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Uma estrela só

O céu dos suicidas, romance mais recente de Ricardo Lísias, parte de um incidente claramente autobiográfico: o suicídio de um amigo. Como se pode reagir a isso? Qual a natureza dos tabus que envolvem o assunto? Estas são algumas perguntas que atravessam o romance, mas certamente não o explicam. Basta dizer que, além do mais, trata-se de um livro bem-humorado, pelo menos até onde nossas consciências permitem. Apontado como um dos romancistas mais originais de sua geração, o paulistano Ricardo Lísias, nascido em 1975, aceitou responder algumas perguntas por e-mail, ocasião em que falou da recepção de seu livro, de xadrez, atletismo e da imposição em escrever em primeira pessoa. No final, o escritor ainda revelou não ser Madame Bovary…

Victor da Rosa: Primeiro, Ricardo, obrigado por aceitar responder estas perguntas. Gostaria de falar sobre o uso da primeira pessoa em seu livro mais recente, O céu dos suicidas, que é um uso praticamente inédito em sua literatura e tem implicações determinantes para a narrativa. Inclusive porque o nome do narrador, que aliás é um sujeito bem complicado, chama-se Ricardo Lísias. Você já vinha ensaiando o discurso autobiográfico em textos esparsos, contos publicados em revistas, mas agora o projeto aparece em livro. Acha que isso representa uma virada em sua literatura?
Ricardo Lísias: Eu usei de fato a primeira pessoa apenas em contos. Foi a primeira vez que resolvi usá-la em um romance. Mas isso se deu, creio, pela imposição do projeto. Eu iria escrever sobre suicídio, isso era certo, e não consegui achar outra voz. É algo novo no meu trabalho literário, mas eu tenho a intenção de fazer variações formais amplas, detendo-me porém em alguns pontos. Por isso, por outro lado acho que continuo no meu caminho. A questão do homem exaurido, por exemplo, aparece em outros textos.

VR: Gostaria de insistir um pouco na discussão sobre o uso da primeira pessoa e principalmente no uso de materiais autobiográficos. Ano passado, saiu um conto seu,“Meus três Marcelos”, que causou certa confusão por você construir algumas cenas com “personagens reais”, como o escritor Marcelo Mirisola, por exemplo. Por outro lado, sabemos que uma ficção geralmente carrega muito material da vida do escritor. Onde fica o limite entre ficção e realidade? Aliás, há esse limite?
RL: O Mirisola sempre me causa confusão. É impressionante! Mas entrando diretamente na questão: no meu caso, a vida praticamente invadiu o meu momento de suspensão (quando eu escrevo, pela manhã, em silêncio absoluto). Eu tinha terminado O Livro dos Mandarins e comecei a escrever alguns contos depois de um tempo de descanso. Então, o tema do suicídio começou a aparecer em tudo sem nenhum controle. Não havia como evitá-lo, a menos que eu não escrevesse… No caso de “Meus três Marcelos” e de meus escritos mais recentes, fizeram parte de um tratamento a que me submeti depois de viver uma espécie de incidente biográfico que acabou tendo consequências um pouco fortes para mim. Ou seja, a vida acabou se impondo…

VR: Tenho a impressão de que o suicídio, assunto principal do seu livro, é um tabu na literatura brasileira, assim como na ordem de todos os discursos. No livro, o personagem que perde o amigo enfrenta uma série de preconceitos, começando pela própria dificuldade de aceitar a situação. O livro toca em questões delicadas, como a resistência das religiões. Como tem sido a repercussão do livro nesse sentido?
RL: Quando apresentei o livro pessoalmente, em duas ocasiões, pessoas manifestaram desagrado quanto à temática, curiosamente sem ter lido o texto. Os leitores, porém, até agora não colocaram nenhum problema. O livro tem sido mais bem recebido do que eu imaginava, sem querer ser cabotino.

VR: No ano passado também saiu um relato na Revista Piauí em que você trata de sua participação na Maratona São Silvestre. Você passou a praticar atletismo e inclusive está escrevendo uma coluna mensal sobre o assunto. Além disso, você também estuda e joga xadrez; inclusive, está me devendo uma partida… Você considera que há semelhanças entre essas duas atividades e a atividade de escritor? Pergunto isso porque tanto o xadrez quanto o atletismo estão presentes em seus textos.
RL: O xadrez, creio que não. Como há um combate entre duas pessoas, muitas vezes um belo plano acaba fracassado porque o outro acha algum movimento inesperado. Há uma intromissão externa em todos os jogos: o adversário. A arte, portanto, pode ser às vezes lúdica, mas nunca é um jogo. A boa arte pressupõe liberdade absoluta, o que não ocorre no xadrez.
Quanto ao atletismo, acho que a estrutura de um treino é bem parecida com a construção de um romance. Ninguém corre 25 quilômetros sem concentração, muito autocontrole e algum determinismo. Acho que a atividade da escrita é de fato paralela à da corrida: exige inclusive bastante entrega. Do mesmo jeito, um treino ou corrida de longa distância oferece uma ótima oportunidade de reflexão. Enquanto estamos redigindo um romance, sempre conversamos conosco. Mas das três atividades, considero que eu seja mais ou menos em uma. As outras duas são catastróficas…

VR: Da maneira como eu observo, você tem construído uma trajetória sólida como escritor, mas também muito paciente. Por um lado, apesar de ser um escritor relativamente novo – não quero ofendê-lo com o relativamente! – você já publicou um conjunto de cinco ou seis livros muito consistentes e elogiados por críticos que importam. Uma coisa interessante é que os livros não se repetem entre si. O Livro dos Mandarins, seu romance anterior, por exemplo, é muito diferente d’O céu dos suicidas. Por outro lado, apesar de ter uma obra já bastante lida, não é tão comum ver seu nome circulando pelas rodas literárias, em eventos, estas coisas. Seu caminho parece ser outro…
RL: É isso mesmo, quero fazer textos diferentes, sempre com pontos em comum. Eu escrevo com regularidade desde 1995, ou seja, há dezessete anos. Há uns quinze, mais ou menos, escrevo todos os dias, quase sempre de manhã. Então, tenho um método já antigo. Apesar da minha idade (e a literatura é gloriosa: a gente tem 36 anos e é jovem!!), tenho experiência.
Como você disse, faço um trabalho paciente, mas desde cedo fui bem acolhido, o que me ajudou. Ainda assim, o importante é ficar focado nas minhas questões (e não nas dos críticos). Sou um tanto discreto com o que se convencionou chamar de “meio literário”, mas tenho meus amigos, e também meus alunos. A única coisa que eu não quero é que minha presença física tome o lugar da presença dos meus textos. Mas por outro lado, às vezes acho importante me manifestar, sobretudo com relação a questões políticas.

VR: É interessante ouvir você falando da sua organização com a escrita, pois a questão do método também é fundamental não só para este livro, e sim para toda a sua literatura. Muitos dos seus personagens desenvolvem métodos, inclusive para viver, sair de traumas, mas também para vencer adversários. Nesse romance, o protagonista se apresenta, na primeira frase já, como um “especialista em coleções”. Em vários momentos ele ensina justamente os seus métodos para construir uma coleção e o final do livro, nesse sentido, é também marcante.
RL: É verdade, mas eu não sou a madame Bovary de forma nenhuma. Garanto!

VR: O único método da madame Bovary, até onde vai a minha parca imaginação, consiste em cornear sistematicamente o seu marido. Ou você se refere ao final marcante, em que madame Bovary se suicida? Confesso que fiquei em dúvida agora… Poderia explicar melhor isso aos nossos leitores?
RL: Eu não…


 Sobre Victor da Rosa

Crítico literário e doutorando em Literatura pela UFSC e organizador, com Ronald Polito, da antologia 99 poemas de Joan Brossa (São Paulo: Demônio Negro, 2009).