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Ultimato milenarista

A literatura brasileira contemporânea sofre de excesso e de falta. Sobram textos e faltam trabalho, consciência da linguagem e cultivo. Sem ocupar lugar central na economia, cada vez menos prestigiada no campo das artes, a poesia e a prosa de ficção constituem atividades circulares, cujos praticantes são ao mesmo tempo o reduzido público e a igualmente reduzida crítica. O jornalismo cultural é, cada vez mais, o braço de marketing das editoras ou a vanguarda da panela. Os combates não são para valer. Não há, a rigor, armas intelectuais, mas apenas desejo de promoção. As alianças e as desavenças se traduzem em maledicência ou elogios vagos. Quando não redundam em acordos rápidos e efêmeros para a constituição de um campo de poder capaz de amealhar prêmios e resenhas e convites.

Quando um escritor não conhece a gramática e desconhece a história e os monumentos da sua arte, o que se pode esperar senão o brilho passageiro do fogo-fátuo? A literatura é a vivificação e destruição contínua do passado. Sem esse movimento ambivalente, ela é apenas tagarelice. E, como não há público, nem sequer tagarelice para alguém, mas mero exercício de vaidades. Já o pouco domínio do idioma assusta o primeiro desavisado que passar os olhos sobre a produção dos “novos”. Mas espanta ainda mais em nomes já estabelecidos no sistema editorial.

A poesia, especialmente, sofre. Da mais alta das artes a território preferido dos ignorantes. Poetas que não conseguem redigir um texto razoável em prosa indicam que a obscuridade, o minimalismo miserável dos “versos” de uma ou duas palavras, o tartamudeio hesitante são, na verdade, deficiências, carências de educação básica, falta de experiência de leitura.

À tradição modernista, na qual a modernidade foi identificada com a ruptura, juntou-se a herança concretista, segundo a qual – ao menos na leitura deslumbrada – o que conta é a busca de semelhanças fônicas entre elementos mínimos.

Não há discurso, dizem os seguidores de hoje. Mas tem de haver lugar para a intimidade, completam. Sem má consciência, acrescentam. Para esses, o verso pertence ao passado, mas não tanto. A música popular dá o modelo para os que não conhecem nada além das fronteiras do presente e da indústria cultural, e a apresentação das pequenas minúcias de vidas desinteressantes parece aspirar a um espaço pessoal, que é cada vez mais homogêneo. Ao lado, de forma complementar, florescem os eruditos de ocasião. Na era do Google, o dicionário dos símbolos perdeu utilidade. O caldeirão modernista agora ferve de exotismos, palavras cifradas, misticismos palatáveis e erudição de fachada. Não há base de leitura, não há reflexão, nem há problemas reais, mas orações hesitantes que simulam a gagueira dos sábios, que a cada palavra se defrontam com escolhas difíceis entre vocábulos impossíveis.

Contrapostos a estes, os amantes do verbo se agrupam em campos distintos. Atemorizados pela maré montante, que lhes parece contínua entre o modernismo e o concretismo, uns regridem para as fronteiras aparentemente seguras da linha Maginot,e, encastelados nas práticas antigas e automáticas, no verbo previsível, apostam em uma aura de estranhamento que os proteja da blitzkrieg da decadência – sua casa é a trincheira da tradição, compreendida como a manutenção do mesmo, a busca e a celebração do eternamente humano.

Outros, menos ressecados, derramam sobre o papel como sobre os teclados o fluxo do inconsciente, deixam explodir a verborragia da impotência diante da máquina internacional de guerra, o poder do supermercado e o furacão da propaganda industrial – têm a seu favor as lágrimas antigas do ideal e o cuspe moderno da revolta. Os primeiros nada têm a oferecer, senão a enfatuada arrogância de quem se retira do presente e recusa o combate. Já os segundos, minoritários, têm o interesse dos derrotados. Neles, a consciência vale mais do que a prática, o exemplo mais do que a obra ou o sentido mesmo da intervenção.

A prosa contemporânea brasileira é um terreno baldio

Na prosa, os escavadores do cemitério social têm espaço garantido. Pintam os ossos, trazem-nos sem perigo para a sala de jantar. São elementos de compensação. A classe operária, os deserdados, os pobres sem qualificações, homens-bichos, favelados, meninos de rua. O feio vai para a parede da sala como uma cópia degenerada e apaziguada da Guernica. A má prosa descobre sua justificativa na mimese do seu assunto. A carência repercute a carência.

Ao lado, o bom-mocismo das narrativas dos pequenos estresses classe média completa o desenho do presente. A irmaná-los, o manejo canhestro da língua, a dificuldade na construção do discurso, o álibi da deficiência como vontade de fugir aos padrões, afrontar a tradição, embora adulando a boa consciência do burguês. A correr por fora, e quase sempre vitorioso, o romance biográfico segue em ziguezague, a costurar o avanço da confissão com a linha da convenção e a bobina do bom-tom. Nos pontos altos, pendura-se menos na piedade do que na capacidade de construir um enredo coerente, já que o fio da vida narrada garante ao menos a sequência e a causalidade. Nos baixios, sem a piedade e a esperança de que o apresentado como vivido se constitua em exemplo e lição, em espelho e ajuda para o leitor, não sobra coisa digna de nota.

Mais apagada que a poesia, no imaginário cultural – talvez por sofrer a concorrência impiedosa de bons livros traduzidos –, a prosa contemporânea brasileira é um terreno baldio, no qual uma qualquer flor de mato ganha ou se arroga o direito de ser contemplada. Mas como existem menos prosadores que poetas, há seguramente menos leitores, menos panelas e menos brilho momentâneo no domínio da linha contínua do que no reino da linha interrompida. Quadro esse que se explica pelo fato de que, para ignorantes e para semiletrados, a prosa literária é uma atividade muito mais complexa, infinitamente mais difícil que a “poesia”, tal como esta se compreende e se pratica hoje no Brasil.

O estado da arte demanda reflexão séria. A falta de leitores e a ausência da crítica, combinadas à desimportância econômica e à falta de padrão de qualidade na escolha do que publicar, produzem uma crise de abundância. Naquilo que não interessa a quase ninguém, enxameiam os medíocres, a quem os restos de dignidade do que está morto atraem, sem que possam fazer outra coisa senão voejar à volta. A falta de educação escolar contribui, sem dúvida, para o nível primário da reflexão e da prática. Mas ela mesma é um sinal dos tempos. Quando não é preciso estudar, quando sofrimento, superação e esforço são palavras impronunciáveis na aprendizagem, e o caminho suave, compreensivo, sem sustos e sem coerção aparece como a única via de progresso, o que se pode esperar da escola e do cidadão aí formado? Certamente, não o exercício da crítica ou a receptividade a ela. Nem a coragem de abandonar, dolorosamente, o gosto da contemplação das sombras no fundo da caverna.

Quem saberá se é possível reverter o quadro medíocre do presente? Quem saberá qual o caminho ou quais os modos de começar o processo? De qualquer maneira, apontar a ausente roupa do rei-mendigo é dever de honestidade. Embora talvez um gesto inútil, pois este texto mesmo será rapidamente traduzido na linguagem embaçada dos que preferem olhar para o dedo a olhar para o que ele aponta – ou mesmo cortar o dedo para que não aponte. Não poderá, entretanto, ser acusado de interesse parcial e, muito menos, de omissão. Para os amantes das referências óbvias, que tal pensar que ele só busca constituir-se em uma pedra no meio do caminho para o fácil? Ou em uma pedra indigerível, no fundo do caldeirão da sopa do presente, que se pode jogar fora, mas não triturar com os dentes ou fazer de conta que não esteve ali. (2009)


 Sobre Renato Côrtes

Nasceu em São Paulo. No momento, desenvolve estudos de doutoramento em História Moderna na Universidade de Lisboa.