Relíquia
(ao Le Clézio, c/ o velho abraço)
Onde está o silêncio onde jaz o silêncio?
Não neste braço sujo cortado
Não neste tapete espesso neste bloco de apontamentos
onde se cruzam insultos rimas
Não no pequeno perímetro das veias
– afinal tudo tudo entre nuvens de carbono
semelhantes a um bafo de camponês sobre a neve
onde se esmagavam insectos e excrementos de lobo
O primo velho outrora mo ensinara num mês adolescente.
Onde em que ilha de desolação
sufocado incerto esse silêncio soberano
onde jaz cerzido por traços de faca de pedra
Não não o barulho de um passo que caminha para a beleza dum rosto
saindo de um vazadouro para a lama musgosa da margem
Brillhante como celofane
O silencio que respira
Sim o silêncio morno de quem procura o vazio
ou de quem busca uma cor imersa na carne recordada
da mão faminta de muitos negrumes alheios
O silêncio que se recolhe
que se desdobra
que nos relembra de momentos e perdas
O silêncio que permutamos
O silêncio para além da luz entre os olhos de uma fera morta.
O dia de Philicari
(ao Derek Soames, c/ estima)
Georg Friedrich Haendel
em Meerbusch
no Hotel
com mendigos à porta
um de perna quebrada
outro zarolho
outro recordando os seus dias felizes
uma tarde junto ao rio
com uma pequena que o adorava
“Zozi!” dizia ela “Zoziiiii!”
De boca aberta pensa
Coça uma perna chagada
Olha o outro do lado é uma outra
De saias até aos pés olhando o homem
que agora chega de roxo e ouro, as meias verdes
um comerciante célebre que dias antes enviuvou
“Zoziiii!” chama uma voz fresca morta esfomeada
Ele sorri a boca enegrecida os olhos mais fundos
Junto ao rio os mesmos barcos, a mesma água.
Philicari prende o violino, a mão hábil o queixo recolhido
O arco a direito sobre as cordas um sussurro rouco
Haendel sai, a carruagem vai partir os mendigos
olham-no a pouco e pouco mais longe na rua depois
escurecendo mais e mais
deserta.
Nicolau Saião nasceu em Monforte do Alentejo, em 1946. Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Publicou Os Objectos Inquietantes, Flauta de Pan, Assembleia Geral e Os Olhares Perdidos (poesia), Passagem de Nível e O desejo dança na poeira do tempo (teatro). Editada pela paulistana Ed. Escrituras/IPLB saíu no Brasil a antologia de poesia e pintura Olhares perdidos, organizada por Floriano Martins. Em Moçambique, pela mão de António Cabrita, publicou O armário de Midas e está programado Poemas dos quatro cantos (poesia). Tem para sair As Vozes Ausentes (prosa diversa), Nigredo/Albedo – o livro das translações, Cantos do deserto, Escrita e o seu contrário (poesia), As estrelas sobre a casa (teatro), Em nós o céu (policial).
Traduziu Vestígios, de Gérard Calandre e Fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (publicado por Black Sun). É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. A Ass. Port. Escritores atribuiu-lhe em 92 o Prémio Revelação/Poesia. Vive em Atalaião, agregado populacional a nordeste de Portalegre.
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