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Um cubano na posse de Obama: desafios da poesia contemporânea

24 de janeiro de 2013

Deve ser estranho para os americanos ter um presidente que aprecia poesia, pois o arco da cultura americana tende, de um modo geral, para a destruição da dignidade humana, que é a própria fonte da poesia.

A recente cerimônia de posse e a exposição da decadência, e dos patrocínios corporativos americanos a ela inerentes, irradiaram mais uma vez a poesia contemporânea pela cota de atenção nacional que vai, cada vez, mais minguando. Conforme foi possível testemunhar graças a Elizabeth Alexander, a última autora de cerimônia de posses de Obama, a tarefa do poeta implica a colheita de benefícios pessoais e profissionais tais como reconhecimento nacional por meio da escrita de um poema repleto (e aprovado por um comitê da Casa Branca) de clichês, e apresentado com um pique bem menor do que aquele que animou, também, a cantoria da posse, os discursos ou as preces.

É triste, mas a tarefa do poeta também consiste em resistir às críticas furiosas e às louvações deslavadas vindas dos insiders e dos outsiders da comunidade poética.

Richard Blanco foi uma boa escolha para esta ocasião, ele é um escritor talentoso e atento. Tive ocasião de ler seu trabalho, inicialmente, quando resenhei The Wind Shifts: New Latino Poetry [Muda o vento: a nova poesia latino-americana], editada por Francisco Aragon – uma das forças que mais impelem a uma nova visibilidade da poesia latino-americana, ainda em 2007. Tornei-me imediatamente fã de seu trabalho. Blanco foi uma boa escolha inclusive considerando o número recorde de deportação de latinos do primeiro mandato de Obama, bem como as promessas não mantidas feitas por sua administração à comunidade gay. O fato de haver sido escolhido um poeta jovem era também uma forma de garantir que ele não declinaria do convite, em protesto, nem que ele apresentaria um poema capaz de “bagunçar o coreto”.

Para que banir os poetas do império se o império pode usá-los para seus próprios fins? Usá-los para fazer passar por cima dos crimes do império, para fingir respeito para com a humanidade, para poetizar a ideologia do império. O poema de Blanco “Um Hoje” é um poema do excepcionalismo americano e do excepcionalismo imigratório – de “um império” construído por muitos colonizadores (colonos) em terras nativas. Lá está o poema, Senhor Presidente, lá está ele, pronto para o USO.

Confesso que me foi difícil ouvir “One Today”. Dá para escrever “os frutos estão lá… pedindo aprovação” sem escrever sobre o NAFTA? Dá para escrever que se está enraizado em “cada caule de trigo” sem falar dos Object Management Groups? Como é possível escrever sobre “canalizações” sem falar do oleoduto Keystone XL? Como falar do “corte das canas-de-açúcar” sem falar do papel do açúcar e do comércio global na guerra de 1898 entre a Espanha e os EUA, que levou ao avanço além-mar do poderio norte-americano? Como divagar sobre “o trabalho de nossas mãos” sem falar da taxa de desemprego? Como se referir à “casa, sempre sob nosso céu” quando tantas casas têm sido extintas e tantos futuros esbulhados?

A atenção pública que Obama trouxe à poesia levou alguém a declarar que a Poesia está morta. Creio que esse alguém está certo. A Poesia está morta porque muitos americanos venderam sua alma em troca do sonho do capitalismo, do militarismo, do colonialismo – aquilo que Whitman chamou a “democracia deformada” da América. Diferentemente de outros poemas de Blanco, seu “One Today” é um poema perfeito para ser apresentado aos zumbis americanos: ele é um poema morto. O papel da poesia é o de desafiar e questionar. Será que isso vai acontecer, de novo, algum dia?