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MUITO DA CHINA PERMANECE NA CHINA

Este texto pretende-se, mais ou menos, juntar alguns comentários sobre o momento por que passam a vida cultural e a poesia na China de hoje, segundo o que pude verificar in loco, com algumas percepções sobre a relação entre modernidade e tradição no país que experimenta o processo de desenvolvimento mais acelerado da História.

O tom meio subjetivo de depoimento será companhia inevitável de algumas reflexões que faço quanto à experiência de viver e trabalhar no país, mantendo atenção na poesia. Então, acho que me coloco, neste artigo, um pouco naquela linha do “pensador selvagem”, como se autodefiniu Paulo Leminski em um de seus textos críticos.

Apenas deixei a China no princípio deste ano, depois de cinco anos vivendo em Pequim e Xangai, trabalhando como diplomata. Seria inverossímil, mesmo fútil tentar um distanciamento discursivo – e afinal, para quê? A experiência da China é, para mim, quase tão intensa e formadora quanto a de meu próprio país. Isto é: certamente compõe minha circunstância, o contexto a partir do qual reconheço e penso minha história pessoal. Dentre outras coisas, na China aprendi a reconhecer uma linhagem (romântica) moderna-experiencial em minha poesia. Quero dizer: a poesia acaba se construindo associada a uma consciência metalingüística da qual participa um traço de “estar meio perdido entre culturas”, e que se firma na tensão entre renovar-se como forma, rarefazer-se, dissolver o discurso; e, por outro lado, ter um quê a dizer, objeto, referente (um “eu lírico” afeito à mania de acreditar em dizer coisas).

Em Xangai, cuidei do setor cultural do Consulado-Geral do Brasil, e tive a oportunidade de produzir, entre outras atividades, o livro bilingüe Antologia Poética de Mário Quintana, co-editado pelo Consulado-Geral e a PUCRS. O livro traz boas traduções, com poemas selecionados e preparados por mim pessoalmente e pela Professora Maria Eunice Moreira, Diretora da Faculdade de Letras da PUCRS.

Notável, para nós que trabalhamos em projetos como esse, o desconhecimento abissal que existe entre o Brasil e a China. Mário Quintana e Cecília Meirelles foram, talvez, os únicos poetas do velho modernismo brasileiro que dedicavam atenção mais sistemática à literatura chinesa; ele, tradutor de Lin Yutang, e ela, de grandes clássicos da dinastia Tang, Li Bai (Li Tai Po) e Tu Fu.

Para os chineses, também a literatura brasileira é quase desconhecida. Apenas um pouco do folhetim – A Escrava Isaura até hoje é lembrada. Mas na Universidade chinesa, há uma curiosidade viva, que se traduz em pessoas que já começam a se dedicar à língua portuguesa do Brasil, e que querem conhecer a poesia. Porque a poesia é muito popular e prestigiada na China. As pessoas lêem bastante, crescem em contato com uma das mais antigas tradições poéticas do mundo, e há, ainda, o extraordinário benefício daquele idioma riquíssimo, tanto foneticamente, como em recursos semânticos e gráficos.

Mas nos desconhecemos, apesar da curiosidade crescente. Sobretudo, a China não é fácil – o Brasil também não, dirão os PoETs. E tantas vezes, o discurso que se profere sobre a China no Brasil é “fácil”. Resume-se, quase sempre, à descrição do estranhamento perante um mundo de alteridade, “um distante”, que então pode caber em definições simples e estereótipos.

Também por isso – por fugir tão naturalmente a esse tipo de discurso, infelizmente tão comum –, gostei muito da crítica da Professora Aurora Bernardini na Sibila, sobre este belo livro “Um barco remenda o mar”. Pela alusão a François Cheng – o teórico da literatura, sinólogo, calígrafo, poeta e tradutor sino-francês – a professora evoca uma referência fundamental para um pensamento sobre a cultura chinesa em bases consistentes e não preconceituosas. Cheng não nos deixa esquecer que a China é mais complexa que o discurso da moda, e certamente é grande a tentação do discurso sobre o país do momento, tanto para admirar, como para detratar.

A China está além das diferentes visões mais ou menos consensuais ou politicamente corretas que surgem sobre ela a cada momento, no Brasil e no Ocidente. E este “além” aponta para uma vasta pluralidade de experiências e pontos de vista, uma variedade de situações, interesses, capacidades, poderes, forças, grupos de pressão, etc, que se combinam e negociam; em suma, um ambiente político e cultural complexo, que nada tem de monolítico ou pacífico. Sempre foi assim, e é mais a cada dia, quanto mais o Estado e a sociedade civil evoluem, se diversificam e se distanciam dos anos excepcionais da “Revolução Cultural”.

A leitura de François Cheng me reforça a percepção de que a identidade chinesa se funda, sobretudo, em algo que se nota nas constâncias e permanências, e que se reafirma e renova no interior da diversidade que pulula incessantemente no movimento da história e do dia-a-dia. E que esse algo é, provavelmente, a área que melhor se oferece para um diálogo edificante com nossa cultura.

Recordo, a propósito, a conferência proferida por François Cheng em um círculo psicanalítico (Lacan et la pensée chinoise, em Lacan – l’écrit, l’image. Flammarion), ele que era amigo e colaborador do mestre francês, na qual discute a noção de “cheio-vazio” (“vide-plain”) da caligrafia e da pintura chinesa, a partir de princípios do confucionismo e do taoísmo, e a aproxima da noção de “atenção flutuante” em psicanálise.

Esse algo da China parece-me tão visível na poesia dos mestres das dinastias Tang e Song, no cultivo da música e dos instrumentos tradicionais, no conhecimento sobre o chá e outros saberes antigos; assim como transparece na caligrafia feita em água sobre as calçadas em Pequim, nos grupos de casais dançando em praças nas noites de verão, na fina ironia das artes marciais em certos filmes de Jackie Chan, ou na elegância e sutileza das maneiras e usos lingüísticos de muitos chineses, que acusam um universo cultural denso e sofisticado. Há muito da China que permanece na China.

Nota: viram a abertura dos Jogos Olímpicos de Beijing, dirigida pelo cineasta Zhang Yimou e pelo coreógrafo Zhang Jigang? Ela começou com o desdobramento de um fictício e gigantesco “skroll”, um livro antigo, e os primeiros movimentos foram bailarinos “escrevendo” traços de caligrafia. Todo o mais que se seguiu foram textos sobre esse livro. Que tal isso, para abrir Olimpíadas?

A consciência da linguagem, de sua força especialíssima, que se alimenta da singularidade da escrita ideográfica – de longínquas raízes místicas, vinculadas a sortilégios traçados em cascas de tartarugas –, mantém-se no respeito ao livro, ao texto, à caligrafia como arte. A paixão da escrita, no preciosismo do pincel, da tinta, do papel e da pedra de caligrafia; o respeito pela forma de escrever o caractere, pela sua estética, permanece hoje. E se reflete na fala do dia-a-dia, cheia de deslizes metafóricos, elipses e implícitos; no humor chinês, freqüentemente trocadilhesco; o recurso freqüente à função poética da linguagem.

Falava da curiosidade dos chineses sobre a poesia do Brasil. O jovem poeta e professor universitário Hu Xudong, da Universidade de Pequim, tem sido um importante divulgador da poesia brasileira na China. Depois de passar um ano lecionando e estudando em Brasília, a partir de um programa de intercâmbio entre a UnB e a “Beidá” (Universidade de Pequim), Hu, ele mesmo escritor e ativista cultural conhecido na cena contemporânea local, passou a organizar cursos sobre poesia brasileira contemporânea na Beidá. Em um desses cursos, a seu convite, fiz uma pequena exposição sobre Torquato Neto, seguida da leitura, feita por Hu, de um poema de Torquato e um meu, traduzidos para o chinês. O próprio Hu encarregou-se, na mesma aula, de fazer apresentações sobre Augusto de Campos e Paulo Leminski.

Outra atividade comum na Beidá, algo impressionante: uma vez por ano, eles realizam, organizado pela Faculdade de Letras, um dos maiores simpósios de poesia da China. O evento reúne em torno de 3000 participantes, uma platéia animadíssima, interativa, principalmente composta de estudantes, e contando com poetas, que esperam sua vez de subir ao palco e recitar. Ao pagar-se a entrada – bastante barata –, à porta do auditório, recebe-se uma brochura com alguns textos dos poetas especialmente convidados de Pequim e do resto da China, inclusive Hong Kong. Revezam-se ao microfone poetas dos estilos, propostas e idades mais diferenciados. Há desde senhores de idade provecta com poemas ao estilo “realismo socialista”, recebidos com palmas educadas, até escritores bem mais cosmopolitas e contestadores, passando por regionalistas, que escrevem poemas em dialetos locais.

Festivais poéticos dessa espécie ocorrem freqüentemente em outras universidades da China, ou organizados por municipalidades e governos provinciais. Há de todos os tipos: desde os mais “chapas-brancas”, até os mais “abertos ao exterior” e a concepções consmopolitas e urbanas. Em alguns desses festivais, encontram-se muitos poetas que tentam seguir um improvável estilo tradicional, tornado em uma espécie de parnasianismo, participando vagamente de uma certa linha “folclorista” ou tradicionalista dentro do discurso oficial da boa poesia. Em outros, predomina uma poesia afinada com a contemporaneidade, que participa de uma troca e de um circuito com ramificações internacionais.

O mais comum é, parece-me, a convivência de diferentes estilos e temáticas em uma efervescência cultural que vem ganhando as cidades chinesas maiores, e que acompanha as flutuações históricas e variações regionais da vida política nacional, especialmente no que tange à posição dos intelectuais e das universidades – maiores ou menores autonomia, capacidade de pensamento crítico, comunicação e veiculação no exterior.

Essa situação, que eu caracterizaria como de efervescência e pluralidade de estilos, manifestações e condições de produção e divulgação, é enriquecida constantemente – mas em um processo irregular, que alterna avanços e recuos –, desde que começa o processo de abertura da China ao exterior, em meados dos anos 80, pelas trocas com a comunidade chinesa em outros países, pela mobilidade maior de uma elite cultural que se lança à formação universitária no exterior e retorna para ocupar postos de trabalho qualificado no Continente. Também o desenvolvimento rápido de uma classe média com formação universitária acompanha a elevação drástica de padrões de consumo.

As diferentes ondas de imigração chinesa, motivadas por razões econômicas ou políticas a cada momento, participam, hoje, de um movimento de internacionalização da cultura chinesa, que envolve prioritariamente as grandes comunidades da Ásia do Leste e da orla do Pacífico. Esse componente chinês “multinacional” combina-se à existência, naquela região, de territórios que são ilhas chineses fora da China – as “Regiões Administrativas Especiais” de Hong Kong e Macau, legalmente já reintegradas ao país, e Taiwan -, os quais estão vinculados por interesses substanciais à China continental.

Reforça-se continuamente a constituição do espaço cultural chinês como espaço multiterritorial, portanto, submetido a condições objetivas muitos variáveis, o qual sustenta uma importante e afluente indústria cultural que atua primordialmente nesse mercado regional.

Nesse ambiente, há muitas histórias como a de Zhang Yimou. O cineasta chinês de maior trânsito internacional, e o mais respeitado em meios oficiais na China, tem obras consideradas polêmicas e interditadas à exibição em circuito comercial no país. Também tem uma história infeliz relacionada à Revolução Cultural. Aliás, histórias infelizes da Revolução Cultural são onipresentes. O seu amigo chinês alegre e bem-humorado pode, a qualquer momento, começar a contar histórias pessoais ou de família aterradoras. Foi uma tragédia nacional que afetou praticamente todos os chineses.

O desenvolvimento desse espaço cultural chinês, que se dá em contato com o exterior, tem certamente muito a se beneficiar com o Brasil, e o interesse cresce, ainda incipiente. De nossa parte, a curiosidade é enorme. A cultura e a poesia chinesa são mananciais inesgotáveis à disposição dos poetas brasileiros. E iniciativas como o livro “Um barco remenda o mar”, que edita no Brasil, pela primeira vez, alguns dos mais importantes nomes da poesia chinesa contemporânea, são preciosas.

Para comemorar, termino com três poemas clássicos chineses de Wang Wei, poeta da dinastia Tang. Traduzo-os com o auxílio inestimável de minha esposa, Tan Xiao, apoiando-me nas traduções em língua francesa, de François Cheng; espanhola, do poeta mexicano Miguel Ángel Flores, e inglesa, principalmente a  edição bilingüe da editora chinesa Higher Education Press, preparada por Wang Guoxian.

 

Sobre o alto terraço

Desde o alto terraço, dizer adeus:
O rio, a planície avançam no escuro
À luz do crepúsculo, os pássaros retornam
Já o viajante parte, sem demora

 

O Lago Yi

Soprando minha flauta, desta margem vejo
o poente, sigo meu Senhor até o rio
Sobre o lago, o momento cessa, volta-se:
o verde morro; em torno, a nuvem branca

 

Canção de uma noite de outono

Frio lá fora, orvalho, a lua crescente
e ela vestida só em seda leve
o lute, em prata, tange a noite inteira
dentro é seu medo, o quarto e o vazio

 

Ricardo Portugal é poeta e diplomata, e acaba de retornar de 5 anos vivendo e trabalhando na China. Formado em Letras pela UFRGS, lançou, entre outros, o livro DePassagens, pela Editora AMEOPOEMA, e foi co-organizador e editor do livro bilingüe “Antologia Poética de Mário Quintana”, lançado na China em parceria pelo Consulado-Geral do Brasil em Xangai e a Editora da PUCRS. É casado com Tan Xiao, chinesa, tradutora e intérprete chinês-português-inglês.

 

 

O BARCO UM ANO DEPOIS: FENG FALA A BONVICINO

Régis Bonvicino: O que representou para você co-editar e co-traduzir poetas chineses para o português brasileiro ? Como avalia a experiência e o resultado do trabalho?

Yao Feng: Julgo que, como co-tradutor, aprendi muito com os poetas chineses traduzidos e com você: seu entusiasmo,  sensibilidade e  cuidado deixaram-me impressão  profunda. Foi uma experiência bastante complexa e interessante. E o resultado do trabalho é positivo: pela primeira vez a poesia contemporânea chinesa adquire existência no Brasil.

RB: Qual foi a repercussão do livro entre os poetas chineses ? Houve algum outro tipo de repercussão?

YF: Todos os poetas traduzidos gostaram imenso dessa iniciativa mas alguns deles acham que se poderá fazer uma antologia mais abrangente, se houver possibilidades no futuro.

RB: Fale de Bei Dao, as razões de seu exílio e de sua volta.

YF: Foi ao exílio por amor à China. Em nível espiritual, Bei Dao nunca deixou o país e, neste sentido, não houve volta. Ele sempre esteve entre nós.

RB: Existe liberdade de expressão poética na China? Como funciona o “mercado” de poesia chinês ?

YF: De fato, os chineses têm cada vez mais liberdade de expressão, embora o que produzem muitas vezes  ainda passe por “filtragens”. Quase não há mercado para a  poesia, como na maior parte do mundo. Hoje tudo é comercial mas a poesia não é produto lucrativo para ser comercializado – o que lhe confere liberdade de experimentar e ousar. A maioria dos poetas fazem os seus livros por conta própria.

RB: Por que a literatura brasileira não é conhecida na China? O que se sabe de Brasil na China?

YF: É verdade que as duas literaturas não se conhecem, o que se pode atribuir a vários fatores: barreira linguística, distância geográfica, e, sobretudo, falta de interesse de uma por outra. Mas na China o futebol brasileiro tem milhões de adeptos. Quanto aos escritores brasileiros, o mais conhecido é Jorge Amado. Paulo Coelho é conhecido também mas não é considerado um bom escritor como Amado. Nos últimos anos, o cinema brasileiro tem surpreendido os chineses, que o assistem com entusiasmo.

RB: Como vê hoje o país – segundo no ranking econômico do mundo –  mas com problemas políticos,  ecológicos e sociais graves?

YF: A China vive mudanças significativas e os chineses sentem-se orgulhosos pelos sucessos que ela tem obtido. Julgo que a China está ciente dos seus problemas, inclusive, os institucionais, e vai encontrar caminhos para resolvê-los. Não é fácil e leva tempo, mas Roma e Pavia não se fizeram em um dia.

RB: O que pensa sobre George Walker Bush ? Acha que, caso Barack Obama se eleja, nos EUA haverá mais diálogo?

YF: Gostei muito de George Walker Bush, quando ele esteve na abertura dos Jogos Olímpicos de Beijing, na qualidade de chefe das claques americanas. Saiu-se muito bem!  Penso que Barack Obama é um político consistente e  realista e vai dialogar mais com outros países, propondo relações mais sólidas e pacíficas – o que não vai ocorrer caso vença John McCain.

 


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