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Já deu!

Beckett e Gerald Thomas

Gerald Thomas fala de sua relação com Beckett e anuncia o fim de sua carreira teatral

Régis Bonvicino

 

Beckett e Gerald Thomas

Nessa entrevista à Sibila, feita em 9 de novembro, dia de aniversário da Queda do Muro de Berlim, Gerald Thomas, 55 anos, anuncia o encerramento de sua carreira de autor e diretor de teatro, que iniciou em 1983, quando estreou a primeira das 19 peças de Samuel Beckett que dirigiu. Especificamente, fala de sua relação com Samuel Becket (1906-1989). Ao longo da sua vida, Thomas esteve dividido entre o Brasil e a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos. Formado em filosofia, começou sua carreira no “La MaMa Experimental Theater”, na qual começa a adaptar e dirigir peças dramáticas e em prosa de Samuel Beckett. Thomas começou a trabalhar com Beckett em Paris, adaptando novas ficções do autor, entre elas All Strange Away e That Time, na qual teve a oportunidade de dirigir o ator de teatro e fundador do Living Theater, Julian Beck, em sua única atuação como ator fora de sua companhia.

Suas peças foram apresentadas em vários países e em locais de prestígio, assim como o Lincoln Center em Nova York, o Teatro Estatal de Munique, o Wiener Festwochen em Viena, no Festival de Taormina, entre outros.

Nos anos 1980, Thomas trabalhou em parceria com o autor alemão Heiner Müller: dirigiu suas obras nos Estados Unidos e no Brasil, e também começou parceria com o compositor americano Philip Glass.

Com a Companhia Ópera Seca, idealizada por ele em 1985 em São Paulo, Thomas escreveu e dirigiu, entre outras, as seguintes peças: Eletra Com Creta, A Trilogia Kafka, Carmem Com Filtro, Mattogrosso, The Flash and Crash Days, A Trilogia da B.E.S.T.A., e M.O.R.T.E .

RB:  O que o levou a se interessar por Samuel Beckett? E em qual época?
GT: Acho que foi uma decorrência natural das coisas. De Yeats a Joyce e de Joyce até Beckett. Quer dizer… como dizer qual foi o primeiro dos primeiros livros? Impossível, não é? O fato é que, uma vez tomando conhecimento da obra de Beckett, me fixei nele. Em teatro, naquela época – década de 70 – ainda não havia nada mais revolucionário. Era a fase “negra” dele. O “nada” no palco. “Breath” (respiro)… 30 segundos e nada. Ou “act without words 1 and 2″… onde praticamente só objetos cênicos constroem o tal conflito. Ou o não conflito. Nessa década de 70, já se completavam 20 anos desde Esperando Godot, assim como hoje completamos 20 anos desde a queda do Muro de Berlim – esse que eu atravessava duas vezes ao ano, pois eu tinha família dos dois lados. E Godot – nome baseado num ciclista do Tour de France, Godeaux, que numa das corridas resolveu não chegar na reta final no Champs Élysées e o pessoal ficou esperando lá, inclusive Beckett, que era fã dessa corrida, lá por 1937 ou 38, um pouco antes da Guerra –, resolveu construir um anticonflito sobre o nada em dois atos, onde o tal prometido messias não vinha nunca, numa tal árvore, a única – objeto também de possível estrangulamento, hanging… Mas mesmo Godot, já “enxugado” da língua inglesa – é uma TREMENDA MENTIRA que Beckett escrevia primeiro em francês… o próprio nome Godot é uma brincadeira com a palavra God: em francês teria de ser Dieu… –, digo, mesmo já tendo enxugado a língua inglesa, nas décadas que seguiam, Beckett reduziu o inglês ao essencial. Em All Stange Away, cuja première mundial eu fiz, entre outras, ou Imagination Dead Imagine… e outras, as palavras viravam sons: “For to end yet again skull again pent bowed on a board to begin”. Isso vem de “Fizzles número 7”.

RB: Quando o conheceu pessoalmente? Como era a Paris dessa época?
GT: Eu escrevia cartas monumentais para ele. Era algo em torno de 10 páginas escritas à mão ou à máquina. E lhe mandava minhas ilustrações da OpEd Page do NYTimes. Colocava no correio para a Édition du Minuit e esperava 14 dias… abria minha caixa postal na Prince Street e lá estava um postalzinho, com “Samuel Beckett” impresso no topo e umas sílabas escritas a tinteiro: “Dear Mr. Thomas, Regarding Jolly and Preager Dreager Preager: Irish co-lexicographers. yours Sam”. Só isso. E esse tipo de correspondência continuou por um tempo. Até que veio uma dele: “Se você por acaso estiver por Paris, ou por perto de Paris, por um tempo, quem sabe nós nos veríamos etc. A biógrafa não oficial dele, Deidre Bair, viu aquilo e disse: embarque no primeiro avião (TWA 800) e se mande pra Paris. E assim foi. E fui. Eu já conhecia Paris bem, da época em que eu morava em Londres. É a rota óbvia. Colocar o carro na barca e seguir os outros ingleses para tentar não bater porque o volante é do outro lado. Eu sempre ia pra Paris desde os meus 17 anos, com a minha primeira mulher, a Jill. Nunca nada muda muito por lá. O que não vem a ser o caso com Londres.

RB: Lembra-se de quantos encontros tiveram? O que vocês conversavam?
GT: Não lembro. Foram os últimos seis anos de sua vida, entre 1984 e 89, quando morreu. Conversávamos sobre TUDO, mas principalmente sobre sacanagem: ele queria saber sobre “fornication”, quem estava comendo quem na cena teatral do East Village etc.

RB: Qual era o círculo backettiano de amigos?
GT: Não sei. Quer dizer, sei de ler. Era o Avigor Arika etc. Mas nunca conheci ninguém. O Alan Schneider, diretor, morreu em um cruzamento de pedestres em Hampstead, o meu bairro em Londres, ao ir depositar uma carta para Beckett em Paris. Schneider foi atropelado por um ciclista – Godeaux cinquenta anos depois – e… eu estava com Beckett quando, desolado, leu a carta de um morto, três dias depois.

RB: Quantas peças dele você encenou, em que datas e em que locais?
GT: Foram MUITAS e em MUITOS lugares. Em Nova York eu fiz as premières mundiais de suas prosas. Na Alemanha encenei suas peças mais conhecidas. No Brasil fiz o Fim de Jogo. Em Londres, leituras de esboços de peças que ainda viriam, como Stillness Still, que acabou não sendo.

RB:Que diferença ele fez para o teatro de então?
GT: Ele foi simplesmente o Cristóvão Colombo do teatro, entende? Não somente colocou o ovo em pé, mas DESCOBRIU o NOVO MUNDO.

RB:O que mais lhe impressiona em Beckett?
GT: A capacidade de entender que não existe a crítica. Existe a arte. O crítico Walter Kerr do NYTimes, que o detonou nos anos 50, acabou se despedindo da crítica, fazendo um “mea culpa”, dizendo que Godot era TUDO e que ele não havia visto aquilo. E, portanto, não deveria ter visto milhares de outros talentos também.

RB: Quais foram os melhores diretores das peças de Beckett no mundo em sua opinião?
GT: Algumas experiências execráveis e umas interessantes. Os melhores, tenho de me incluir, óbvio, e ao Lee Breuer, do Mabou Mines, companhia de teatro de Nova York. Não vi muitas encenações, porque aquele estereótipo de palhaço maltrapilho é um saco de ver, é repetitivo e nem o Beckett aguentava.

RB: Quem melhor escreveu sobre ele de um modo geral?
GT: John Pilling, acho.

RB: Por que você decidiu encerrar sua carreira de autor e diretor de teatro?
GT: Porque já deu. Não acredito mais no teatro como veículo. Aliás, não acredito mais em nada.

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Pós-entrevista

Em 17 de outubro de 2009

RB: Gerald, você me escreveu dizendo “Gostei bastante. Quer dizer, não gostei não. Eu poderia ter caprichado mais nas respostas”. Você foi o Estragon da entrevista? Está recostado em uma árvore em Nova York? E o Greenhouse Effect?
GT: O Greenhouse Effect mudou de nome: agora se chama “Global Warming”. Não fui nenhum dos personagens porque personagens não existem. E nós existimos. Eles são a soma de tudo que nós somos (estou falando dos grandes: Hamlet, Próspero, Édipo, Fausto etc.). Mas eles têm curto tempo de vida. Três horas no palco ou 300 páginas em um livro. Eles são programados por “deixas” (cues). Às vezes improvisam, mas em Pirandello até isso está pré-escrito. Quando digo que gostei bastante é isso mesmo, nada mais, nada menos.

RB: Beckett falava de Joyce?
GT: Falava de Joyce o tempo todo (mas também eu perguntava sempre). Não se deve esquecer que aquela mão que eu cumprimentava foi a que, de fato, “escreveu” Finnegan’s Wake. Joyce ditava. Beckett escrevia.

RB: Beckett quer dizer backward ou forward?
GT: Quer dizer “revisitando”, como tanto de sua prosa e de seus textos. Beckett = Back At. “That time when you went back to see were the ruins still there where you played as a child. Where was that?” (da peça That Time, onde um homem morrendo revisita, em três vozes e três tempos, sua história: coloquei só a cara do Julian lá e mais nada).

RB: Não acha que, quando afirma que encerrou sua carreira de autor e diretor de teatro, espera, de algum modo, um Godot? Ou você esperou um God(ot) durante o curso de sua carreira?
GT: Nunca acreditei em messias ou em carneiro de ouro: isso é conversa de Aarão enquanto Moisés está lá em cima, quarenta dias e noites ralando. Não acredito na figura, no figurativismo. Então, veja só: o palco é coalhado de pessoas. Atores. Figuras. Por mais que se queira fazer um teatro abstrato, estão lá aquelas pessoas com dimensões humanas. Difícil escapar. Por isso acho que cansei.

RB: O que acha dos “ismos”?
GT: Odeio “ismos”, e odeio que me classifiquem disso ou daquilo. Fui influenciado pelos gregos ou pelos semiólogos franceses ou por Saul Steinberg ou por Duchamp.

RB: Carpeaux afirma que Lucky trata Pozzo com uma brutalidade ímpar. Quem é então Lucky e Pozzo no mundo de hoje, no mundo da arte de hoje?
GT: É o contrário: POZZO comanda Lucky e é brutal, cínico, um fascista. Mas vem do italiano pazzo (maluco). Enquanto o Lucky é o personagem mais “UnLucky” do mundo, tendo de carregar a carga do Pozzo e ainda amarrado por uma corda no pescoço! Mas quando lhe tiram o chapéu, sai um dos mais belos monólogos beckettianos,ever. Hoje? De novo. Não comparo personagens com pessoas reais. Tem muito barroquismo na cabeça de um autor e o autor é todos eles ao mesmo tempo. Portanto, Pozzo é Lucky, que é Didi e que é Estragon, porque todos são um só: Beckett. Mas o que ele representa? Sei lá: Milosovec. Os caras de Darfur. (Bush tentava ser engraçadinho, então essa analogia fica difícil apesar da monstruosidade ter sido semelhante). Ditadores são ditadores e pronto.

RB: Se Beckett fez o “ovo de Colombo” ficar de pé, ele seria possível sem o Muro de Berlim? Sem as tensões da Guerra Fria e da Segunda Guerra?
GT: Ele morreu um mês e pouco depois da Queda no Muro. Sim, claro que seria possível. Beckett é atemporal.

RB: Relate, por favor, a montagem de peça de Beckett. Ele dialogava com você? Dava sugestões? Calava-se?
GT: Não dava um único palpite, mas depois queria saber TUDO.

RB: Há espaço hoje para trabalhos de invenção e inovação no campo da arte?
GT: Início de século é sempre difícil, mas acho que passados uns doze anos a coisa vai.

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Leia abaixo também textos de Marjorie Perloff sobre Beckett

Obras de Beckett

Teatro

Le Kid, com Georges Pelorson (1931)
Eleutheria (1947; publicado em 1995)
En attendant Godot/Waiting for Godot
(Esperando Godot) (1948; publicado em 1952)
Act Without Words I (1956)
Act Without Words II (1956)
Endgame (1957)
Krapp’s Last Tape (1958)Rough for Theatre I (fins de 1950)
Rough for Theatre II (fins de 1950)
Happy Days (1960)
Play (1963)
Come and Go (1965)
Breath (1969)
Not I (1972)
That Time (1975)
Footfalls (1975)
A Piece of Monologue (1980)
Rockaby (1981)
Ohio Impromptu (1981)
Catastrophe (1982)
Hostward Ho (1983)
What Where (1983)


Rádio

All That Fall (1956)
Embers (1959)
Rough for Radio I (1961)
Rough for Radio II (1961)
Words and Music (1961)
Cascando (1962)
The Old Tune (1963)


Televisão

Eh Joe (1965)
Ghost Trio (1975)
… but the clouds … (1976)
Quad I + II (1981)
Nacht und Träume (1982)


Cinema

Film (1965)


Prosa

Collected Shorter Prose 1945-1980 (1984)
As the Story Was Told: Uncollected and Late Prose (1990)


Romances e novelas

Dream of Fair to Middling Women (1932)
Murphy (1938; traduzida para francês, 1948)
Mercier and Camier (1946)
Watt (1953; escrita c. 1943; traduzida para francês, 1968)
Molloy (1951; original em francês; traduzida para inglês, 1955)
Malone Meurt (1951; traduzida para inglês como Malone Dies, 1956)
L’innommable (1953; traduzida para inglês como The Unnameable, 1958)
Comment C’est (1961; traduzida para inglês como How It Is, 1964)
Company (1980)
Ill Seen Ill Said (1982)
Worstward Ho (1983)
Ends and Odds: Plays and Sketches (1977)


Contos e textos breves

Assumption (1929)
Sedendo et Quiesciendo (1932)
Text (1932)
A Case in a Thousand (1934)
More Pricks than Kicks (1934)
Nouvelles et Textes Pour Rien/Stories and Texts for Nothing (1945-50)
Premier Amour/First Love (1945)
From an Abandoned Work (1954-55)
L’image/The Image (1958)
All Strange Away (1963-64)
Imagination Morte Imaginez/Imagination Dead Imagine (1965)
Assez/Enough (1966)
Bing/Ping (1966)
Sans/Lessness (1969)
Le Depeupleue/The Lost Ones (1970)
Fizzles (1973-75)
Heard in the Dark 1
Heard in the Dark 2
One Evening
As the Story was Told (1973)
La Falaise/The Cliff (1975)
Company (1980, adaptado para o teatro)
Stirrings Still (1988)
Nohow On (1989)


Ensaios

Proust (1931; publicado em 1989)
Disjecta: Miscellaneous Writing and a Dramatic Fragment (1983)


Poesia

Collected Poems in English and French (1977)
Poèmes/Poems (1979)
Collected Poems 1930-1978 (1984)


Parte das montagens de Gerald Thomas

A tetralogia Asfaltaram a Terra 2006, composta dos espetáculos “Brasas no Congelador”, “Um Bloco de Gelo em Chamas”, “Terra em Trânsito” e “Asfaltaram o Beijo”, homenagem a Samuel Beckett, em que Gerald foi ator de um espetáculo inteiro pela primeira vez, ao lado de atores convidados da Companhia.

“Um Circo de Rins e Fígados” (2005), o maior sucesso da carreira de Gerald, tanto de crítica como de público. Desde sua estréia, em 30 de abril, foi vista por mais de 80 mil pessoas em todo o Brasil e na Argentina.

“Anchorpectoris” (2004), com o subtítulo de “United States of the Mind”, estréia no La MaMa em 6 de março, quase vinte anos após a estréia de “All Strange Away”.

Tristão e Isolda (2003) no Teatro Municipal do Rio de Janeiro A montagem de Thomas ficou registrada pelo incidente ocorrido na estréia, em que a manifestação de nudismo de Gerald Thomas diante da desaprovação de setores da platéia, foi interpretada como ato de ofensa ao pudor.

Deus ex machina (2001), versão brasileira de peça dinamarquesa”Chief Butterknife”, que Thomas escreveu e dirigiu em 1996. Com sua companhia brasileira, a peça assumiu um significado totalmente diferente, especialmente depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001 (que Thomas viu de seu apartamento em Williamsburg, tendo mais tarde participado do resgate no Ground Zero durante 21 dias).

“NxW” (2000), concepção e direção de Gerald Thomas, baseada em protestos do filósofo Friedrich Nietzsche contra o músico Richard Wagner.

“Ventriloquist” (1999), de Gerald Thomas, baseado na ópera Moses und Aron, de Arnold Schoenberg.

“Os Reis do Iê, Iê, Iê” (Festival de Curitiba), 1997, reunião da Companhia Ópera Seca, baseada em uma tradução do filme dos Beatles “A Hard Day’s Night” com Gerald interpretando John Lennon.

“Uma Breve Interrupção do Fim” (1997), escrita e dirigida por Gerald Thomas. Coreografia de Suely Machado com o Grupo Primeiro Ato.

“Babylon” (1997), estréia mundial da ópera de Detlef Heusinger, concebida e dirigida por Gerald Thomas, encenada na Ópera de Mannheim (Deutsches National Theater).

“Graal, Retrato de um Fausto Quando Jovem” (1997), baseada no texto de 1952 do poeta brasileiro Haroldo de Campos, adaptado para o teatro por Gerald Thomas,

“Nowhere Man” (1996), apresentações esporádicas no Brasil, Chile e Argentina.

“Quartett” (1996, 1986 e 1985), de Heiner Müller, em 1996 Estreou em Nova York em 1985 e no Brasil em 1986.

“Tristão e Isolda” (1996 e 2004), de Richard Wagner. Deutsches National Theater, Weimar Apresentações mensais.

“Uma Breve História do Inferno” (1996, inacabada), libreto e cenários de Gerald Thomas. Deutsches National Theater, Weimar.

“Missa” (1996) de Janacek, estreou em dezembro na Opera de Krakaw (Cracóvia) com elenco da European Mozart Foundation. A produção viajou por oito cidades européias, incluindo Florença, Paris, Bruxelas e Estrasburgo.

“Chief Butterknife and the Haunting Spirit of his Archenemy, Kryptodick” (1995), Copenhague.

Marjorie Perloff on Beckett

http://www.bookforum.com/inprint/016_02/3825
http://epc.buffalo.edu/authors/perloff/beckett.html