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A GAMBIARRA DA DESTRUIÇÃO

Jacuba é gambiarra. Sabrina Sedlmayer. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Cronicavírus in New Brazil: A Gambiarra da Destruição. Raphael Sanz. Ponta Grossa: Editora Monstro dos Mares, 2021.

Em Jacuba e gambiarra Sabrina Sedlmayer objetiva historicizar e relacionar os usos na cultura brasileira das palavras e práticas referentes a “jacuba” e “gambiara”, pelo aspecto de improvisação que as assemelham, a primeira no seu aspecto culinário e a segunda num espectro mais amplo indo do sentido técnico na engenharia elétrica, passando pelos usos populares de adaptação social e econômica e encontrando sua incorporação potente no campo das artes, foco de interesse da sua análise, ilustrada e referenciada com obras de vários artistas e escritores: “são palavras que interceptam o campo estético, literário e musical contemporâneo e questionam a noção de performance, de originalidade, de reprodutibilidade, de uso e de experiência, além de tocarem fundo em aspectos da cultura material e imaterial”.

Especificamente sobre “gambiarra”, ela sintetiza: “alude a uma série de práticas de improviso diante da falta de técnica e/ou capital econômico, operando também como performance no campo da literatura e das artes”.

Num dos usos, Sabrina Sedlmayer destaca o sentido da palavra para Cildo Meireles: “como operador conceitual, envolveria transgressão, fraude, tunga”, ou, numa interpretação segundo a definição de “tática” por Michel de Certeau, mencionada pela autora, “uma tática dos homens ordinários, daqueles que não utilizam estratégias modeladas porque se apropriam livremente das coisas, dos ingredientes, à sua maneira, operando inversões hierárquicas. Os usuários da gambiarra e da jacuba são os inventores do cotidiano: quase invisíveis, clandestinos, astutos, apegados à pirataria (e não só a cibernética). Quem faz jacuba ou gambiarra esnoba o poder”.

Tendo sido apropriada pelo campo das artes, a palavra “gambiarra” originou-se relacionada geralmente à descrição de improvisação intensa pelo imenso contingente de pessoas de baixa renda do país, visando à solução de problemas enfrentados corriqueiramente na adversidade do cotidiano imposta pela vida precária em que, impossibilitadas de comprar um novo produto para substituir um que quebra ou falha, improvisam “consertando-o” para que continue funcionando, sendo, também, sinônimo de “gato”, com o significado de instalação precária, fora das regras de segurança, de fios instalados para roubar o fornecimento de serviços públicos pagos como energia elétrica ou sinal telefônico ou de televisão a cabo etc.

As descrições e análises feitas por Sabrina Sedlmayer atendem eficientemente ao que se propôs ao refletir sobre o uso dessas palavras transformadas em conceito no campo das artes. No entanto, interessa-me, aqui, chamando a atenção para um ponto cego na análise de Sedlmayer, sinalizar um outro uso peculiar da gambiarra, desta vez pelo Estado, através de seus agentes políticos, numa inversão total de valores.

Refiro-me, em particular, sem que o exemplo seja exclusivo ou determinante, uma vez que prática corrente, ao recente golpe de Estado dado com a liderança de Michel Temer, vice-presidente da República, que conspirou para derrubar Dilma Roussef, a primeira mulher eleita para esse cargo no país, por um partido com propósitos de representação popular.

Temer, um homem ordinário nas várias acepções dessa palavra e no sentido antes mencionado por Sedlmayer com relação a Certeau, saiu do limbo para tomar para si o maior cargo institucional do país. Juntando-se aos asseclas do PSDB, inconformados com o fato de perder a eleição, bem como com a corja de políticos que majoritariamente dominam o Congresso, associada ao bando de corvos negros que se tornaram os agentes da Justiça, numa vinculação eficiente com o grupo de juízes da Lava-Jato com o STF, Temer urdiu o golpe com práticas de improvisação típicas do que se denomina gambiarra, formulando acusações incongruentes e manipuladas eficientemente pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, logo depois condenado e preso por corrupção, ressaltando gritantemente a farsa urdida.

Às acusações vagas de “pedaladas” fiscais (essas mesmas uma forma de gambiarra orçamentária muito praticada pelos governantes e largamente pelo atual presidente Bolsonaro), somaram-se outras de corrupção, todas desmentidas, afinal eram usadas apenas como um arranjo para justificar a intenção do golpe. No governo de Dilma mesmo já se pôde constatar uma das gambiarras que notabilizaria a equipe de juízes políticos (outra gambiarra, a de agentes do Judiciário agirem como políticos) da Lava Jato, quando impediram que Lula assumisse a Casa Civil para agir como negociador e impedir o golpe. O juiz infrator Moro usou, para isso, um conjunto de áudios gravados ilegalmente, o que, por si só, impediria seu uso, além do que não havia nenhum impedimento legal para que Lula assumisse o cargo, comprovando-se a ação de Moro como mais um arranjo improvisado rumo ao golpe. A ação da Lava Jato, agora já fartamente demonstrada e comprovada, especialmente com as reportagens feitas pelo noticioso Intercept, constituiu-se como uma somatória sem-fim de improvisações e ilegalidades, tais quais as gambiarras de roubo de energia elétrica, com a forja de documentos falsos e “Fakenews”, tudo, afinal, para levar Moro a uma candidatura não concretizada, por sua própria incompetência, para a Presidência. Em sucessão a Temer assistimos a outras gambiarras, como a negativa de participação de debates por parte de Bolsonaro, logo altamente justificadas por outra gambiarra que foi a facada dada nele, levando-o a um leito hospitalar de onde saíam imagens apelativas que condoeram boa parte da população e a levaram a votar nele – que dizer das “fake news” senão gambiarras elas mesmas? Após a posse do eleito passamos a assistir uma série sem-fim de omissões deliberadas, desmandos, irresponsabilidades, desmonte da máquina pública, falcatruas… no melhor estilo de uso e composições de gambiarras jurídicas, administrativas, políticas, noticiosas…

Tais constatações e motivado pela ação poética como prática subversiva, escrevi o conjunto de poemas reunidos no livro Gambiarra, uma pinguela para o futuro do pretérito, publicado em 2018 pela Editora Urutau, relacionando-o ao golpe e ao governo de Temer, livro depois continuado por In Fuck We Trust em 2020, pela mesma editora, que cobre o primeiro ano do governo Bolsonaro. O título Gambiarra remete ao governo Temer e a proclamada “ponte para o futuro que teríamos que atravessar”, segundo as loas de bola de plástico cristal do verminoso FHC, ponte que afinal se constatou uma pinguela, logo uma gambiarra, voltada não para o futuro, mas para o passado, que é o modo como se governa este país e que se refere também aos procedimentos da quadrilha jurídica de juízes lavajazes, em uma contumaz “tática dos homens ordinários, daqueles que não utilizam estratégias modeladas porque se apropriam livremente das coisas, dos ingredientes, à sua maneira, operando inversões hierárquicas”, “quase invisíveis, clandestinos, astutos, apegados à pirataria (e não só a cibernética). Quem faz jacuba ou gambiarra esnoba o poder”, alterando a vida cotidiana de milhões de pessoas para pior.

O título deste texto vem do livro Cronicavírus in New Brazil: A Gambiarra da Destruição, de Raphael Sanz, publicado pela anarquista Editora Monstro dos Mares (2021), exemplar como uma das descrições da prática da precariedade como forma de governo. Trata-se de uma reunião de onze crônicas escritas de forma irônica entre março e agosto de 2020, com foco nos primeiros seis meses de pandemia, pinçando comentários estravagantes, pessoas públicas em atitudes de insanidade etc. Como divulgação a editora criou o cartaz reproduzido abaixo.

Destaco também uma seleção de outros livros publicados neste período recente que descrevem com eficiência, sem necessariamente estar implícita a expressão, a prática da precariedade como forma de governo que incorpora a gambiarra como modo de operação e pensamento:

Jornalismo Wando – Os personagens bizarros que explicam a nova política. João Filho. Editora Mórula, 2021.

Eles em nós. Retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI. Idelber Avelar. Editora Record, 2021.

A República das Milícias. Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. Bruno Paes Manso. Editora Todavia, 2020.

Bolsonaro genocida. Org. Tadeu Breda. Editora Elefante, 2021.

Vaza Jato. Os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil. Letícia Duarte; The Intercept Brasil. Editora Mórula, 2020.