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Sobre Ouro Preto de Mário Alex Rosa

Por mais de um motivo, seja pelo tom que imprime ou pelos assuntos que enfrenta, mas não apenas por isto, o recente livro de Mário Alex Rosa, Ouro Preto, mostra-se mais ou menos estranho ao panorama da poesia brasileira de hoje. Trata-se de um livro que, talvez por uma espécie de sensibilidade tímida e reverente, aliada a seu forte imaginário católico, parece pedir desculpas por estar ali. Nele, a poesia pode ser comparada a um ato de oração, íntima, compassiva, circular, sem qualquer ênfase. É como se, por um momento, não fosse possível ouvir o que diz.

Existe, no entanto, um traço muito particular deste imaginário religioso que, aliás, confere ao livro a dicção “grave e dolorosa” de que fala Murilo Marcondes de Moura em seu excelente texto de apresentação – o poeta faz perguntas, mas não recebe respostas. De fato, Ouro Preto abre com um poema que tem como título justamente “Cantiga que não responde”, frase que sugere pelo menos duas chaves de leitura, tanto através da negativa quanto da indicação de um gênero medieval de poesia – a cantiga – que terá influências determinantes, por exemplo, na lírica colonial brasileira.

A cantiga de Mário Alex, como as cantigas de amor medievais – sem dúvida, o amor é o grande assunto desse livro, pois movimenta todos os outros assuntos, como a cidade de Ouro Preto e a própria poesia – é um poema sobre a falta de uma musa que, diferente do poema que Tomás Antônio Gonzaga dedicou a Marília de Dirceu, não terá sequer um nome. Como o leitor deve perceber, esta hipótese se confirma durante a leitura de todo o livro, que pode ser lido, aliás, como um grande e único poema: em nenhum momento a musa será nomeada. O que se sabe, somente, é que ela está longe: “Se quem parte é que parte a outra parte,/ quem fica rumina outra arte?”.

Há pelo menos outras duas semelhanças do livro de Mário Alex com a tradição das cantigas de amor: o apelo repetitivo, aliado à extrema simplicidade formal, e a construção de um discurso amoroso sem qualquer evidência do erotismo. “Esta é a condição: repetir secularmente/ a cela dessa palavra tão breve quanto infinita”, diz outro poema. A poesia, nesse sentido, como na melhor tradição melancólica, será a arte de nomear – na verdade, será a tentativa, a insistência e naturalmente a frustração – uma relação de perda.

Para nomear o objeto amoroso, no entanto, o poeta não recorrerá a imagens rebuscadas ou metáforas herméticas, como se não quisesse, de fato, tocá-lo. Com raras exceções – quando é descrita, por exemplo, como “a moça branca de neve”, único momento em que temos alguma notícia sua – a musa perdida de Mário Alex irá resumir-se aos pronomes, essa espécie de vácuo na linguagem, principalmente a “você”, aliás uma das palavras mais repetidas do livro, ao lado de “amor” e, curiosamente, “pecado”. Em outras palavras, trata-se de um segredo que não se pode violar. Por isso, toda a tensão do livro recai não sobre o objeto amoroso, mas sobre a própria condição da falta e a “memória falsa”, talvez porque seja forjada, dos encontros. “Este poema apenas tangencia/ a falta que nunca acaba”, lemos em “Visita”.

Há ainda nesse livro espaço para o humor, mas não para a ironia, um humor também retraído, que torna Ouro Preto mais leve do que talvez pareça. “Mário, o guia”, um poema provavelmente autobiográfico, trata dos monumentos mineiros de maneira pouco monumental, digamos; mas é o poema “Da contemplação” que consegue articular, com os recursos mais simples, as linhas principais desse livro que, recorrendo mais uma vez ao texto de Murilo Marcondes, “tem sua maior virtude nas articulações”. Tal poema, a um só tempo, fala da cidade, dos monumentos, da religião, do amor e finalmente da dúvida: “O amor desce ladeiras/ o amor sobe ladeiras/ o amor visita igrejas/ O amor estuda inglês/ O amor peca em português/ O amor sem sombra de dúvida/ Vive na dúvida”.

De outra maneira, Ouro Preto parece uma tentativa de reviver a cidade mineira através de outra experiência que não a barroca: “A rima é velha, até mesmo gasta,/ mas volto a ela para dizer que/ não sou homem barroco”, escreve o poeta, mais uma vez quase pedindo desculpas por suas escolhas. As igrejas, os museus, as missas, as ladeiras e os monumentos, enfim, tudo que se espera da cidade está no livro, mas sem qualquer senso de ornamentação.

A rigor, Ouro Preto é o primeiro livro de Mário Alex Rosa, mas sua relação com a poesia é bastante conhecida – como professor, artista plástico e, naturalmente, como poeta mesmo. Antes, o autor havia publicado uma pequena plaquete, pela Espectro Editorial, que é um primor, um livro infantil e dezenas de poemas esparsos, o que faz de Ouro Preto apenas meia estreia. De maneira inconsciente ou não, Mário Alex talvez tenha resistido à ideia de publicar seu primeiro livro, que, aliás, será seguido imediatamente pelo segundo, Via Férrea, que tem lançamento previsto para março.
“Se for pra cortar, corte./ Mas, prepare bem a carne,/ todo cuidado é pouco”, sugere a estrofe de “Algum lugar”. Também o leitor precisa ter cuidado para ler um livro que, por não se impor, fazendo da fragilidade a sua condição de vida, corre o risco de não ser lembrado; do mesmo modo, é preciso ter certo cuidado para lidar com uma poesia que, ao descobrir uma experiência amorosa dilacerada, nos deixa apenas a dúvida, os pedaços e as horas ingratas.

ROSA, Mário Alex. Ouro Preto. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.


 Sobre Victor da Rosa

Crítico literário e doutorando em Literatura pela UFSC e organizador, com Ronald Polito, da antologia 99 poemas de Joan Brossa (São Paulo: Demônio Negro, 2009).