de fora o o do nome da artista e, ainda mais sem sentido, o o da palavra cujo: “— (ela) (Adriana Varejão) (a criad(o)ra das azulejarias em carne-viva) (ela) (cujo Barr(o)c(o)  é elétric(o))…”. Sim, são ícones de olhos etc., mas é afinal apenas cansativo, pois o preciosismo formal não se traduz numa sintaxe que acompanhe esse formalismo.

De modo semelhante, há poemas em que todas as palavras estão entre travessões (“– se – eu – fosse – dizer – algo – eu – diria – logo –”, “E-mail para Ricardo Domeneck”, p. 75), além de outros nos quais as frases é que estão entre travessões (“– olhos de inverno – Sarah, olhos baixos – partir – ciao, baby –“, “Sarah Kane’s paint”, p. 85: para piorar, neste caso a notação idiossincrática se mistura à convencional, como o uso de vírgulas). No extremo oposto, há reaproximações às formas fixas, com poemas organizados em estrofes regulares rimadas, como em “E-mail para Carlito Azevedo” (p. 77) — um poema “esperto”, mas, ao fim e ao cabo, apenas déjà vu em seu antiintelectualismo hedonista-pop.

Se existe, enfim, tal polimorfismo, não existe como regra uma adequação maior entre a opção formal e o poema em questão (a exceção são os próprios poemas discursivos). Calixto muda de forma como quem muda de humor ou de camisa, o que dá ao livro o aspecto de um brechó poético.

Não será absolutamente por acaso que num livro, o de Weintraub, predomine a prosa frouxamente recortada, enquanto em outro, o de Calixto, um maior senso rítmico tropece justamente quando tenta adensar esse ritmo com sintagmas recorrentemente poéticos, que decaem então no trocadilhesco.

O que há aqui em comum é a dificuldade, a impossibilidade ou a renúncia de exercer a esquiva arte da interdeterminação formal e semântica também conhecida como poesia — em que, à diferença tanto da prosa, que é meramente linear, quanto do trocadilho, que é meramente formal, forma e sentido se imantam, se impregnam e, por fim, se co-determinam, apesar de suas naturezas distintas. E se aqui está a dificuldade, bem, aqui também está a arte.

 

Pós-escrito

Mudando de tom mas não de tema, tudo isso é, afinal, um tanto cansativo. Mesmo porque, não estou particularmente interessado nas obras de Calixto e Weintraub — ou na maioria das que, com mais ou menos freqüência, abordei nos últimos anos. O que é, ao mesmo tempo, óbvio e estranho. Óbvio, porque há inúmeros motivos para escrever sobre uma determinada obra, e todos se traduzem na própria atividade crítica. Estranho, porque se não há afinal interesse, por que escrever? A resposta está no particularmente. Tais obras, infelizmente, não me dizem muito como leitor de poesia. Ainda que eu possa admitir com tranqüilidade que digam algo a algumas pessoas. Sei, porém, que essas pessoas são muito poucas, porque são poucos os interessados na poesia brasileira contemporânea. Grosso modo, os próprios poetas, os críticos e seus amigos (eventualmente, também seus inimigos). E isto suscita ao menos uma questão — que talvez explique por que escrever.

Se a poesia brasileira contemporânea, a julgar pela maioria dos próprios envolvidos, e ao contrário do que eu e outros poucos afirmamos, é como regra bastante satisfatória, por que, afinal, o público a ignora?

Talvez porque o público esteja errado, ou seja, esteja aquém das qualidades de tais e tantos “biscoitos finos”. Mas seria paradoxal e oportunista, porque a atitude dominante quanto a isso, hoje, é a que eu chamo de democratista, segundo a qual o público está necessariamente certo — mesmo porque, quem detém a credencial para dizer que está errado? O que, não por acaso, combina muito bem com outra atitude comum, que chamo de popista, segundo a qual a arte pop, no sentido lato, ou seja, a arte popular de mercado, é necessariamente bacana ou coisa que o valha: primeiro, porque o público a adora, segundo, porque o contrário seria elitismo. Em suma, o público vale. Talvez seja, na verdade, o único que vale. Neste caso, sua indiferença para com a poesia só pode ter um significado: o que não vale é a poesia.

Sem entrar no longo e normalmente estéril debate sobre as causas do desinteresse de um publico significativo pela poesia contemporânea, o fato é que, para mim, isso é relevante, ao contrário da maioria dos envolvidos — que suspende então convenientemente seu “democratismo”. Caso contrário, em função da própria indiferença do público, deveria questionar a relevância, a qualidade ou a pertinência da poesia contemporânea. Mas a maioria dos envolvidos não o faz.

Eu, do meu lado, não sendo “democratista”, e não considerando o gosto da massa indicação suficiente de nada, julgo, porém, que neste caso o (des)interesse do público deveria ser relevado. Pois talvez não seja suficiente dedicar-se a uma arte pela vaidade de ter o próprio nome referido como poeta, ou mesmo pela crença pessoal e de seus próximos (e só por ela) de que o que se faz tem alguma relevância.

Em suma, posso aceitar que algumas pessoas vejam certas qualidades nessas obras — e eu próprio também as vejo, apesar de tudo (leia-se, por exemplo, minha análise do poema “A bela e a fera II” em “A poesia em câmera lenta de Eucanaã Ferraz”) —, mas não o hábito consagrado do “tudo ou nada”, pelo qual os que vêem certas qualidades passam a ver apenas essas qualidades, e ainda mais, a hipertrofiar as qualidades que vêem. O resultado é que, ao ler suas apreciações, parece estarmos sempre diante de obras de muitas qualidades e de grande qualidade, além de fraquezas, deficiências e defeitos nenhuns. Mas não estamos. Prova provável disso é a própria irrelevância relativa da poesia na vida cultural do país.

Enfim, se posso respeitar aqueles que vêem certas qualidades em tais obras, não posso aceitar as apreciações que isolam as possíveis qualidades e, então, a elas se dedicam: criando assim um biombo que, por trás de suas redes de palavras, esconde as deficiências específicas de uma poesia em particular e, como conseqüência direta, da poesia brasileira contemporânea em geral.

Alguns objetariam que, se certo equilíbrio é possível e desejável numa crítica, não é nem desejável nem possível numa “orelha” e num prefácio. Em primeiro lugar, há o problema de, como regra, tal equilíbrio ter estado ausente da própria crítica, a ponto de resenhas e releases não serem radicalmente distintos. Em segundo lugar, há a questão de por que, então, tantos aceitarem escrever “orelhas”-biombo e prefácios-cortina. Ou os escrevem porque não vêem os defeitos, as fraquezas e as deficiências, ou os escrevem apesar de vê-los. Se não os vêem, são maus leitores; se os escondem, são maus críticos.

Mas por que afinal não seguir simplesmente a maioria, e contentar-se com algumas possíveis qualidades, isolá-las e destacá-las? Por que fazer diferente? Porque esse biombo, seja costurado pela má leitura ou pela má crítica, é uma forma de meia-verdade: o público não está totalmente errado. E uma meia-verdade é igual a uma mentira inteira.

O desenvolvimento do raciocínio leva, então, a questionar o problema com a mentira. Por que ser moralista? Por que não admitir a incontornável necessidade social da mentira, sem a qual qualquer sociabilidade é impossível? Porque a mentira pode ser e é inevitável, mas assim também o são, em muitas circunstâncias, o câncer e o fascismo. Há lutas nas quais se entra não porque podem ser vencidas, mas porque não podem ser evitadas.

Não quero, com isso, insinuar qualquer grandeza dessa “luta”, mesmo porque seria imensamente ridículo, em função do próprio estado de irrelevância relativa da poesia. É precisamente o contrário: sua pequenez e suas pequenezas é que a justificam, porque talvez sejam uma construção e mesmo um hábito, não uma inevitabilidade.

 


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).

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