Skip to main content

O telefone de Avital Ronell

Teoria/Tecnoanálise

A transformação de livro filosófico em palco operante de linguagens, capazes de atravessar um domínio disciplinar específico, logo desponta em The Telephone Book, de Avital Ronell. Por conta mesmo da performatividade em torno de constructos inseparáveis do desempenho e da instrumentação de traços gnosiológicos assim como de enunciados, que se acionam na órbita da logofonia (exemplificável no dispositivo-chave concentrado pelo aparelho telefônico). Todo um capítulo anterior de implicações com o desconstrucionismo derrideano nos Estados Unidos, no qual Avital Ronell se insere – a princípio, atuando como tradutora e hostess das visitas do pensador francês em suas estadas anuais na New York University –, pode ser traçado, de modo a definir seu surgimento como filósofa.

O ensaio de Derrida centrado sobre James Joyce – Ulysse gramofone (1987), datado dois anos antes de The Telephone Book –,  expõe, por um lado uma nítida fonte das ramificações entre pensamento e repertório tecnomaquínico no itinerário de Avital Ronell. Apresenta-se, em outro extremo, a impactante incursão de Friedrich Kittler em um território conhecido na atualidade como tecnoanálise ou simplesmente semiótica dos media. Neste caso, as delimitações do escopo semiótico obtêm expansões incalculáveis em crescente repercussão junto a investigadores não mais categorizados em especializações/linhas programáticas de pesquisa, quando se observa a abrangência dos estudos do pensador de Gramofone – Filme – Máquina de Escrever (1986), em sua franca recepção desde os anos 1980[1].

O caráter híbrido de revisita à história dos objetos técnicos, como poderia ser dito em proximidade com Gilbert Simondon, se torna mais acentuado, quando munido de um crivo de crítica, desapartado àquela altura (anos 1980) dos quadrantes teóricos de Frankfurt em um contexto alemão transformado já pela revisão do marxismo. Por força, também, das reconfigurações do estruturalismo. As semioses dispostas dentro de nomenclaturas reportáveis a sistemas fechados, situando-se a partir de concepções eminentemente “linguais”, extravasam o propósito especulativo e descritivo de uma ciência dos signos.

Justamente, a historicidade, no que envolve o advento e a consolidação de diferentes universos midiáticos – tal como se depreende do título Gramofone/Filme/Máquina de Escrever –, alia-se a uma amplificação do conceito de cultura. Uma vez que as máquinas de reproduzir sons musicais, imagens em movimento e sinais alfabéticos/numéricos legados pelos códigos da escrita não mais se transmitem através de papéis manuscritos/inscrição à mão. Tornam-se, assim, indissociáveis das diferentes esferas de linguagem/discursos/campos cognitivos que as constituem, fazendo do livro de Kittler uma matriz inovadora de historiografia e teoria dos universos sígnicos em circulação.

Curioso se revela o elo estabelecido entre os sentidos, a sensorialidade do corpo humano e a viabilização dos transportes, das mediações técnicas. Ao recorrer a signos de escuta (gramofone), visibilidade (filme) e toque/tactibilidade (máquina de escrever), a integral afluência da corporalidade incorre em um acionamento não-linear, nada mecânico. Indispõe-se, pois, com qualquer efeito de segmentação, da simples causalidade exercida por cada uma das máquinas em análise pelo novo semioticista, que é Friedrich Kittler, guiado pelo timbre de um exame heterodoxo de signos, saberes em correlação e coexistência.

O espectro plurissemiótico percorrido pelas implementações das máquinas de escuta/visão/escrita é pontuado pela conjunção criada com a literatura nos estudos de Kittler.  Acentuam-se, nesse aspecto, os pontos de proximidade entre Gramofone – Filme – Máquina-de-Escrever, Ulisses Gramofone e O livro do telefone.

Entre 1986 e 1989, Kittler, Derrida e Avital modulam, ao fim de uma década e o anúncio de uma outra época marcadamente sinalizada pelo ethos de uma cultura digital em simultaneidade e pertença planetária globalizada, o lugar da tecnicidade contemporânea. Não se abstêm, em tal propósito analítico, do foco dado ao advento do literário como atividade dotada de um legado testemunhal, seguida sempre pelo aspecto liberador da autoria enquanto documento escritural. Impressão/inscrição aderida à História em suas radiações mais amplas de epocalidade e memória, inescapáveis do erguimento de um complexo operacional/instrumental.

É o que se pode ler na genealogia dos signos da tekhné pluralmente embasada, empreendida por Kittler, em boa parte recepcionada por Ronell. Algo que passa, na obra desta pensadora, pelos acréscimos de mapeamento em fronteiras impensadas a contar de sua radicação na filosofia, capaz de atualizar e historicizar em nova (arquigenealógica) clave o legado da Desconstrução, tendo a incursão derrideana como referência numa outra vertente. Observável é o dado de que Ulisses Gramofone deixa de operar na via de uma história cultural (como fazem, de forma inovadora, os outros teóricos). O ensaio de Derrida articula, no entanto, uma verdadeira escansão da discursividade logomática dos arsenais/acervos disponibilizados por gramo/tel/fone. O que é elaborado em atenção aos modos de produzir linguagem e fabulação (desentranhados da novelística de Joyce) no interior de um espaço eminentemente tecnomediado de crítica e escrita.

Na modulação diversa engendrada pelos três pensadores, entretanto dotada de convergência em muitos polos, a teoria, unida ao exame/escrutínio dos aparatos da tecnicidade, passa a se exercer como especulação e experimento. Atua sobre formas de pensar inseparáveis do arquivamento de uma mnemognose dos domínios do conhecimento.

O ensaísta Erik Davis apresentaria de modo impactante a hipótese mesmo de uma techgnosis para abarcar os campos de ressonância ativados pelo tecnicismo em radiação plurivalente. Uma dimensão que se faz canalizar nos ramais e nas raízes dos modos de ser e existir nas semioesferas das Humanidades apreendidas através das mais amplas variantes de contato com o perfil tecnocientífico de uma era. 

Acrescente-se ainda o vetor de uma mnemotécnica onipresente, orbitante  –  onipresente pelo fator de uma orbitação –  em diversos domínios de saber e linguagem.

Incapaz de se apartar dos dados crescentes de uma sintonia com o que Peter Szendy entende como cosmopolítica (a contar da vertente que toma em sua leitura de Kant)[2], tal dimensão (uma dinâmica) se revela intrigantemente conectada com a analítica de Carl Schmitt em torno de guerra/ciência/geopolítica mundial. Schmitt é, por sinal, um filósofo alemão bastante mencionado nas formulações de Gramofone – FilmeMáquina-de-Escrever.

Ou ainda pode ser suplementado o sentido sempre configurador do arquivo enquanto “um lugar e uma instância de poder. Fadado à virtualidade do “cedo ou tarde”, o arquivo produz o acontecimento, tanto quanto o registra ou o consigna” (Derrida, 2004: 66).

Não à toa, Avital frisa o dado da anarquivização. Conceito muito afim do senso que tem Agamben da arquivística como processo móvel de um gesto genealógico capaz de reunir repertórios os mais diferenciados. De igual modo, possibilita dispô-los numa economia afectual, numa ordenação ativa, feita no compasso de uma constelação decifradora das passagens e pontos atualizadores de uma história de vida refratada e redesenhada por documentos, além dos modos técnicos de codificação/impressão. Essas são as teses contidas em Signatura Rerum.

Algo que se afina, aliás, com a compreensão derrideana acerca do “efeito de máquina (…) esse afeto de maquinalidade ou de maquinação que nos ocupa”, inseparável de sua “singular instabilidade”, de uma mobilidade “que não se interrompe jamais espontaneamente” (ibid., 64). Pois conduz ao mecanismo do veridictum, dentro de uma espiral de confissões – dos usos humanos pretensamente autônomos de autoria/apropriação na lida com o “maquinal” – que se sucedem.

Irreversivelmente, se impõe um andamento autotélico, sob o signo da última palavra, por parte do scriptor/emissor/operador/digitador, quando de posse da ritmia mecânica/baliza apresentada no limite do ato ainda escritural que define sua história, a vida mesmo. No fio extremo da extensão por que passa o empreendimento testemunhal (de uma existência, da existência de todo escrito). À borda da palavra final.

“Daí sua aura escatológica, apocalíptica e milenarista. Daí o sinal que dirige para o fim dos tempos e do fechamento da história”. (ibid., 66). A cada vez que o acionamento de uma máquina se instaura na cultura acaba incidindo sobre modos de ser/pensar/durar/documentar – como, p. ex., a telemática no globus da mundialização (da qual Derrida parte quando escreve Papel-Máquina, antevendo processos/procedimentos que o gramofone joyceano podia lhe apontar no final do segundo milênio, precisamente em 1987).

 

 

 

Voz – Chamamento/Escrita

 

Quando Kittler toma as primícias míticas para redesenhar o escopo da literatura moderna, entranhada de motivações/meios de tecnificação – a partir do entendimento da escrita como dispositivo, mekhané, nos termos de Derrida –, observa nas potências invocadas pelo Romantismo alemão um dimensionamento discursivizado no qual o livro comparece como elemento culturalizador. Não se dissocia da humanização da voz o  traço de murmúrio, – muito próximo daquele de Blanchot, em O livro por vir, ao recorrer do episódio do canto das sereias na epopeia homérica como premissa de uma releitura da literatura legada pelo mundo ocidental –, trazido nas nascentes do canto, de sentido e palavra ocupadas pelo regaço materno em seu poder vocalizador de um primeiro chamado[3].

Passa a inexistir a alusão à ordem original enquanto sopro. A figura materna surge – em Goethe,  exemplo norteador do sentido de projeto entre os românticos – como símbolo aculturado da Natureza. Mais e mais se vincula a poética em curso ao plano da transformação da vocalidade, enquanto chamado, em outra, atualizada forma de mito, reportando-se dessa vez a uma até hoje remanescente

 

teoria do lírico, que discernia a profundeza de um segredo                     preenchido pelo espírito humano e pela poesia (Schlegel) em seu murmurar, tal como uma verdade originariamente respirada, em sintonia com uma ciência linguística explorada pelas línguas indo-europeias como uma família – linguagem geral investigada em lugar de letras entendidas como sons.

                  (Kittler, 2014: 12)

 

 

          A aquisição de uma dicção se imprime como propósito evocador da poética, desde sempre –

Desde os apelos de Safo no surgimento de outro gênero de escrita em contraponto ao épico. Quando, no século VII A.C, a transformação do território grego, formado já pela pólis, cria vínculo com a palavra primordial do mito através do dado escritural e em escala subjetiva (na emergência do lírico). A partir de tal momento, a constelação divinatória é convocada a contar dos afetos e corpos, em outro registro cultural do mundo helênico, não mais adstrito ao ciclo das odisseias, dos empreendimentos coletivos/civilizacionais.

Desde sempre e mais intensamente por meio das figurações românticas tornadas populares enquanto imagens de poeta/poesia, se dissemina – em outro marco da história da lírica – a ação convocadora de um chamado integral, radical, por conta dos sentidos e dos elementos imediatos da enunciação melódica vinda de um canto. Nessa hora percutida durante o período iluminista, o traço de desterro, alheamento, característico de uma inadequação radical, marca o trajeto da autoria em sua relação com o espaço da cultura e do socius, frisando-se o elo com o instante/a história – o extrarreligioso em Hölderlin, na busca empreendida de um enlace mitopoético; as instâncias da imaginação extraídas dos planos oníricos, de um regime noturno de decantação e conhecimento, como se lê no projeto de Novalis.     

Autochamamento – outra definição de literatura se difunde com o gênero de escrita marcadamente musical (desde seu elo com a lira, o coro, a celebração do imediato).

Veja-se, por exemplo, Octavio Paz quando compreende que o dado de estar “cantando”, ou seja, o ato de produzir linguagem comparece como motivo basilar desse gênero em gradação de linhas breves ritmadas, movidas sob a “consagração do instante” – Sob todas as figurações/configurações temáticas com que se interpelam amores, combates, hinos à natureza, às cidades nascentes, às posições políticas as mais confrontadoras e destronadoras de lugares postos, convencionados.

Importante se revela a compreensão de que a livre enunciação da poesia – diferentemente da narrativa – se define por seu ato emancipatório do enunciado, da disposição verossímil de fábula, a favor da construção melódico-especulativa-grafoplástica de outra voz (de novo, Paz possibilita um nítido foco).

Tudo ocorre através dos múltiplos, infindáveis condutores/transmissores correlatos, relacionais de pensamento/imagem/som. Tal como se lê na pauta de um poema.

Autoinvocação do gesto-movimento em ato de linguagem – Quem te nomeará? Outro ensaio – “Qui ti nombrá, poesia?” – do poeta-crítico mexicano atinge o cerne de um universo verbal tão autônomo quanto pontuado por partilhas as mais impensáveis.

Como aqui é transmitido/escrito em O Livro do Telefone, cujo subtítulo Tecnologia – Esquizofrenia – Fala Elétrica deixa sublinhada sua existência no auge de uma civilização de alta tecnologia em face da qual a palavra e o empenho teórico ganham outros contornos. O que ocorre sem perda de sua emissão expositiva, declarativa ao máximo de um embate com instrumentos/intercessões aparentemente adversos à continuidade de algo compreendido e legado como literatura. (Veja-se, a esse respeito, o estudo dedicado a A. Ronell em meu livro Exterior. Noite – Filosofia/Literatura)

Novas disposições de escrita se assinalam com a máquina telefônica instaurada por Avital Ronell. Perceptível é como se imbui do interesse em desfazer a logofônica moldagem de ser/saber/querer em torno de ontologia/conhecimento/corpo. Tais dimensões se acionam com o impulso/impasse do aparato/aparelhamento que passa a revestir modernamente linguagem e voz no espaço da literatura. Sob os signos de Goethe e Hölderlin, Trakl e Kafka, Proust e Pynchon, Kathy Acker e W. S. Burroughs, a filósofa desenha um insurgente design para os mapeamentos inaugurais de historiografia e produção escritural produzidos por seu conjunto ensaístico. Este se mostra inseparável do tom propositivo de uma performatividade com autorias e teorias as mais diversas e complexas, colhidas em um amplo rastro de tempos, espaços e culturas.

Livros concebidos como atos de um total work simultaneamente inventivo e investigativo, nutridos por uma potência tanto referencial quanto relacional – Um campo-de-provas experimental para a literatura e o universo, essencialmente transdisciplinarizado, de teoria/crítica se detecta em Stupidity/Crack Wars/Finitude’s Score/Loser Sons – Politics and Authority –,  mencionando-se alguns de seus títulos.

Proposições-Mapas da história em mutação das últimas décadas – de um milênio a outro – fazem o diagrama do Placar da Finitude. Em paralelo à emergência de uma talk-theory inapartável da ambiência tecno em que nos situamos. Em face do constructo/consenso da globalidade, despontam planos conexos à vida pulsante das ruas tomadas por fluxos migratórios incessantes e infindáveis focos de informação/confrontação.

Walking Street-Tecno Talk –

 Não ao acaso, é uma voz (testemunho e teste de um empreendimento genealógico de crítica/cartografia) que atua nas páginas do livro de teoria – mais especificamente de filosofia –, viradas de um instante a outro de suas formulações em voltagem feminina não-remissiva, anti-linear. Movimento conduzido pelo engenho fabulativo de quem se põe em enfrentamento conceitual de fala/escrita. Elétrica emissão, nada monovalente, descartada de filiações sistêmicas e enquadramentos identitários, a sondar o próximo ser/sentido/sexo/saber das linguagens que estão na pauta polifônica. Na linha.

             Avital Ronell: The Telephone Book: Technology, Schizophrenia, Electric Speech

 

Referências Bibliográficas

 

AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum – Sobre el método. Trad. Flavia Costa e Mercedes Ruvituso. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008.

 

BLANCHOT, Maurice. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959.

 

DERRIDA, Jacques. Ulysse Gramophone. Deux mots pour Joyce.

Paris: Galilée, 1987.

 

____________. Papel-Máquina. Trad. Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.

 

 

 

KITTLER, Friedrich. Gramophone. Film. Typewriter. Trad. Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz. Stanford: Stanford University Press, 1999.

 

____________. The Truth of the Technological World: Essays on the Genealogy of Presence. Trad. Erik Butler. Stanford: Stanford University Press, 2014.

 

PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972.

 

___________. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1990.

 

RONELL, Avital. The Telephone Book. Technology, Schizophrenia, Electric Speech. Lincoln: University of Nebraska Press, 1989.

 

SZENDY, Peter. Kant chez les extraterrestres: Philosofictions cosmopolitiques. Paris: Minuit, 2011.

 

VASCONCELOS, Mauricio Salles. Exterior. Noite – Filosofia/Literatura. Lumme, 2015.

 

 

[1] Observável é o traço epocal a unir as três obras citadas, escritas numa sequencial linha do tempo por Kittler, Derrida e Ronell.

[2]Kant chez les extraterrestres: Philosofictions cosmopolitiques (2011)

[3]  O chamado é distinguido por Heidegger como operante matricial de sua filosofia, refigurado, por seu turno, em The Telephone Book como jogo de chamamento situado no cerne do apelo imperativo da tekhné, em meio à formação de ser/tempo numa história marcadamente mediada, replicada por sinais mecanizados dos apelos de autenticidade/interioridade (justo, no plano em que a mãe surge como elemento das origens, dotado da potência nomeadora). Observa-se, pois, o percurso da noção de chamado àquela da chamada telefônica. Esta se mostra reveladora, já, da problemática dos transfers, das cisões, instalada em uma conjuntura de afeto/aparelhamento/ambiência, que tornam a ontologia algo indesligável de psiquismo – aparelhamento técnico – contextualização do espaço doméstico (tudo o que consta do estudo/proposição de Avital Ronell no livro supracitado).