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Dois poemas

Destino Manifesto

Nas Filipinas
as trabalhadoras das fábricas
de bonecas de moda
recebem um bônus em dinheiro
se se esterilizam. Nas esteiras,
rodam com excesso de velocidade
pedaços de corpos.
Nada a ver com o famoso episódio da tv
quando Lucy e Ethel experimentam
um dia de trabalho, botando chocolates dentro de caixas
numa linha de produção nos Estados Unidos. Elas
enchem suas bocas com uma boa parte
dos doces que vêm velozmente, dão risadas
de baba marrom quando são despedidas porque
realmente não tem importância –
Ricky e Fred têm bons empregos.
Para provar que são eles mesmos
os que devem trabalhar,
os garotos fazem uma bagunça na cozinha
da Lucy, uma panela de arroz explodindo
como um vulcão branco. As mulheres
nas Filipinas e noutros lugares ponderam
o big business, os benefícios de descontinuar
a própria linhagem. Nos seus sonhos
estas mulheres embalam úteros de Toys R Us
enquanto uma Barbie estéril, seu cabelo preso
sob um capacete de Lucite, finca a bandeira da Mattel
numa lua que pouco convence.

 

Denise Duhamel [do livro KINKY],  tradução Miriam Adelman

(“It´s my body”)

(Orchises Press, 1997)
Tradução:  Miriam Adelman
REvisão: Sabrina Lopes.

“Era-se um tempo em que a Barbie nem podia dobrar
os joelhos”, eu falo para minhas sobrinhas Kerri e Katie
que sentam na minha frente no chão da sala
desta América de colarinho azul e rosa. Estão abrochando as minúsculas
calças de courino
nas suas Barbies Roqueiras
e grandes guitarras pretas
sobre seus ossudos quadris de relâmpago. Katie me entrega
sua boneca porque precisa da minha ajuda
com os pequenos botões que serpenteiam nas costas
da blusinha tomara que caia da Barbie. “Minha primeira Barbie
nem podia mover a cintura”. Eu estou falando como alguém
que já vivesse o suficiente
para ver mudanças significativas. Minhas sobrinhas
estão de costas para a TV que parece estar sempre ligada,
onde eu estiver. E atrás de suas cabecinhas
loiras inocentes, Jessica Hahn
faz uma aparência-relâmpago num vídeo da MTV.
Ela roda como uma sexy bola de pinball ,
e tenta desesperadamente sair de uma jaula côncava.
“O corpo é meu”, recentemente ouvi ela dizer
numa entrevista matinal na TV. Ela começou
justificando suas fotos nuas na Playboy.
“O corpo é meu”, ela repete
como uma boneca Chatty Cathy
com um disco arranhado enfiado nas costas.
“O corpo é meu”, ela começava a responder
a toda e qualquer pergunta do entrevistador –
onde ela cresceu, se ainda vai à igreja.
“O corpo é meu?”
Ainda assim as palavras eram as mesmas,
mas quanto mais acusações, mais mudavam
suas inflexões. Jessica olhava para além
do set onde alguém lhe parecia estar dando
pistas. Meu namorado dava risada.
“Que tal pôr um pouco de convicção nisso, Jessica?”,
ele falava para a TV. Então, tentando estimular
mais a conversa, ele me dizia, “Olha, meu bem,
ela nem parece saber se o corpo é seu
ou não!” Ele tinha razão
mas sabia enquanto o colocava
que tinha escolhido as palavras erradas.
Eu tinha bebido muito café. Encontrei-me
defendendo Jessica energicamente,
culpando sua desorientação
como resposta a nossa sociedade misógina –
o deslocamento que todas as mulheres sentem
do seu eu corporal.
E depois com todas essas teorias que eu vinha lendo!
Ele foi trabalhar mais ou menos concordando
mas dizia também que o tinha deixado exaurido.
E agora minha irmã me culpa da mesma coisa
porque assinalo para Katie que ela está errada
ao pensar que só meninos devem sujar-se
e só meninas usarem brincos.
“As pessoas devem fazer qualquer coisa que desejarem”.
Discorro sobre minha amiga que usa capacete
quando vai ao trabalho onde mexe
com eletricidade igual seu pai.
Katie brinca com seus cadarços
e pede suquinho. Minha irmã diz,
“Deixe ela em paz. Nem entrou no primário ainda”.
Kerri, a maior, se concentra, tentando
passar um grande pente para humanos
no cabelo sintético cheio de gel
da boneca. Por tanta força que exige desemaranhá-lo
de repente, sem querer, sai a cabeça da Barbie,
e uma menor, sem rosto, suporte apenas,
emerge do pescoço. Por um instante
nós todas – dois pares de irmãs, com um
intervalo de vinte anos – compartimos a epifania
sobre Mattel: lavagem cerebral, pedaço de plástico
que nos diz quem Barbie é. Mas logo
o rosto de Kerri é todo pânico, como esperando um castigo.
As lágrimas despontam no canto dos seus olhos.
Faço um resgate rápido,
enfiando a cabecinha moldada
de novo no corpo, seus traços maleáveis
se distorcendo sob meu polegar. Apesar de boneca adulta,
sua moleira ainda está aberta. Sob a pressão
do meu toque, seu rosto esmaga, como alguém
que se olha na casa dos espelhos.
Mas ao soltá-la, ela imediatamente volta,
o sorrisinho educado, o nariz perfeito
e pronta para pôr tudo em seu lugar:
a Barbie pertence à América –
metade vítima, metade pequeno soldado
cor-de-rosa.