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Czesław Miłosz reflete sobre os totalitarismos

Mente cativa, de Czesław Miłosz, acaba de ser lançado no Brasil. Miłosz é um dos casos em que o Prêmio Nobel, recebido em 1980, coincide com a alta qualidade literária. Ele nasceu em 1911, na Lituânia, e morreu em 2004, em Cracóvia, Polônia. Publicou, nos anos 1930, seus primeiros livros, Três invernos e Poema sobre o tempo congelado, que lhe valeram uma bolsa de estudos em Paris. De volta ao seu país, esse bacharel em direito trabalhou em algumas emissoras de rádio e, durante a Segunda Guerra Mundial, residiu em Varsóvia, trabalhando como bibliotecário, onde prestou apoio aos perseguidos pelo nazismo. Miłosz tornou-se diplomata na Polônia comunista de 1945 até 1951, servindo primeiro nos Estados Unidos e, depois, na França, quando então rompeu com o regime e, exilado, fixou a sua residência em Paris.

Mente cativa é um relato das brutalidades nazistas e, depois, estalinistas na Polônia – dos genocídios. Miłosz, ao longo da Segunda Guerra, viveu no gueto de Varsóvia, local reservado aos judeus pelas tropas de Hitler. O livro faz parte de uma série de reflexões do pós-guerra sobre o totalitarismo naziestalinista. Entre elas, menciono 1984, de George Orwell, que o influenciou, e Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt. Trata-se de um trabalho inovador que funde prosa ensaística com prosa de ficção, sobretudo nos capítulos em que descreve as fragilidades de quatro poetas que se submetem às circunstâncias do Estado comunista: Alpha, Beta, Gama e Delta. A narrativa é toda encadeada, com fluência ímpar, clareza e achados poéticos. Inicia-se com a discussão da novela Insaciabilidade, de Stalinislaw Witkiewicz, no qual “o exército do Oriente ocupou o país e a nova vida, a Murti-Bingismo”. Os heróis do romance, outrora atormentados pela “insaciabilidade” filosófica, agora se colocaram a serviço de uma nova sociedade: “Em vez de escrever a música dissonante de antes, compõem agora marchas e odes. Contudo, tornaram-se esquizofrênicos”.

Aqui, Miłosz antecipa, em resumo, sem revelar, seu livro: a esquizofrenia imposta pelo regime e pela necessidade de sobrevivência seria detidamente analisada na figura dos poetas acima nomeados (Alpha e os outros). No segundo capítulo, debate a naturalização dos comportamentos, como forma de dominação, como se não fossem construídos pelo homem, desmantelando os clichês do mundo ocidental e do comunista: “Alguns se familiarizaram com 1984, de Orwell, pois era difícil obtê-lo e também perigoso possuí-lo, sendo conhecido por alguns membros do círculo interno do partido. Tal forma de escrita é proibida pela nova fé, porque tal alegoria, que por natureza é multifacetada, iria transgredir as prescrições do realismo socialista”.

Gueto de Varsóvia

Mente cativa, escrito entre 1951 e 1953, tornou-se conhecido pelas analogias incisivas, verossímeis, que faz das consequencias de ideologias aparentemente antagônicas como o nazifascismo e o comunismo. Miłosz discute a escravidão por meio da consciência e, ao cabo, mostra como o ser humano é manipulado, determinado pelas estruturas de poder. Neste sentido, o livro poderia parecer “datado”, como – para usar o clichê – um libelo antiestalinista, ao que, entretanto, não se reduz de maneira alguma. Transcende a época. Uma das discussões mais interessantes que trava, em minha leitura, é a apropriação dos movimentos de vanguarda europeus do início do século pelos regimes comunistas, ao proporem um movimento estatal denominado “realismo socialista”, que se atribuía, igualmente, um papel de “vanguarda”.  Miłosz é, digamos, um poeta objetivista, que defende uma prosa e uma poesia de invenção. Ele denuncia o mecanismo de dedução lógica e óbvia que se instala na literatura com o realismo socialista – a alienação do escritor do próprio ato de escrever. Acaba por desconstruir também as vanguardas que se transformaram em escola (surrealismo etc.) e faz uma defesa intransigente – prestem atenção – do literário enquanto inovação. Embora pouco destacado ante a imensa importância política do volume, é aspecto que não pode ser mais ignorado. Miłosz ataca, sem piedade, o materialismo dialético: “O materialismo dialético, ao estilo russo, nada mais é que a ciência popularizada do século 19 elevada à segunda potência”. Em Mente cativa, Pablo Neruda, traduzido por ele ao polonês, é discutido, na artificialidade de seus poemas “comunistas”, que “vendem” uma União Soviética “radiante”. Trata-se, igualmente, de um poderoso livro de crítica literária.

Findo esta nota com uma das cenas que mais me tocaram no volume, a de uma judia, de 20 anos, assassinada pela SS no gueto de Varsóvia: “Seu corpo era cheio, esplêndido, exultante. Ela gritava: ‘Não! Não! Não!’. A necessidade de morrer estava além de sua compreensão – vinha de fora. As balas da pistola automática a atingiram em pleno grito”. Mente cativa é leitura obrigatória para todas as áreas das ciências humanas.

São Paulo, Novo Século, 2010
247 p.

Trechos

“Und Morgen die ganze Welt” cantavam os guardas da SS se movendo contra o pano de fundo negro da fumaça que saía dos crematórios de Auschwitz. O nazismo era a insanidade coletiva, contudo, as massas alemãs seguiram Hitler por razões psicológicas profundas. Uma grande crise econômica e social deu à luz o nazismo. A juventude da Alemanha naquela época se deparava com a decomposição e o caos da República de Weimar, a degradação de milhões  de desempregados, as asquerosas aberrações da elite culta, a prostituição de suas irmãs e a luta do homem contra seu próximo por dinheiro. Quando a esperança do socialismo desapareceu, ele aceitou a outra filosofia da história que lhe foi oferecida, uma filosofia que era uma paródia da doutrina Lenin-stalinista.

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Quando finalmente a Polônia foi obrigada a passar da adoração restrita à Rússia à completa idolatria, ele não deixou ninguém ultrapassá-lo. Escreveu sobre o heroísmo dos soldados soviéticos, a gratidão que cada polonês deveria expressar à Rússia, sobre Lenin e a juventude Komsomol (União da Juventude Comunista). Aderiu à linha comunista sob todos os aspectos. Na qualidade de célebre autor, recebeu um visto para a União Soviética e passou algum tempo em Moscou, e dela enviou relatórios entusiásticos em forma de prosa e verso. Em um deles, anunciou que apenas um detalhe estragava a magnificência de Moscou: ela se parecia demais com Taormina; as pessoas desse lugar comiam laranjas em demasia e Delata não gostava dessa fruta.

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O que é Ketman?

O povo do Oriente muçulmano acredita que “aquele que estiver em posse da verdade não deve expor a si mesmo, seus parentes ou a sua reputação à cegueira, à estupidez, à perversidade daqueles sob os quais Deus sentiu prazer em submeter e manter no erro”. Devem, portanto, se manter calados a respeito de suas próprias convicções, na medida do possível.

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Quem quer que venha a ler as afirmações públicas feitas acerca dos quatro autores discutidos nos capítulos anteriores, poderá afirmar que eles vendiam sozinhos. A verdade é, contudo, mais complexa. Esses homens são, mais ou menos conscientemente, vítimas de uma situação histórica. A consciência não os ajuda a cumprir com suas obrigações; pelo contrário, ela os forja. Na melhor das hipóteses, a consciência oferece-lhes os deleites do Ketman como consolo. Nunca antes houve tamanha servidão por meio da consciência como no século 20.

O materialismo dialético, ao estilo russo, nada mais é que a ciência popularizada do século 19 elevada à segunda potência. Seus componentes emocionais e didáticos são tão fortes que eles mudam todas as proporções. Apesar de o método ser científico em suas origens, quando aplicado às disciplinas humanas, freqüentemente as transforma em histórias edificantes adaptadas às necessidades do momento. Mas não há escapatória, uma vez que o homem entre nessas pontes convenientes. Séculos de história humana, com suas milhares e milhares de questões minuciosas, são reduzidos a algumas, a maior parte termos generalizados. Sem dúvida, o indivíduo aproxima-se mais da verdade ao ver a história como a expressão da luta de classes em vez de uma série de questões privadas entre reis e nobres. Contudo, precisamente porque tal análise da história se aproxima mas da verdade, ela é mais perigosa. Dá a ilusão do conhecimento pleno; fornece respostas a todas as perguntas, perguntas meramente andavam em círculos repetindo poucas fórmulas. Além disso, as disciplinas humanas se conectam com as ciências naturais graças à perspectiva materialista (como nas teorias da “matéria eterna”), daí vemos o círculo se fechar perfeita e logicamente. Então, Stalin torna-se o momento crucial da evolução da vida em nosso planeta.

 


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 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.