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Um encontro com César Aira

Em meados do ano passado, fiz uma destas viagens que todo mundo faz a Buenos Aires: dez dias dormindo em algum lugar barato, meia dúzia de noitadas pelos bares de San Telmo e umas visitas às livrarias; de quebra, fui assaltado também, o que já se tornou comum em Buenos Aires, mas isso é outro assunto. Antes de viajar, decidi que deveria encontrar dois escritores: Daniel Link e César Aira. Acho que gostar de um escritor nunca é motivo suficiente para querer encontrá-lo, por isso não sei dizer exatamente o que me motivou a escrever aos dois. Seja como for, Link é um crítico por quem tenho admiração; mas Aira, por sua vez, pelo menos para mim, é uma espécie de paradigma na literatura contemporânea, um mito pessoal, insuperável, mesmo que isso represente uma contradição.

Não foi tão difícil conseguir o endereço eletrônico de César Aira. Eu disse no e-mail que era um grande admirador de seus livros, além de um jovem crítico literário brasileiro interessado em literatura argentina, o que é verdadeiro, e que tinha a maioria de seus livros em casa. Nunca escrevi nada sobre a literatura de Aira, mas não entrei nesses méritos com ele. Eu disse que, por muito tempo, quando quis abandonar a universidade e me tornar escritor, tentei imitar sua maneira de escrever. Disse que já havia lido também tantas de suas entrevistas que cheguei a descobrir que ele mentia em algumas delas. Em alguns momentos do e-mail, que era longo, como se pode perceber, tentei ser engraçado também. Contei que um amigo certa vez me presenteou com o livro Haikus pensando que se tratava de um livro de poemas orientais, conforme indica o título, quando na verdade é o relato de um sujeito que pede ao outro que lhe pague um dinheiro que deve.

Em resumo, pensei que se eu escrevesse um e-mail muito sóbrio, muito formal, seria mais provável que ele ignorasse. Eu também já sabia que Aira não gosta tanto de dar entrevistas – descobri isso em alguma de suas entrevistas, aliás – e por isso não apostei todas as minhas fichas nesse pretexto. Como eu não tinha nada para oferecer, achei que se eu parecesse alguém meio anormal, o que não é fácil, afinal eu estava escrevendo a um dos escritores mais anormais da América Latina, enfim, achei que isso lhe agradaria, que talvez ele aceitasse encontrar-se comigo por pura pena. Deu certo.

Aira me respondeu um dia depois de maneira bem simpática. Disse que poderíamos nos encontrar – “con gusto” – e sugeriu que eu voltasse a escrever assim que chegasse a Buenos Aires. Ele disse também que, por estarem em férias de inverno, passaria quatro ou cinco dias em Montevidéu com a mulher, mas teria tempo para se encontrar comigo em sua volta. Terminou sugerindo um bate-papo informal ao invés de entrevista. Por fim, mandou um abraço. Quando cheguei a Buenos Aires, a primeira coisa que fiz foi lhe escrever outro email. Aira então respondeu alguns minutos depois dizendo que estava gripado, de cama, e não poderia se encontrar naquele momento… Talvez na outra semana… Fiquei um pouco desolado. Achei que ele estava me enrolando. Provavelmente ele pesquisou meu nome no Google e chegou à conclusão de que não sou grande coisa. Mas uma semana depois ele escreveu outra vez dizendo que estava melhor da gripe. Marcou um encontro no Bar Britânico, na esquina da Defensa com a Brasil, em San Telmo, às 17h.

Cheguei às 17h, em ponto, e Aira já estava lá. Quando cheguei, fui até a sua mesa e ele logo começou a dobrar o jornal que lia. O bar, na verdade um café, estava mais ou menos vazio. Ele tinha acabado de ler no jornal que alguma editora estava programando a publicação das cartas que Rodolfo Fogwill havia recebido e que, dentre elas, estavam algumas cartas que o próprio Aira escreveu, mas ninguém havia pedido sua autorização até aquele momento. Tinha escrito estas cartas há uns vinte anos talvez e não lembrava mais do seu conteúdo. Ele me disse, enquanto acomodava o jornal na cadeira do lado, que não tem a memória muito boa. Pedi um café antes de começar a explicar o que eu estava fazendo ali. Mas eu não sabia muito bem o que estava fazendo ali.

Se não estou enganado, começamos conversando sobre literatura; era o caminho mais prudente. Eu disse que estudava Machado de Assis, expliquei minha tese e ele não se interessou muito, o que no fim das contas achei muito bom. Aira é um grande leitor, como se sabe; e inclusive de literatura brasileira. Havia acabado de ler Lugar Público, romance bem pouco conhecido do escritor tropicalista José Agripino de Paula. Além de Machado de Assis, Guimarães Rosa e outros clássicos, Aira leu também muitos contemporâneos, do quais sempre destaca Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll. Aliás, fiquei um pouco surpreso, e vocês também ficarão, quando ele disse que considera Machado, Guimarães e Noll os três maiores escritores da literatura brasileira. Afirmou que todos são gênios, inclusive os contemporâneos, todos geniais, e logo depois pediu desculpas por abusar dos adjetivos. Seja como for, Aira realmente adora a literatura de Noll. Se não estou enganado, traduziu alguns de seus livros para o espanhol. Disse também que, uma vez, participou de um jantar com o escritor brasileiro, mas ambos não conseguiram trocar mais de duas palavras, pois Noll só ficava resmungando. Aira não disse claramente, pois é muito cortês, mas ficou claro que achou Noll, pessoalmente, meio chato. Só depois foi ler seus livros e caiu de amores. Comigo, ao contrário, Aira conversava bastante.

– Conhecer os escritores que a gente admira não costuma ser muito bom – ele me disse, e aquilo pareceu uma ironia direcionada diretamente a mim.

Rapidamente César Aira fez questão de mudar o rumo da conversa e falar de outras coisas diferentes de literatura, mas eu preferi insistir mais um pouco. Principalmente porque eu fazia questão de exibir meus conhecimentos literários e falar sobre os livros dele. Quando lhe perguntei como escrevia tanto sobre a vida noturna se era um escritor tão doméstico e diurno, um escritor que inclusive dormia cedo – antes das onze Aira já está na cama – ele respondeu que justamente por não conhecer a vida noturna tinha mais liberdade para imaginar. Eu havia acabado de ler Yo era una chica moderna, romance que se passa quase inteiramente durante a madrugada argentina, e aquilo parecia um relato de quem conhecia o mundo punk. Depois eu disse que achava divertida – e também um pouco perversa – a maneira como o dinheiro aparecia em seus livros; e ele disse que o dinheiro, de fato, é um dos grandes temas da literatura. Quais os outros?, perguntei. E ele respondeu que são três: amor, dinheiro e nazismo. Aquilo estava começando a ficar divertido. E ficou mais ainda quando César Aira, o grande escritor argentino, confessou que tinha acabado de ler o livro de memórias de Danuza Leão.

– É um livro muito chique, chiquérrimo! – foram as suas únicas palavras em português; e até hoje eu me arrependo por não ter levado um gravador.

Diferente de muitos outros escritores, César Aira não se sente muito à vontade falando de si. Isso me pareceu bem visível; pareceu não se tratar de um fingimento. Ele respondia as coisas que eu perguntava sobre ele próprio com uma ponta de constrangimento, mas continuava sendo educado. Como eu percebia que Aira estava esperando apenas uma oportunidade para mudar o rumo da conversa, ou seja, desviar o foco dele próprio e falar sobre outra coisa, eu não lhe dava espaço. Eu fazia toda questão de continuar falando sobre ele, mesmo contra a sua vontade. Por outro lado, mesmo com sua timidez, como ele fala bem de si! Seu pensamento é íntimo de uma espécie de inteligência muito natural; já sua fala é mais ou menos lenta, mas nunca monótona, nunca sem interesse, e sem qualquer indício de afetação. Depois, Aira fala sempre com um meio sorriso – como acontece, aliás, em seus livros – como se vivesse em um estado de ironia permanente, uma espécie de vigília em relação ao senso comum. Antes de mudar de assunto, ainda deu tempo de ele me revelar que decidiu que a personagem principal de Las noches de Flores seria anã (característica nada trivial) quando a novela já estava quase no fim:

– A literatura tem esse recurso que o cinema não tem. Você pode passar muitas páginas falando de um personagem e dizer que ele é anão apenas na página 125. Se alguém adaptar Las noches de Flores para o cinema, não sei como resolverá isso.

Quando enfim passamos a falar de outras coisas que não a literatura, eu quis continuar conversando sobre coisas importantes. Toquei em um assunto sobre o qual César Aira, salvo engano, jamais dá qualquer opinião: a política. E na verdade ele continuou não dando qualquer opinião. Um dia me disseram que Aira foi ghostwriter de um político argentino – pior, um político de direita – mas acho que era só boato. Se isso for verdade, no entanto, tenho certeza que Aira encarou o trabalho como uma experiência literária. Seja como for, nosso encontro aconteceu bem no período em que estavam ocorrendo eleições para a prefeitura de Buenos Aires. Como já era de se esperar, Aira não quis nem esboçar qualquer opinião a respeito dos candidatos. Disse que não se interessava pelo assunto. Na verdade, ficou até um pouco mal-humorado. No entanto, mostrou certa preocupação com a proposta de um deles: reformular uma ciclovia que existia na cidade. Descobri que Aira, além de dormir cedo, também pedala toda semana.

Depois, quando já estávamos falando sobre qualquer coisa, Aira contou sobre um hotel gay cinco estrelas que há na cidade de Buenos Aires. Segundo o escritor, há dois hotéis gays cinco estrelas no mundo: um deles é em Buenos Aires e o outro em Barcelona. Não lembro porque Aira entrou nesse assunto, mas lembro que ele descreveu o hotel com muita precisão. Aira disse que há uma cozinha muito boa neste hotel, na realidade há um prato específico que ele ouviu falar que é incrível, mas Aira nunca se sentiu muito à vontade para entrar lá. Suponho que um personagem do Aira entraria em um hotel gay cinco estrelas sem nenhum problema, mas o próprio Aira, que é muito tímido, parece que não. A piscina do hotel, sempre segundo sua descrição, ficava no teto do restaurante, de modo que era possível acompanhar o pessoal nadando durante as refeições, e isso de um ponto de vista privilegiado. No outro dia, quando encontrei Daniel Link, que além de crítico e escritor é um grande militante da causa gay na Argentina, contei a história toda para ele, que ouviu de maneira interessada, mas sem emitir qualquer signo em sua expressão facial. No fim, meio surpreendido, comentou apenas isso: “Não é possível que César Aira saiba mais sobre o mundo gay de Buenos Aires do que eu!”.

No fim, Aira sugeriu, após meus pedidos, que eu visitasse uma livraria, La Internacional Argentina, mas não deu tempo. Apesar do nome suntuoso, ele alertou que se trata de uma livraria bem pequena. Nela é possível encontrar alguns livros mais raros do próprio Aira, seus textos publicados por editoras também menores e que dificilmente serão encontrados em livrarias como a Eterna Cadência. E sugeriu também que eu procurasse um jovem escritor argentino: Pablo Katchadjian. Esse escritor é realmente legal. Uma das experiências literárias de Pablo foi engordar El Aleph, de Borges. Ele achava o conto pequeno demais e resolveu engordá-lo, aumentando algumas de suas partes. Além de prestígio literário, este conto rendeu ao escritor, recentemente – mais especificamente, há um mês e meio – também um processo judicial, encaminhado pela viúva de Borges, que o acusou de plágio, o que pode causar uma discussão muito interessante, inclusive sugere a leitura de que Borges não foi entendido pela própria viúva. Curiosamente, César Aira foi uma das testemunhas do processo. Outra experiência do escritor foi ordenar o poema nacionalista Martín Fierro em ordem alfabética. O poema ficou repetitivo, com um ritmo meio frenético, talvez paranoico; um resultado interessante. Mas Pablo também escreveu uma novela mais ou menos convencional; chama-se Qué hacer. Além disso, Pablo tem um bigode incrível, algo no estilo de Salvador Dalí, mas muito superior.

Acho que ficamos um pouco menos de duas horas conversando. Antes de levantar, pedi ao escritor que assinasse um de seus últimos livros que eu havia acabado de comprar: El error, cujo primeiro capítulo – ele me disse também – foi inspirado em um jardim de Curitiba. Achei que era o último livro, por ter saído no final de 2010, mas ele disse que havia saído outro logo depois, El mármol, que comprei no dia seguinte. É realmente impossível acompanhar a literatura de César Aira, que chega a publicar três livros por ano. Eu reclamei algo sobre isso e ele fingiu não escutar. Aira pagou a conta, inclusive a minha, e saímos do café juntos. Há muitos escritores que não pagam a conta dos críticos jovens, inclusive escritores consagrados, mas eu não darei exemplos. Antes de se despedir, já na rua, ele ainda perguntou onde estava minha câmara fotográfica.


 Sobre Victor da Rosa

Crítico literário e doutorando em Literatura pela UFSC e organizador, com Ronald Polito, da antologia 99 poemas de Joan Brossa (São Paulo: Demônio Negro, 2009).